domingo, 11 de novembro de 2012

178. A janela de Efigénia



Passou a correr Marieta, a chuva começava a cair. Molhou os sapatos numa poça de água à beira do passeio. Molhou os peúgos brancos que lhe chegavam ao joelho. Não molhou a saia, Marietta. Disse-lhe adeus através dos vidros fechados. Marieta sorriu e agitou o braço. Marieta ainda corria e desapareceu na esquina da rua. Pedalava lento o Pedrito saboreando a chuva miudinha que lhe salpicava as melenas. Sentiu água nas grandes pestanas e sorriu a pensar que se Idalisa ali estivesse lhe beijaria as pálpebras, saboreando o salobro da água da chuva nas suas pestanas reviradas. Idalisa não estava nem passou por ali. D. Leopoldina carregava dois sacos, um em cada mão. Em passo lento, curvada nos seus quase oitenta anos, não lhe incomodava a cacimba. Nos ombros o casaco de malha já pesava alguns gramas mais, mas isso era o menos. Tomara que Pedrito ou Idalisa por ela passassem e a ajudassem na carga. Pedrito já tinha passado. Idalisa não iria passar. Passou um cão branco de pelo encaracolado, pequeno e irrequieto, sem o dono. Passou um dono depois com calça de golfe, quadrados largos, de tecido escocês, usava um boné, fumava cachimbo, sem o cão. Cão e dono se encontrariam já depois da curva da rua que se fazia para a esquerda. Ele levantaria a patita de trás e mijaria contra um candeeiro. Ou contra uma árvore. O cão. À direita tinha uma esquina por onde se tinha deixado de ver Marieta. À esquerda tinha uma curva por onde se tinha deixado de ver o cão e o dono do cão. Antes da curva o dono voltou-se e olhou para cima. Estendeu o braço e virou a mão, primeiro a palma para cima depois virou-a de novo e as costas da mão ficaram viradas para as nuvens. Tirou o chapéu e coçou a cabeça. Assobiou duas vezes em silvos estridentes. O cão branco, de encaracolado pelo, não se lhe chegou. Limpou a água, que lhe tinha molhado as costas da mão, à perna da calça de lã escocesa, quadrados verde e pretos desenhados a linhas amarelas. Não o conhecia por isso não lhe acenou. Mas acenou a D. Leopoldina, que de curva nas costas e olhos no chão não lhe reparou no gesto. Não retribuiu o aceno D. Leopoldina, nem o Camilo da lambreta que hoje vinha a pé. Às quartas-feiras folga o Camilo da lambreta que trabalha na pastelaria do senhor Francisco Sebastião. O Camilo da lambreta vai e volta do emprego sempre de lambreta. Mora a oitenta metros da pastelaria e diz que é porque não quer que a lambreta se não habitue a não trabalhar. Também lhe chamam Camilo padeiro mas ele afina porque diz não ser padeiro, mas sim pasteleiro. Talvez por isso, para que não seja incomodado pelo caminho, se desloca de lambreta. Hoje vinha a pé porque era quarta-feira. Quando alguém, às quartas-feiras se lhe dirige, clamando-o como Camilo padeiro, ele não responde. À quarta-feira ele está totalmente de folga. Não é nem padeiro, nem pasteleiro, nem tem de se justificar. Passou um casal de namorados, já a chuva tinha parado. Ainda assim, enquanto ele segurava um guarda-chuva de cor grená, aberto por cima das suas cabeças, mas não necessário, pois já não chovia, ela abraçava-o pela cintura para que se não afastasse de modo que o guarda-chuva cumprisse a sua função quando fosse caso de ter função para cumprir. E como não era de facto necessário, aproveitaram para se beijarem. O guarda-chuva tapou-lhes a visão da vidraça da janela, onde entre vidros, que agora já podiam ser abertos, ela os observava e os cumprimentava. Por isso não lhes acenou e por isso eles não lhe acenaram. Abriu a janela. Chegou-se à sacada. Um gato miava na varanda da vizinha. A vizinha não estava, o gato estava. Só. A janela fechada, o gato na varanda. O gato queria saltar e a altura, tal como qualquer desmancha-prazeres a desmotivá-lo. A água da chuva, que lhe caíra no pelo, desconfortava-o. Ela teve pena do gato e mandou-lhe uma carícia verbal. Chamou-lhe Tareco e se assim lhe chamou é porque era Tareco. Para ela todos os gatos são Tarecos, todos os cães são Bobis. Um Bobi de pelo encaracolado branco regressava agora vindo da curva da estrada e atrás dele, também com as pontas dos cabelos encaracolados e ruivos, o dono com um cachimbo apagado no canto da boca, vestindo calças escocesas e assobiando Flower of Scotland. Um Bife. Para ela todos os estrangeiros são Bifes. Todos os cães são Bobis e todos os gatos, Tarecos. Passou um amola-tesouras com calças de bombazina e uma flauta de beiço. Reparava guarda-chuvas, pano e varetas e afiava facas. Punha rebites em tachos de alumínio. Ela recuou 30 anos. Há trinta anos, da mesma janela via a peixeira passar com a canastra à cabeça, apregoando sardinhas, carapaus e chaputas frescas. Via passar um chinês com uma corrente de couro ao pescoço onde se suspendia um suporte de gravatas. O chinês apregoava gravatas substituindo o erre pelo ele. Achava glaça ouvir o chinês. O ardina apregoava o Século pela manhã e voltava à tarde para vender o Lisboa e o Popular. Vendiam-se figos da capa-rota e passava todas as tardes o senhor Gervásio que já faleceu, para visitar a mãezinha dele que também já morreu. Hoje lembrou-se do senhor Gervásio quando viu a neta dele, a Henriqueta. Coitadinha, caiu na vida, mas é tão simpática. Disse-lhe adeus, como lhe diz todas as manhãs, bem junto ao meio-dia quando sai para tomar o pequeno almoço. De manhã não se aperalta, mas à tardinha sai sempre de minissaia e botas altas. Seja verão, seja inverno. Parara de chover e o passeio estava escorregadio. Passou o 42 que parou na paragem em frente ao consultório do dentista. Entraram duas pessoas que ela não reconheceu e saiu a D. Evita da veterinária. Pôs mal o pé, espalhou-se ao comprido. Ficou toda molhada e um pouco enlameada. Benfeita, pois tinha sido por culpa dela que passou uma tarde da semana passada a chorar. Não lhe salvou o Bobi, coitadinho, o seu melhor amigo.

D. Micá pediu a Efigénia que lhe ajudasse a animar o serão. Efigénia não era uma pessoa alegre. Ainda era relativamente jovem, não tinha sequer completado os cinquenta. Era solteirona e fazia garbo nisso. Dizia que não queria sentir a trela de um dono. Se nem o Bobi usou trela… Efigénia sempre disse que não sabia contar histórias que não tinha o dom de D. Micá, que a sua vida não daria um filme. «Ó, mulher, conte o que vê quando vai à janela», disse em voz alta o meu amigo Eduardo Aragão, de quem um dia vos falarei. E Efigénia contou.


12 comentários:

  1. estórias que se entrelaçam...

    interessante.

    um beijo

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  2. Ai, Constantino, com tantas passagens para cá e pra lá de tanta gente que passa pla frente da janela da Efigénia, isso dava para faser uma longa metragem.
    Faz muito bem o Camilo em dar gás à lambreta. Oitenta metros para lá mais oitenta para cá, já é uma canseira.

    Quer-me cá parecer que vou gostar mais das histórias da Efigénia, é mais alegre e não é má língua como a emproada da D. Micá!

    Tens que lhe perguntar porque razão a Henriqueta, coitadinha, caiu na vida. Então o avô não soube tomar conta da neta? Tomara que para o próximo episódio a vidraça não esteja tão embaciada....muito eu gostava de ver esse bife no pão, de calças escocesas, cachimbo apagado e a assbiar essa tal "Flower of Scotland"...

    Ai, quem me dera que a minha rua fosse assim movimentada e eu tivesse tempo para estar à janela, havias de ver as estórias que eu contava, assim...nunca tenho nada de interesse para contar.

    Dá lá um beijo ao pessoal e mando outro para ti.

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    1. A D. Micá é uma boa senhora. Um dia destes apresento-ta.
      Beijocas.

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  3. Uma rua muito movimentada quer chova ou não.
    Que contador de estórias! : )

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  4. Um autêntico corropio por entre os pingos de chuva de gente que passa que tem sempre um pormenor ou outro que até parece banal, mas que através da escrita do Vítor ganham uma riqueza invulgar!

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    1. Poderia ter tirado uma fotografia, mas preferi descrevê-la e refinar-lhe algumas cores.

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  5. Sabe o que prefiro no que leio? Histórias e personagens. Gosto das suas. :)

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  6. Desta vez, Vitor, entraram em cena todos os habitantes do quarteirão...

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