domingo, 18 de novembro de 2012

179. Eu também era capaz de me arrepiar




Eduardo Aragão, o meu grande amigo de quem vos falarei um dia mal o tempo mo permita, teve alguns problemas na vida que o deixaram, como na gíria se poderia dizer, a bater mal da bola. Nessa época e apesar da crise porque passava, só lhe apetecia namorar. Infelizmente para a sua relação com Maria do Carmo Centelho de Albuquerque e Silva, uma moça da classe média alta, gerente de uma cadeia de distribuição de cosméticos, filha de um ex-secretário de Estado e neta de um maçon de grande nomeada na nossa praça, esta sua tendência para outras saias que não as da esposa e o pior, porque se enrabichava frequentemente com mulheres casadas, isto não eram comportamentos toleráveis. Mas de Eduardo Aragão, não vos falarei agora já que o que mesmo me interessa é contar-vos o que D. Micá nos narrou sobre aquela ida de D. Bonifácio d’Assunção à quinta, numa noite de tempestade, negra como breu e com Aristides a queixar-se do reumático. Então se o objetivo não era contar-vos a vida do meu amigo Eduardo, porque é que eu comecei este capítulo falando nele? A coisa é simples de explicar, mas terei de deixar um pouco mais para o fim, para manter o suspense.

Ora, D. Micá, empolgava-se sempre que falava de D. Bonifácio. Que se saiba nunca houve qualquer relação entre este fleumático senhor e o empreendedor Jovelino Azeredo, pai de D. Micá e comendador, ele mesmo o congregador da confraria do leite magro com chocolate. E se se empolgava, não se sabe porquê pois tudo leva a crer que, sendo D. Micá uma excelente contadora de histórias cor-de-rosa, episódios passados sob chuva torrencial, trovoada imensa e ensurdecedora, raios que riscam os céus, capazes de fazer em carvão qualquer sobreiro por mais altaneiro e produtivo que seja, ou qualquer gigantesca araucária por mais que o seu porte imponente tente dominar o parque, o jardim, a quinta ou o cerrado, ela não estaria na sua praia quando se tinha de referir a espíritos, fantasmas, almas passeantes, conversas com o além. E sobretudo, histórias que tenham velas que não sejam para alumiar o caminho de uma princesa ao altar, nunca foram ao que D. Micá mais se dedicou.

E foi, apesar do já referido supra, que D. Micá, hoje vestida com um par de calças branco, bem justo que não só lhe realçava os glúteos, mas também deixava transparecer os contornos de uma cueca em asa delta, deixando alguns dos paspalhões dos seus amigos com a água na boca, isto para não dizer que os whiskies ou os conhaques, tomados a certas horas, quando provavelmente já deveriam estar a preparar um copinho de leite magro e aquele comprimido para a enxaqueca, de roupão e chinelas, já com o pijama vestido, se toma nestas noites de outono, tem destas coisas e faz pensar em alcançar o inatingível, pois todos sabemos que D. Micá não é senhora dessas coisas.

«Sem receito, cabeça levantada, D. Bonifácio retomou o curto caminho. Agora a chuva intensificava-se e o pastor belga dava alguns sinais de inquietação. Começou a ladrar. Começou a ladrar forte. Um relâmpago iluminou todo o átrio em frente da ampla porta da mansão. Não havia dúvidas. Desta vez não havia dúvidas. O cão ladrou, o relâmpago deu luz aos céus, o trovão ecoou no cerro que de dia se vislumbra nas traseiras. Antonieta, a esbelta Antonieta, imota no cimo da escadaria. Serena, como serena foi levando a sua vida. Uma vida ceifada quando ainda não tinha completado trinta anos. Testemunhas, Ermelinda, Juvenália e Facinho. Ermelinda a parteira chamada às pressas por D. Bonifácio seu esposo. Juvenália a criada de quarto que foi também ama-de-leite da senhora e ali a viu desfalecer. Facinho que chorou quando nasceu. Chorou também a morte da mãe, a linda, a esbelta Antonieta».

Eduardo Aragão estava arrepiado. Puxou do lenço de seda amarelo com estampagens em azul, com certeza um Dior, que lhe pendia do bolso superior do casaco e limpou algumas gotas de suor que lhe surgiam na fronte. Virou de uma só vez o copo de Johnny Walker, black label, pediu licença para sair, despediu-se com um aceno. No hall de entrada, decorado com uma pequena escultura, em mármore, de Cutileiro ou imitação, chamou um táxi pelo celular. Antonieta era uma mulher casada, quando, ainda adolescente a namorou. Durante uns anos nada soube dela. No dia em que ela foi a enterrar, encostado a uma árvore, a muitos metros do jazigo dos D’Assunção, puxou por um cigarro e fumou.

19 comentários:

  1. Então Eduardo Aragão soube da morte da antiga amante nas conversas de salão da D. Micá? Será que ficou na dúvida se a criança seria sua? Ah, pois é, quem anda à chuva molha-se... ;)

    Beijocas!

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    1. Não Teté. O Eduardo soube da morte de Antonieta e até assistiu ao funeral à distância. O arrepio é não só porque D. Micá está a incluí-la na história que está a contar, mas também pelo facto de ela aparecer agora, como um fantasma.

      Beijinho.

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  2. :))))))

    Agora fizeste-me lembrar o Vasquinho no seu exame de medicina em que deixou todos de queixo caído quando "até soube o que era o esternocleidomastóideo...." :))

    Tu também até sabes o que são cuecas em asa delta, imagine-se. Eheheheheh.

    Amanhã venho ler isto melhor que é para não fazer confusões, como a Teté. :)

    Bejocas!

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  3. Vítor Fernandes, andei tão afastada da blogosfera que até me perdi, então estou retomando as minhas leituras, aos poucos...
    Vou atualizando sempre que possível.

    ;)

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  4. Sinceramente, não sei porque razão Eduardo Aragão se arrepiou tanto!
    Como tu dizes que o homem teve problemas que o deixaram a bater mal da bola, deve ter a consciência muito pesada.
    No entanto, quem viu a bela aparição no cimo das escadaria, foi D. Bonifácio. Ora quem nos garante que essa dita cuja esbelta figura era a de Antonieta?
    Tu, como bom amigo do Aragão, de quem nos hás-de falar um dia, devias aconselhá-lo a deixar de frequentar os saraus da chanfrada da D. Micá. Já não lhe bastavam os remorsos que o consumiam e agora ainda vai ter de conviver com um fantasma?
    Assim não dá! É por essas e por outras que a Micá não me caiu no goto...
    Boa semana, Constantino.

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    1. Ai Janita, minha querida, não sejas assim. Então a D. Micá que é uma exímia contadora de histórias cor-de-rosa tem lá a coitada culpa das pancadas do Eduardo...

      Beijocas.

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  5. Ansiosa por saber o que vai a Maria do Carmo Coisa e Tal fazer ao Eduardo! : )

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    1. Ai no dia em que eu contar a história do meu amigo Eduardo, isto vai ser um arraso.

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  6. cuecas de ...asa delta? eu chamo cuecas de gola alta
    kis .=)

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  7. A Dª. Micá é de feiticeira e adora os dotes físicos mas também de atormentar os Eduardos mulherengos.:)

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    1. E do jeito que o Eduardo é... bom, mas isso fica para outra altura :)

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  8. E eu que tinha a ideia de que D. Micá era uma senhora bem composta e longe de mim imaginá-la de cuequinhas de asa delta. Sempre a surpreender Constantino!

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    1. Manu, ela é uma mulher moderna de altos atributos e bom gosto.

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