sexta-feira, 25 de novembro de 2011

77. Ismael (2)


Se não se notassem as incoerências, o meu livro contaria as aventuras e desventuras de um famoso desconhecido que um dia apareceu na Quinta do Conde. Cabelo comprido e quase branco, um bigode à Chalana, via-se sempre acompanhado por um amigo do porte físico do Fernando Mendes, aquele apresentador televisivo que é muito engraçado a fazer teatro. O meu protagonista, a quem para facilitar, apesar de ter um nome pomposo de leitura difícil e todo em francês, seria no livro chamado de Ismaelix e o seu amigo, para não se confundir com o referido ator, seria conhecido apenas por Mendix. Mendix entraria uma ou duas vezes em alguns episódios em que se tivesse de recorrer ao trocadilho ou de levantar pedras com os braços atrás das costas. Ismaelix, ainda não o disse, aparece na Quinta do Conde pela mão de um avô materno, que viria a morrer de uma trombose, num dia em que foi dar milho aos pombos no Terreiro de Paço. Aliás, o senhor Bernard Ismaelix, avô do nosso herói, escolheu a Quinta do Conde para morar, porque naquele tempo toda a margem sul lhe pareceu um deserto. E sendo ele um pied-noir, descendente de uma família magrebina que se instalou em França, num bairro de lata nos arredores de Paris, mais propriamente no dixseptième (tendo mais tarde vindo a mudar-se para um sótão, vivendo em concubinato como uma concièrge de um prédio de seis andares lá para os Champs-Elysées), dizia eu que, dadas as origens, nada melhor do que escolher um deserto para habitar. Não se previa construir por ali nenhum aeroporto nem novas travessias, se bem que à data em que ele chegou a Portugal, poucos dias depois de terminada a segunda grande guerra, não houvesse nenhuma ponte que unisse Lisboa à margem sul. Mas não seria do senhor Bernard Ismaelix que o meu livro se ocuparia mas sim do seu neto Ismaelix, o tal com bigode à Chalana que um dia ainda viria a encontrar e a sentar-se ao lado de Ismael ben-Avraham com quem, apesar do incómodo do cheiro dos charutos, haveria de festejar abraçado, o quinto golo do Benfica, marcado pelo Artur Jorge num jogo contra a Académica e que também usava um bigode à Chalana. Assim mesmo, com mais de noventa mil a assistirem nas bancadas, Ismaelix e Ismael ben-Avraham encontram-se no Estádio da Luz e ainda dizem que não há coincidências.

No entanto, teria algum receio de vir a dar no meu livro muito protagonismo a estes dois personagens, um deles descoberto algures num livro de Christie, médico de profissão, como todos sabem e que fuma cubanos e outro, algures num quadradinho de Uderzo, a chamar maluco a todos os que falassem latim com sotaque do sul da Itália. Até porque o meu protagonista é mesmo o meu amigo galego e foi ele quem me contou lá na taberna da rua dos Correeiros, num dia em que não havia nada interessante de futebol para falar e enquanto eu comia uns carapauzinhos de escabeche, que às vezes apareciam lá dois tipos, um judeu pela certa, pois vestia sempre roupa preta e camisa branca com sobrecasaca e chapéu e tinha umas barbas compridas como as de um rabino e outro, de bigode farto e branco e com uma trança, também branca a cair-lhe pelas costas. Eu até lhe disse, Oh Ismael, você anda a ler muita bonecada, ao que ele me respondeu, se calhar são ciganos. E voltou a encher-me o copo de vidro grosso com um vinho tinto que era de estalo.


10 comentários:

  1. Até vemos algumas semelhanças com outros personagens, claro, mas que os seus são únicos, isto são, mesmo! Que venha um livro, por que não? :)

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  2. Valha-me Deus!
    Ó Constantino, com incoerências tão notórias quem é que não as vai descobrir? A mim parece-me é que o meu amigo se distrai e baralha as personagens todas!
    Então quem usava um bigode à Chalana não era o avô do Ismael? Em quantas gerações isto já vai?

    Tá bem ponha lá o Mendix a carregar os obeliscos, mas olhe que o nome do Gérard Depardieu não é assim tão difícil de pronunciar.

    Que isto do futebol lhe ande a queimar os neurónios ainda vá que não vá, agora se insistir em queimar os nossos...não sei, não!

    Olhe que o Ismael é que tem razão. Aquilo é ciganada disfarçada. Um de judeu e o outro da cabeleira farta e branca apanhada numa trança, bigode farfalhudo à Chalana vai disfarçado de D. Quixote.
    Ainda vem por aí o Ismael 3? Vou fugir...

    Ai que saudades das lindas histórias de amor!
    Beijinhos.

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  3. 2Janita, deixa-me cá esclarecê-la porque parece que está um pouco baralhada. Destes personagens só conheci pessoalmente o Ismael, o galego. Era sobre esse que eu gostaria de escrever um livro contando histórias que dele conheço, histórias que ele me contou e tal. Mas escrever um livro com um personagem tout-court não sei se teria conteúdo. Os outros eu não conheci muito bem mas acho que existiram todos ou de qualquer maneira existem, ou se calhar conheço-os. Já nem eu sei :). A saga continua, publicarei várias histórias seguidas do meu amigo galego. Se der para um livro, dá. De qualquer forma não tenho intenção de publicar a não ser aqui no blog. Esclareci, minha querida e estimada leitora e boa comentarista? Um beijinho e bom fim de semana.

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  4. Eu acho é que este "romance" está a ficar parecido com "Cem Anos de Solidão" que, confesso, ainda um dia vou ter de reler e tentar encadear aquela famelga na história. ahah

    Quer-me parecer que vi esse famoso golo do Artur Jorge, num jogo de final de campeonato, onde o dito cujo precisava de quatro ou cinco golos para ser o melhor marcador.
    Foi a última época do lateral Artur ao serviço da Académica (antes de vir para a Luz e mais tarde para Alvalade onde terminaria a carreira com um AVC) e como queria mostrar serviço, passou o jogo todo a dar porrada no Eusébio.
    O Benfica deu uma cabazada e o Artur Jorge cumpriu o seu objectivo.
    Tudo isto se passou antes da extinção dos dinossauros, quando eu ainda não tinha encontrado motivos para desistir do futebol...
    E a vida passou a correr.

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  5. @MiM, eu vi esse jogo no estádio da luz, era puto e não me lembro em que ano foi. O Artur Jorge precisava de 1 golo para igualar Vitor Baptista que jogava no V. de Setúbal e 2 para ultrapassar. Nesse dia o Setúbal jogou em Faro e empatou zero a zero. O Eusébio marcou 2 golos e o Nené marcou 1.
    O Eusébio que estava a 5 golos desperdiçou mais de meia duzia deles para os dar ao Artur Jorge que a 2 minutos do fim marcou o segundo golo e aí acabou o campeonato. Foi nos anos 70, mas não me lembro em época. Um abraço.

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  6. Meu querido e estimado contista romancista, fiquei esclarexidíxima!

    E se esta cegarrega (tradução de saga) der para um livro, porque não editá-lo? O sucesso seria garantido!
    Beijinho e bom fim de semana.

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  7. Bom, o percurso do Ismaelix e do seu avô já está traçado e a passagem pela Katedral de outros tempos é obrigatória! :)))

    Agora resta saber quem são essas personagens misteriosas (judeus? ciganos?) e se se vão sentar também a beber um copo de tinto e a comer os carapaus de escabeche... :D

    Beijocas e bom fim de semana!

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  8. Pois começo a desconfiar bastante desse Ismaelix, Vítor. Cá por coisas... que espero ver esclarecidas nos próximos capítulos desta saga...
    Abraço

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  9. Vítor Fernandes, fiquei aqui pensando, e se fosse dado voz e vez aos personagens, o 'suposto judeu' e o 'suposto cigano', o que eles diriam?
    Será que o 'diferente' é mesmo tão 'diferente' assim?

    Lá se vai eu querer interferir no seu livro. Melhor eu ir tomar um bom vinho também, essa leitura me deu sede, além dos risos, claro!
    ;))))

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  10. Quando é que entra em cena o Panoramix?!

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