quinta-feira, 26 de maio de 2011

32. Pequeno lapso




Sei que ele me perdoará a inconfidência por duas razões bem simples de enumerar. A primeira é a forte amizade que nos une e, a segunda, é porque eu acho que ele confidenciou isto a pelo menos mais uma dezena de pessoas. Dizia-me ele que em garoto comia tanto, mas tanto queijo, que chegava a acreditar no que os pais, outros familiares e pessoas circundantes lhe diziam, és esquecido porque comes muito queijo.

Quem o conhece bem gaba-lhe amiúde a sua excelente memória apelidando-a mesmo, talvez um pouco exageradamente, como uma memória de elefante. Apesar da sua bem documentada experiência em queijos, seja a falar de uma raclette que comeu em Thonon-les-Bains quando visitou pela primeira vez a Haute-Savoye em mil novecentos e setenta e oito ou a descrever-me como é que viu fazer, num chalet alpino, um enorme appenzeller, mesmo no finalzinho do verão de mil novecentos e noventa e dois, quando decidiu experimentar o esqui alpino, em que ele descrevia de tal maneira os pormenores que até a cor do avental das queijeiras eu fiquei a saber, a sua especialidade era mesmo recitar de cor as dez primeiras estrofes do canto I dos Lusíadas, e o primeiro ato do Frei Luís de Sousa. Mas se a sua memória fosse só para queijos ou obras-primas da poesia e do teatro, estaríamos em presença de um caso de memória seletiva, o que não confirmaria a sua fama de grande cabeça (grande carola, dizem-lhe os mais chegados). A verdade é que há dias ouvi-o nomear, um a um, a quase totalidade dos alunos da sua turma do sétimo ano do liceu, terminado em mil novecentos e setenta e três – peço perdão pela maçada que vos pode causar tanta data, mas parece-me inevitável - quando alguém lhe mostrou uma foto de grupo. O mais interessante foi ele depois de dizer os nomes, alguns dos quais completos, ter ainda dito que faltavam ali o Hélder, o outro Nobre que é alentejano, a Margarida e o Salvador. E quando alguém interrogou, o Hélder? Ele respondeu sim, sim aquele gordinho que andava sempre cheio de miúdas à volta. Naquele jantar ninguém reparou, mas enquanto ele identificava os colegas da foto, estava a debater-se com um pequeno prato rapsódia, como ele gosta de dizer, onde pontificavam uma fatia de queijo de Serpa a esparramar-se prato fora de tão amanteigado que era, um pedaço de Roquefort  e uma tirinha de Queijo da Ilha. Sei que ele tinha estado antes a provar o Camembert mas não lhe gostou da cura e tinha também chamado a atenção do empregado porque o Serra que lhe trouxera não teria sido acondicionado em lugar apropriado e por isso o devolvera. Deu uma dentadinha numa cream caker sem sal, bebeu um gole de Duas Quintas branco, frio e de uma colheita recente e piscou-me o olho.

Sei que mais tarde ou mais cedo isto iria acontecer comigo. Ele já me tinha advertido que em qualquer momento seria inevitável. Digo-vos sinceramente que me esqueci do resto do texto.

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19 comentários:

  1. Claro que esqueceu o resto do texto. Também...com tanto queijo...

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  2. Agora imagina a memória que o teu amigo teria se não comesse tanto queijo, até do número de borbulhas que cada colega tinha se lembraria!

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  3. Constantino...esta sua duplamente ( pela qualidade dos queijos e conteúdo) deliciosa estória, fez-me lembrar aquele ditado popular: "uns comem os figos e a outros rebenta a boca"!!

    Então ele, o personagem, deleita-se com uma rapsódia de queijos capaz de rebentar com o fígado do mais forte, memória fresca que nem uma alface lá vai citando nomes e factos e o narrador é que tem o lapso de memória?! Nã...há aqui qualquer coisa que não bate certo.
    Não se aflija...

    Ó Constantino, acho que houve aqui uma pontinha de maldade da sua parte, peço desculpa.
    Vem-me fazer crescer água na boca com o queijo de Serpa, a troco de quê?

    Ainda por cima trouxe-me à memória a queijaria do Zé Bule, se não é este o nome é parecido.
    Quando terminavam de enformar os queijos e ficava aquele soro grosso, salgadinho e bom;
    lá vinha ele com a corneta berrante, anunciar para a rua. As mães iam a correr com as vasilhas buscar o "almece" e nós, garotada, à espera lambendo os beiços.

    Constantino, peço desculpa por estas divagações e se não quiser publicar o comentário, leia-o e arquive-o ou deite-o fora. Lamento, mas não resisti!
    Também quem o manda falar do queijo de Serpa?

    Beijinho

    Janita

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  4. Janita, já me fartei de rir com o seu comentário, mas eu juro, não tenho culpa de ele ser um glutão e para mim ficar apenas a espinhosa missão de narrar Ehehehe. Quanto ao almece quem gostava era a minha sogra, eu gosto mais do queijo mesmo. Ah desculpe, eu não... ele.

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  5. Eu não sou lá muito apreciadora de queijo, mas só não me esqueço da cabeça porque está presa ao pescoço. :)

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  6. eu gosto de queijo, mas não a tanto a ponto de afetar-me a memória...mas fui obrigada, no ensino fundamental, a decorar decassílabos e mais decassílabos do Camões! Que tortura! Não a tortura de decorar, mas a de ir na frente de todos e recitar!
    Depois, de adulta, trabalhei muitos anos com mala direta, usando um programa de computador. Resultado: sei o nome de todo mundo, com sobrenome e alguns até com endereço completo. Mas atualmente, sou incapaz de lembrar o número do meu celular. Cheguei à conclusão que hoje, pra me fazer lembrar algo, vão ter que me pagar e bem. Chega de trabalhar de graça!!
    Mas Camões, vais me desculpar, nunca mais. Ficou um trauma.

    bjs

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  7. fiquei a saber que nao tenho bolachas salgadas em casa

    Bjinhoss
    Paula

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  8. Uma bela viagem por memórias

    necessariamente inacabadas

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  9. Eheheh, há gente assim, que tem mesmo excelente memória. Em contrapartida há outra, que podendo ter feito o liceu todo na mesma turma, já nem se lembra da cara, nem do nome, nem das brincadeiras que fizeram em conjunto... :)

    Beijocas!

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  10. ahahah Janita, adorei seu comentário! A história é boa mas, o Constantino que me desculpe, seu comentário foi ainda melhor. Beijinhos para os dois

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  11. Uau! Esse aí é de dar inveja! :)

    Ótima e saborosa história (além de bem escrita, tem queijos e vinho... precisa mais?...rs)

    Parabéns, Constantino! Você é um excelente narrador!

    Beijinhosssssss

    Cid@

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  12. A memória varreu-se-me em definitivo ao provar um Duas Quintas branco (e gelado) com o queijo!

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  13. Constantino,
    li o comentário da minha amiga Anamaria e, sinceramente, sinto-me bastante constrangida.
    Pelo que conheço dela sei que, sendo uma pessoa extremamente educada e sensível, jamais o faria com a intenção de o depreciar. Pode acreditar!
    Vejo que ela ainda é pior do que eu nesse aspecto da sinceridade, pois há coisas que não devem ser ditas, pelo menos publicamente.
    Se o Constantino concordar, eu gostaria de deixar um comentário à Anamaria, a contradizê-la, tanto mais que considero o meu comentário absolutamente irrelevante face ao seu texto genial.
    Por favor, leia e não publique.
    Basta dizer-me, apenas,"concordo".
    Em nome dela lhe peço desculpa.
    Janita

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  14. Minhas queridas comentadoras, Janita e Anamaria,
    Sois livres de tecerem os comentários que vos proverem. Vocês são lindas na vossa forma de comentar e absolutamente genuínas. Não me magoa dizer a Anamaria que o comentário da Janita é superior ao texto. E porque não poderia ser? Estou perante comentadores, não só vós as duas, creiam-me com sinceridade, mas talvez perante os melhores comentadores da blogosfera, Por isso vos quero tanto. Sintam-se aqui como se do vosso próprio espaço estivesse a usufruir. Ósculos e amplexos do Constantino.

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  15. Uma história bem apaladada, adoro petiscar vários tipos de queijos. Como moral vou reter o seguinte:convém ter pouco contacto com os grandes apreciadores de queijo...então o que assiste é que fica sem memória!!!!
    Gostei

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  16. Saio daqui saciado com o texto, mas a salivar, porque sou um grande fã de queijos. E com um bom vinho a acompanhar... Bem, vou ali à cozinha peparar uma pequena ceia...
    Sou eu, o CBO do CR

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  17. Uma história bem substancial e nutritiva...porque adoro queijos, menos um que tem bolor ( esqueci-me do nome, vês a consequência?).

    Quanto à memória...ai meu amigo, no meu tempo ai de nós que não soubessemos na ponta língua "obras literárias portuguesas" e hoje sofre de uma certa alergia a Camões e outros hehehehe:)

    Beijocas

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