domingo, 25 de novembro de 2012

180. A coleção de cromos da D. Micá




O que se passou esta semana em casa de D. Micá é absolutamente indescritível. E hesitei muito em vos contar. Conhecem aquele dilema do conta-não-conta? Pois foi, fiquei com uma enorme vontade de vos contar mas também com um desmedido receio de que não acreditem em nenhuma das palavras que vos escreverei aqui. Mas, como já puderam constatar ao longo destes meus relatos em casa da também indescritível, passe a repetição do vocábulo, D. Micá, tirando a história da vida de D. Bonifácio d’Assunção, que a própria conta, nada há aqui que possa ser considerado inverosímil. E por falar em indescritível (lá estou eu a dar-lhe), quase que tinha vontade, antes de contar o que me propus, de dizer como estava deslumbrante a D. Micá, nessa noite. Mas não mais vou adiantar pois senão perder-me-ei do essencial. Se depois surgir a oportunidade falarei do novo Ana Salazar com que nos recebeu e do solitário de Neil Cane que trazia no anelar da mão direita. Foi no entanto uma noite hilariante e simultaneamente muito constrangedora. Principalmente para uma pessoa como eu. Por mero acaso o meu amigo Eduardo Aragão, que tem uma história de vida interessantíssima e que um dia destes ainda a contarei por aqui, não estava presente, poi se estivesse imagino como reagiria.

Até agora tudo parece muito confuso mas eu tentarei esclarecer o melhor possível, se para isso tiver engenho. Apesar da situação hilariante que vos vou descrever eu disse que a coisa, também se tornou constrangedora. Agora, cabe-vos a vós inteirarem-se de porque é que eu assim a classifico.

Foi a primeira vez que os vi por lá e não os conheço. Quando o Columbano Queirós me foi apresentado, estendeu-me a mão e disse, o trivial nestas circunstâncias:

- ulumbano eirós, muito prazer.

Peço desculpa por o confessar, mas deu-me uma vontade tremenda de me rir. Não que uma pessoa não possa falar sem o C numa palavra. Ou o Q, naturalmente. Mas uma pessoa que foi batizada como Columbano e que ainda haveria de ter como apelido Queirós, é que logo no seu desenvolvimento oral lhe haveria de acontecer não pronunciar o C. Na verdade eu próprio tenho um familiar que não pronuncia esse som e que, por ironia do destino, se chama Carlos. Mas, do mal, o menos. O seu apelido é Fernandes e a questão atenua-se. Estava eu com estas considerações com D. Micá quando ela me disse que para cúmulo o Columbano, não só se chama Columbano, como também tem como apelidos Cortes Queirós. Não houve compostura que resistisse e desatei-me a rir, de tal maneira que me engasguei e quase sufoquei. Felizmente estava presente um outro amigo de D. Micá que logo ali me socorreu. Embora não fosse das minhas relações já tinha visto, salvo erro na Baixa, uma placa do seu consultório, talvez na Rua dos Douradores, Luís Lacerda – Otorrinolaringologista. Pois já sei o que estão a pensar. Devem estar neste momento a pensar se o Constantino não vai aqui dizer que o homem não pronuncia o L. Na mouche. Simpático e desinibido o dr. Luís Lacerda ordenou-me «uevante os braços, senão está uichado». Bom, só faltava mesmo que o dr. Luís Lacerda se chamasse Luís Lopes Lacerda. Já seria demais. E enquanto pensava nisto, a D. Micá, quis inteirar-se do meu estado de saúde, trouxe-me um copo de leite magro com chocolate e um cacauzinho quente, que o tempo já convida, perguntando-me qual preferiria mas, antes que eu respondesse, atirei:

- Não me vai dizer que o homem se chama Lopes. 

Pois, desta vez pude tomar o cacau à vontade. Ela disse-me que não sabia, mas que tudo levaria a crer que não. Seria uma grande coincidência e aí sim, ninguém iria acreditar em mim quando eu o contasse. E estávamos nós nisto quando um tipo de fato escuro e gravata berrante, com um bigode à Emiliano Zapata e brilhantina na cabeça (acho que exagero, seria talvez wet gel), ar de vendedor de automóveis, dá uma palmada nas costas do otorrinolaringologista, que mais me apeteceria dizer otorrinouaringuogista, e saúda-o em voz alta, para quem o quis ouvir:

- Estás pogueigo ó Lopes, ou não quegues dizêgue?

Ao que o nosso médico especialista retorquiu:

- Oha o Rui Guiuerme. Bons ohos te vejam!

Eu deixei cair o cacau em cheio em cima de um tapete novo, um persa genuíno, que D. Micá tinha adquirido numa bienal em S. Bartolomeu de Messines, ficando ainda mais constrangido com o que tinha acabado de acontecer do que com o facto de me querer rir e não poder, tão perto que estávamos dos protagonistas. Só fiquei mais descansado porque a D. Micá logo me disse «não se preocupe Constantino, não tem importância». Afastamo-nos os dois enquanto uma rapariga, loira e muito branquinha, que falava com sotaque ucraniano, ia limpando tapete e chão para onde também tinha espirrado o meu copo de cacau quente. O vendedor de automóveis chamava-se Rui Guilherme ou, na sua própria maneira de dizer, Gui Guilhégueme.

Tenho a certeza de que quando eu for contar isto ao meu amigo Eduardo Aragão, jocoso como ele é, não só me vai dizer que eu poderia ter arranjado melhor, que poderia ter arranjado um tipo que não falasse com nenhuma daquelas três letras, que se chamasse Rui Luís Columbano Guilherme de Lopes Lacerda e Cortes Queirós. E no fim ainda remataria: “E que fosse gago”.

12 comentários:

  1. Deixe lá a jocosidade do Eduardo Aragão ... tudo o que é demais enjoa! O seu equilíbrio está muito bem. :)) E olhe que a D. Micá estaria muito bem como personagem queirosiana. :)

    Nota: Prefiro o Saramago dos últimos tempos.

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    1. Pois eu já Saramaguei muito e continuo a gostar do autor. E quanto à D. Micá ainda vamos ter grandes surpresas.

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  2. Ai, Constantinho, eu admiro-te a pachorra para esses serões na casa da D. Micá!
    Deixaste a tasca do Ismael Gúsman para entrar nessas reuniões da socialite, será que andas com aspirações a comprar algum título de nobreza e andas já a praticar?
    Isto agora já não nada que não se compre, desde canudos de licenciaturas a brazões!!

    Já sabes que eu sou uma mocinha do povo e é no meio do povo que me sinto bem. Lá quero saber das roupas, tipo cigana, da Ana Salazar, mas tu agora só queres saber de finesses...

    Ah, eu conheci uma pessoa que Deus a tenha em sua companhia, que não pronunciava o L. Ainda por cima era um adepto fanático da boa...

    Beijocas, Constantino!

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    1. Sete facadas e carapaus de escabeche, o livro que conta as peripécias na tasca de Ismael Gusmán, o crime da Rua dos Correiros e os contos eróticos de Francisca, está quase a sair. Segundo a editora será em meados de Dezembro.
      Micá é outra história...
      Beijocas.

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  3. Esqueci-me de te dizer que tens uma bela garrafeira. :))

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  4. Adorei o post **

    http://tryinghard-to-forgetyou.blogspot.pt/2012/11/my-heart-beats-only-for-you.html novo textinho , dá opinião (: *

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  5. Isto é tramado...o meu apelido é Queirós e tenho um irmão Carlos fiquei presa ao pensamento de que nos podia ter acontecido o mesmo e não consegui ler o resto...e já é a segunda vez que tento

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  6. Eu já conhecia a D. Micá de outros seus escritos anteriores, mas o tempo tem-me obrigado a passar por aqui, ler e sair em silêncio. Hoje, um pouco mais descontraído e depois de umas boas gargalhadas, quero dizer-lhe que os serões em casa da D. Micá devem ser fantásticos. Mas cuidado com o leite com chocolate, por causa do IVA!
    Abraço e bom fds

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    1. Amigo Carlos, vale a pena, com a negridão que nos governa que encontremos momentos para sorrir. vale sim.
      Uma abraço.

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  7. Depois de dar umas boas gargalhadas deu-me para investigar se no grupo dos meus relacionamentos haviam Queirós, Guilhermes ou Carlos, de facto encontrei alguns e pus-me a ensaiar baixinho como seria a minha gaguez se chamasse a minha amiga Arla Adaveira e uns quantos mais, que deram para passar aqui largos minutos de sorriso de orelha a orelha.
    Pogueigo Vítor, ostei:)))

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