segunda-feira, 23 de maio de 2011

30. Noites



Ele é uma pessoa de princípios e de Fé. De muita Fé. Católico por nascimento, logo foi iniciado nas lides da ICAR tendo sido batizado, feito a primeira comunhão, os quatro livros da catequese e o crisma. Casou uns anos mais tarde na Igreja do Sagrado Coração de Jesus com Matilde que não tinha nem os mesmos princípios, nem a mesma Fé e, fazendo tábua rasa do que o sacerdote que lhes celebrou o matrimónio enunciou, fugiu poucos meses mais tarde com um cabo-verdiano bem constituído fisicamente e quiçá possuidor de outros dotes que ele talvez não tivesse. Nem isso lhe abalou a Fé, antes pelo contrário, fê-lo acreditar mais nos desígnios de Deus e estes eram inabaláveis. Por princípio e boa educação nunca recriminou Matilde nem o cabo-verdiano. Lembrava-se sempre, lá em casa, quando solteiro, da devoção à Virgem e aos Santos e da Fé que movia toda aquela família, pai, mãe, quatro filhas e três filhos dos quais era ele o mais novo. E se a superstição e a crença popular diz que o sétimo filho seria dotado de talentos especiais, na sua casa a porta estava fechada a todas essas crendices. Ele era uma pessoa absolutamente normal. A sorte e o azar não faziam parte da sua cultura, a superstição era inimiga da Fé, todo o destino está nas mãos do Senhor. E era por tudo isso que ele nunca tinha jogado na lotaria, nunca tinha preenchido um boletim do totoloto, nunca tinha raspado os trevos de uma raspadinha. Jogo não.

Mais de uma mão cheia de cafés por dia faziam com que ele se mantivesse desperto mais do que o corpo deveria resistir. Seria essa a razão, ele assim o achava, pela qual de vez em quando tinha noites difíceis de pregar olho. Numa dessa noites veio-lhe à cabeça sem mais nem menos e sem se saber de onde, o número cento e trinta e três. Por mais que tentasse retrospectar não encontrava a origem daquele pensamento e foi com ele que tentou adormecer. Dificilmente colou as sobrancelhas, mas as duas horas em que o sono lhe venceu a cafeína foram povoadas de sonhos em torno do número cento e trinta e três.

Abriu a caixa de correio. Uma carta da coletividade da sua área de residência, da qual se tinha tornado sócio havia mais de vinte anos, iria agora comemorar o seu centenário e, entre a pompa e a circunstância que o ato merece, seriam entregues os novos cartões de sócio, renumerados em cada dezena de anos. O seu novo número seria o cento e trinta e três. Tentou não dar importância ao fato, mas em vão. E porque tinha ainda que passar na repartição de Finanças para um esclarecimento sobre impostos, só desejou que a senha de atendimento não tivesse o número cento e trinta e três. Quis o acaso, que sim, que fora exatamente esse o número que lhe calhou em vez. (Neste preciso momento entra-lhe em cena Gabriel Garcia Marques e o seu Cem Anos de Solidão que tinha lido havia já um bom par de anos. Aureliano e seu pai José Arcádio Buéndia, viram voar a alcofa onde dormia Amaranta sem que ninguém lhe tocasse e numa caçarola de cobre a água fervia fora do lume. Entenderam isso como uma premonição, algo iria acontecer e, a verdade é que no dia seguinte, Úrsula que tinha desaparecido havia mais de cinco meses, sem ter deixado recado e de nunca mais se ter ouvido falar nela, regressou a casa). Juntou a informação obtida nas Finanças ao convite da coletividade e saiu à procura de um cauteleiro. Nem o primeiro, nem o segundo  tinham qualquer fração terminada em cento e trinta e três. Nem mesmo no quiosque da esquina. E logo hoje que “andaria à roda” e ele já estava tão atrasado para o emprego. Mas haveria de encontrar tão premonitório número. E assim, intrometendo-se no seu caminho um cauteleiro mulato, dir-se-ia que cabo-verdiano, o que lhe trouxe à memória outras datas e novas congeminações, comprou o primeiro número que da resma de cautelas na mão do cauteleiro sobressaía. A sua cautela ostentava o bonito número treze mil cento e trinta e três.

Não sabemos em que número saiu a lotaria mas ele não teve essa sorte.  Mas voltou a ter Fé. Compraria de novo na semana seguinte. Queria apenas dormir descansado.

Texto e foto (Mértola) do autor. Todos os direitos reservados.

14 comentários:

  1. Quem sabe se algum dia terá sorte com o número cento e trinta e três... é que há coisas “levadas da breca”! : )

    ResponderEliminar
  2. Ah que pena! pensei que o final seria feliz e o número premiado.
    A fé é importante , sem ela a vida fica mais cruel.
    abraços Constantino um bom café agora me faria bem rs
    é bem noite e o sono me pegando, queiria também sonhar com um número qualquer ... rs

    ResponderEliminar
  3. Constantino, correndo o risco de me repetir, este foi mais um texto seu que me deu o maior prazer ler.
    Gostei muito da alusão ao meu escritor de eleição e aos Cem Anos de Solidão, que também li há um bom par de anos.
    Constantino, eu sei que prometi e juro que estou a tentar domesticar este meu ímpeto, mas vou morrer entalada se não lhe disser que me fartei de rir com essa do nosso paciente herói não ter conseguido unir as "sobrancelhas" naquela noite terrível de insónia...e não digo mais nada!
    A porta de casa dele podia estar fechada a crendices e superstições, mas que o homem, como sétimo filho ou não, foi dotado de um dom especial, lá isso foi! Com sangue de barata!!
    Então a Matilde faz-lhe uma cachorrada dessas e ele nem se revolta? Não digo que perdesse a Fé, porque Deus não tem culpa dos desatinos pecadores duns e doutros, mas nisto de traições não pode haver princípios nem boa educação que perdoe.
    Bem feito, não lhe ter saído a sorte grande!

    Constantino, quando olhei para essa imagem, belíssima, vi logo que era do meu Alentejo.
    Parabéns!
    Um abraço.
    Janita

    ResponderEliminar
  4. Oi,


    Vim agradecer a visita...
    Concordo que muitas instituições são puramente capitalistas,

    Mas que fique a mensagem,


    Um beijo!

    ResponderEliminar
  5. Pessoa metódica, mas prevenida como nosso "herói" se acautela nas possibilidades. È a Fé inabalável que o move e garante-lhe a esperança renovada nas coisas e nas pessoas.
    Comovente e cada vez mais raro de se encontrar.
    Agradeço a simpática visita. Desejo-lhe uma semana de boa sorte, Constantino.
    Um abraço,
    Calu

    ResponderEliminar
  6. Eu também sou possuidor dessa Fé... não na Icar, mas em que me saia qualquer coisinha nas apostas que faço semanalmente!
    Adorei o trocadilho final!

    ResponderEliminar
  7. Olá

    Li de um fôlego e adorei o final.

    Como sou muito pessimista, jogo sempe sem fé...mas vou jogando...talvez seja a tal fé!

    Ahhhh...a foto foi tirada no Porto numa ruela perto de S. Bento.

    Bjs.

    ResponderEliminar
  8. Amei sua histórinha!

    Você tem o dom de nos "pegar pela mão" e nos levar até o final em um fôlego só.

    Parabéns pelo dom, Constantino!
    Já lhe parabenizei outras vezes, mas nunca é demais :)

    Tenha uma bela semana, com muita FÉ e SORTE!
    :)))

    Beijokas

    Cid@

    ResponderEliminar
  9. Ahahah, era só para dormir descansado que comprava a lotaria?! Pois, afinal já não era pecado... :)))

    Mas quer dizer, quando um homem vive tão dentro dessa redoma da religião, que não o deixa fazer nada de prazeiroso, também se compreende que se arranje uma desculpa para uma escapadela às "regras"! :D

    Beijocas!

    ResponderEliminar
  10. Constantino, como gosto de o visitar, venho eu trazer a resposta à sua pergunta.
    Eu nasci em Vila Nova de São Bento. Mas é Serpa que considero como a minha terra, uma vez que fui para lá ainda bebé e ser aí que começam as minhas primeiras memórias.
    Em Mértola vive uma sobrinha, há bastantes anos e adora lá estar, embora tenha nascido aqui no Porto. Foi para lá contrariada, depois de casar, e hoje é ela que não quer de lá sair.

    Constantino, como tudo aquilo que publica é de sua autoria, penso que a bonita estrofe que me deixou também o seja. Ainda pensei que fosse do Cesário, mas já folheei o livro (único publicado)de fio a pavio e não a vejo.
    Obrigada!

    Janita

    ResponderEliminar
  11. Texto genial.
    Blog revelador de grande talento para a escrita.
    ADOREI LER.

    ResponderEliminar
  12. Certa vez, a pedidos insistentes de um amigo, fui a uma cartomante. Como eu não fui clara em meus anseios - que, afinal, não tinha nenhum em relação a cartomantes- ela começou me dizendo que havia muitas noites em que eu punha a cabeça no travesseiro e não dormia.
    Bom, como isso é verdade pra mim e pra torcida do corinthians - que é imensa- eu fui embora.
    Pra saber do óbvio não é necessário ter fé.
    Fé é acreditar naquilo que não se vê, não se cheira, não se come nem se bebe e não obstante, dizem que pode mudar a vida.
    Nunca encontrei tal substância.
    E melhorei muito minhas noites de sono com técnicas de relaxamento.
    Hoje não acho que seja necessário ter fé.
    É necessário ter um bom fisioterapeuta.

    ResponderEliminar
  13. gosto do facto de conseguir fazer a minha propria sorte

    Bjinhos
    Paula

    ResponderEliminar
  14. Todo o ser humano tem a sua própria "Fé" que eu prefiro chamar "ACREDITAR" em algo, independentemente ou dependentemente de qualquer religiosidade, fazendo uso dela quer nos momentos bons, quer nos maus, como a do personagem deste conto!

    "maray" diz....(...) "Hoje não acho que seja necessário ter fé. É necessário ter um bom fisioterapeuta."

    e é precisamente disto de que falo...de que serve um bom fisioterapeuta se à partida eu não acredito nele? Só funciona sim, se eu acreditar!

    Em tudo na vida a base é essa...Fé ou Acreditar e uma tremenda dose de optimismo...tudo se vencerá e mesmo de trombas no chão...logo, logo levantamo-nos, sacudimos a poeira e seguimos em frente!

    Gostei imenso desta lição de vida...com esperança de que melhores dias virão!


    Fatyly (que raio de coisa apareceu aqui, estarei desactivada? lol)

    ResponderEliminar