quarta-feira, 25 de maio de 2011

31. Águas


Quando o encontrei estava encolhido, de cócoras, por baixo de uma varanda. Acocorei-me a seu lado. Chovia torrencialmente.

Nos arredores havia dois hospitais. Um hospital, chamemos-lhe assim, normal, que curava desde as pneumonias às doenças do foro oftalmológico. Já lá tinha estado antes a visitar um familiar e de passagem como transporte de outro. O outro é um hospital de tratamento de doenças para pessoas com problemas psíquicos e mentais. Conheço-o bem por ter lá sido consultado algumas vezes. Quando lhe olhei para o casaco que trazia vestido não tive nenhuma dúvida. Ele era interno deste último e, pela cor da dita veste, estava autorizado a ausentar-se durante o dia.

Falamos da chuva que caía, da azáfama das pessoas, do caos em que o trânsito se estava a tornar. Do carro que teve de travar bruscamente para não bater no da frente, que tinha travado bruscamente porque outro, mais à frente, também travou bruscamente. Da idosa que transportava dois sacos demasiado pesados para ela e um guarda-chuva debaixo do braço, curvada ao peso dos sacos e sem poder abrir o guarda-chuva, seguia por baixo daquela carga de água como se nem sequer pingasse. Duma grávida de quase sete meses que atravessava apressada a estrada e de uma outra meio esgrouviada que atravessava para o outro lado sem olhar que outros carros poderiam, ou não, bruscamente travar. Falamos do buzinão que se instalou e do taxista, já velho, que buzinava frenético e gritava parem já com o barulho! Do gato amarelo com uma cauda listrada que espreitava na janela do quarto andar e do barco à vela que passava no ribeiro da enxurrada. Do carapau que voava, do pargo que por ali nadava, da manhosa da gaivota que esvoaçava com um sapo na boca, da velha que levava dois sacos mais pesados do que ela e que atravessou a estrada com o guarda-chuva fechado e do taxista que parou de buzinar mas não parou de gritar e gritou com a velha e gritou com a grávida e gritou com a esgrouviada. E falamos da rabanada de vento que fez a velha estremecer e a grávida retroceder e a esgrouviada que, coitada, com um bolo sem creme na mão deu à grávida um bocado porque, para ela, aquele rebento precisava ser alimentado. Mas quando passou a traineira, saiu do táxi uma passageira, caiu-lhe uma lula no chão e armou-se tamanha confusão naquela rua que apenas se abafou a barulheira com um estrondoso trovão e outra rajada de vento. E o taxista, já velho, calou-se e os carros destravaram.

Quando a chuva passou, eu que ainda estava acocorado ao lado dele ouvi-o perguntar-me com uma voz lúcida e um olhar brilhante se eu queria que ele me levasse ao hospital. Ao dele.

Texto e foto do autor. Todos os direitos reservados.

12 comentários:

  1. A pior das loucuras, são essas, que comentem os conscientes!

    Li certo livro um dia que dizia: "Os humanos me assombram"
    é isso... me assombram.

    Um abraço, Constantino!

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  2. Uma verdadeira loucura a prosa poética desta narrativa...

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  3. narrativa bem conseguida. que me deixa a meditar nas palavras aqui escritas.

    boa semana!

    beij

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  4. Quem são e onde estão os verdadeiros loucos? um momento de lucidez total atingido quando se para a ver o que acontece a volta atraves de uma janela.
    Parabens pelo texto. Abraços

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  5. Oi Gracinha, fiquei tão feliz por ver vc aqui no meu blog. Beijo.

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  6. Para mim a normalidade é uma loucura...

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  7. Olá Constantino!

    Sabe que, às vezes e na falta de ter alguém acocorado a meu lado, também sinto vontade de me perguntar: e a louca sou eu?-))
    Quiçá loucura consciente!

    Esta foi uma bela prosa que me soube a poesia, sabia?

    Beijinho e obrigada por nos privilegiar com o seu enorme talento.

    Janita

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  8. @todas e todos que me comentam:

    às vezes sinto-me constrangido com a vossa enorme simpatia, mas tenho que vos dizer que me sabe tão bem ler os vossos comentários. Muito obrigado.

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  9. Não fiques constrangido, Constantino, o texto está mesmo muito bom, recorda-nos que a qualquer momento podemos passar da lucidez à loucura, dependendo das circunstâncias... :)

    Beijocas!

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  10. Um nonsense com todo o sentido!
    E a vida não é um nonsense completo?!

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  11. A maior grandeza do ser humano é saber pôr-se ao nível dos outros e perceber o porquê do porquê do seu estado, porque a maioria finge sempre que não viu nem vê nada, principalmente o que nos pode trazer ou dar trabalho.

    Enquanto lia gargalhei, coitado era doente mental e fizeste e deste o teu melhor e nada mais gratificante ver e sentir "um olhar brilhante e uma voz mais lúcida!

    Ficcionado ou não ADOREI.

    Nada ficcionado, tive algo parecido há uns tempões, com um velhote sentado na berma de um passeio. Chorava e disse-lhe para sair dali...não me ouviu...e sentei-me ao lado dele e perguntei...quer falar ou desabafar? Diga o que precisa para ver se o posso ajudar.
    Ohhhhhh pá...chorou, desabafou, não fiz qualquer pergunta mas dizia-lhe o que pensava e às tantas ergueu-se porque se sentia mais leve.
    Tomámos um café e fiz questão de lhe oferecer.
    Depois vim eu a chorar para casa, o que contive enquanto o ouvia...porque não há maior dor no mundo que é a "morte de um filho" e aquela alma precisava de alguém que o ouvisse! Tão simples...como isso e é essa indiferença pelo que nos rodeia que faz vazios tão profundos nas sociedades ditas modernas!

    Uma beijoca:)

    Fatyly

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