Oiça cá senhor Constantino. Você gosta de fados? Esta pergunta foi-me feita por Ismael Gusmán, com o seu sotaque galego que eu vou deixar de reproduzir para não me enganar nas trocas de ésses por xizes e por jotas ou por outras letras. Respondi-lhe que era um verdadeiro fã e que não só da rainha Amália, mas também da sua irmã Celeste Rodrigues, da Lucília do Carmo, do Alfredo Marceneiro, da Maria Teresa de Noronha, da Fernanda Maria, do Filipe Pinto, da Hermínia Silva, do António dos Santos e outros que referi e que, a esta distância de tantos anos decorridos, já nem me lembro muito bem. O galego, coçou o queixo, ajeitou o avental azul-escuro, pegou num pano e limpou o suor que lhe escorria do pescoço. Pediu-me para me sentar ao lado dele e meio envergonhado, perguntou-me, Diga-me cá senhor Constantino, mas diga-me com sinceridade. Vocemecê acha que a minha tasca, a cheirar a iscas com elas e a passarinhos fritos tem classe para receber esses famosos nomes que me acabou de enunciar? (isto tudo com um sotaque galego que nunca perdeu, apesar de ter vindo em garoto para Lisboa). Como estava com pressa, ia ter uma aula de hidráulica a que não podia faltar, levantei-me, dei-lhe uma palmadinha num ombro e disse-lhe que ele não se preocupasse que eu trataria de tudo.
Este episódio passou-se em 1976 e a maioria dos fadistas de quem lhe falei eu só os conhecia mesmo de ouvir cantar na rádio, mas o Ismael andava com aquela mania que a taberna dele tinha de passar a ter fados. Em plena baixa lisboeta, não só era tradição mas também poderia ser a tábua de salvação para um negócio que começava a definhar. Principalmente à noite, a tasca, às nove horas, já não tinha freguesia. Outros tempos. Mas se eu prometi ao meu amigo galego que ia tratar de tudo, tratei mesmo.
Quando lhe apareci com um enorme cartaz que um primo meu me fez o favor de me fazer numa tipografia que tinha em Cacilhas, anunciando, Grande Noite de Fado Vadio na Tasca do Galego, Rua dos Correeiros etecetera e tal, até as lágrimas lhe vieram aos olhos. É claro que não contratei nenhum daqueles monstros sagrados da arte de bem cantar a lisboeta canção, mas falei com uma meia dúzia de pessoas que conhecia de outras fadistagens e que davam um jeito, no Mouraria, no Menor, no Cravo, no Caldas, no Vianinha, no Pedro Rodrigues, no Marceneiro, no Esmeraldinha e noutros estilos que o pessoal aprecia, com um bom copo de vinho tinto e uma posta de bacalhau assado. Entretanto reconheço-lhe uma cara de preocupação. E as guitarras, sr. Constantino, e as violas? Olhei para ele e dei uma gargalhada.
Às nove e meia da noite do dia vinte e um de Setembro de mil novecentos e setenta e seis, os trinta e dois lugares da tasca do Ismael Gusmán estavam todos ocupados. Com a casa já à média luz, com um amigo meu de origem judaica chamado Ismael Pinheiro, sobrinho do nosso conhecido Ismael ben-Avraham, na viola, e um quarentão com um farto bigode branco e uma trança a cair-lhe no meio das costas na guitarra, trinavam os acordes de Lisboa à Noite. Ismael Gusmán, fez um ar solene e clamou Silêncio que se vai cantar o fado.
Pelo que lhe li, reforço a convicção de que merecemos o galardão. O fado não é apenas o que se canta. É tudo o resto que o povoa e encanta, até o cheiro a iscas (com elas...)
ResponderEliminarIsto é que é saber "fazer render o peixe".
ResponderEliminarQuem quiser saber da noite de fados, vai ter de esperar pelo Ismael (IV) ahah.
@Mim, ou outro. Isto são páginas do livro que não escrevi e que podem ser lidas apesar de não impressas.
ResponderEliminarTudo isto é fado... :)
ResponderEliminarAmigo Constantino,
ResponderEliminarcom mais uma página lida desta fabulosa saga, vou sentar-me ali na mesa do canto a saborear uma ginginha com elas.
Olhos semicerrados, à média luz, ouvindo deliciada os gemidos das guitarras fico à espera que o silêncio se faça...e se cante o Fado da Mouraria.
Bonita e sentida narrativa de quem ama o fado.
Beijinhos.
E a verdade... é que desde ontem o FADO não é só nosso! Agora é também património imaterial de toda a humanidade!!
ResponderEliminarTenho de voltar para ler os episódios anteriores... Este personagem é uma autêntica delícia.
Beijinhos ao início da madrugada!
O fado é um sentimento e esta vitória de hoje pertence a todos os que o sentem!
ResponderEliminarParabéns Portugal.
Já vi dinamizarem um clube desportivo de bairro com iniciativas desses género e tinham aderência! :)
ResponderEliminarNunca conheci nenhum Ismael, aqui já vão em 3! Mas pronto, silêncio, que se vai cantar o fado! :D
Beijocas!
: )
ResponderEliminarGrandes fadistas!
"O fado é tudo o que eu sei, mais o que eu não sei dizer"
ResponderEliminarAmália Rodrigues.
Deixo um beijo, Vítor Fernandes!
;)