É sempre assim todas as manhãs. Enquanto ainda está estremunhado, esfrega os olhos, levanta a cabeça para olhar o mostrador digital do despertador, solta um palavrão porque é sempre mais tarde do que pensa ser, levanta-se num ápice, dirige-se à cozinha para ligar a máquina do café, espreita o estado do tempo pela janela semi-aberta e vai à casa de banho. Como ainda não acordou, lava a cara com água fria, muitas e muitas vezes seguidas e depois conversa um pouco com o espelho. Escanhoa-se sempre de gilette - há muito que abandonou a máquina de barbear cujo zumbido era como que uma canção de nanar – normalmente prolongando por mais uns minutos a conversa com a sua imagem, coloca o dentífrico na escova, molha a escova na torneira, o dentífrico cai na bacia (porque é que ele repete um gesto que ele próprio considera estúpido e que tem tantas vezes a mesma consequência, não o sabe explicar), repete a operação, lava os dentes, desta vez sem olhar o espelho, pudera, não quer ser criticado. Volta à cozinha, prepara a bica matinal, come uma bolacha de cereais integrais sem açúcar, mastiga devagar apesar de se ter levantado tarde, liga o computador com a chávena do café na mão, bebe-o devagar, saboreando-o enquanto o Windows se inicia. Abre as primeiras páginas dos jornais, principalmente os desportivos, quer ver o que é o que dizem do seu Benfica. Vai ver se os gatos gastaram as munições todas durante a noite, nutre-os e põe-lhes água fresca nos bebedouros. Toma um banho de água tépida, limpa-se cuidadosamente, veste uma camisa branca sem gravata e as suas melhores calças jeans, sapatos de ténis azuis, come uma maçã descascada e um iogurte, coloca um boné de basebol, verifica se desligou o esquentador, a máquina de café, o computador, as luzes e se fechou as torneiras. Volta à cozinha de onde pega no saco plástico preto que tinha preparado previamente, sai e dá quatro voltas à chave. Dirige-se à paragem do autocarro que deve estar a chegar. Faz sinal de paragem com uma mão enquanto a outra segura o saco de plástico preto, mostra o passe e senta-se. Tira do bolso um pequeno rádio transístor com um auscultador mono que enfia no ouvido esquerdo e bate com o pé direito no chão como que a marcar o compasso. Sai na paragem mais próxima do jardim para onde se encaminha ainda de transístor ligado. Quando os primeiros pássaros se aproximam desliga o rádio, tira do saco o pão desfeito e o milho partido. Aos poucos, sente-se rodeado por dezenas de pombos, pardais, patos, gansos, cisnes e outras espécies que ele saberia nomear. Quando se lhe acabou a ração, pediu desculpa às aves porque essa tarde não poderia voltar ao jardim. Era o dia do seu aniversário. Nessa tarde iria à pastelaria, comeria um bolo com muito creme e beberia um copo de café com leite e nem pensaria no colesterol. Se sobrassem migalhas trá-las-ia no dia seguinte.
Caro Vitor Constantino
ResponderEliminarAcho que a solidão é assim
Aves por tudo o que é lado
Migalhas sobradas
e um jardim
só
Solitário
Num dia diferente dos outros
No dia de aniversário
(Um texto onde não se dá pela melancolia...do dia)
Um homem independente.
ResponderEliminarMais um texto muito bem escrito. Não são necessários os rendilhados de escrita para ser um belíssimo texto. Quando eu for grande quero ser capaz de escrever assim! : )
Amigo Vítor. A tua escrita surpreende-me sempre no final. Desta vez estava eu a imaginar um típico trabalhador a preparar-se para mais um dia de trabalho assalariado e afinal sai-me um indivíduo reformado amante das aves. De certo modo fez-me lembrar aquelas senhoras chiques que costumam levar restos de comida para os gatos que habitam os terrenos baldios. Não me apanhas mais. Vou começar a ler os teus textos pelo fim. lololololololol.
ResponderEliminarEu não li, eu estive a ver um filme, tal a fidelidade do pormenor da descrição de cada gesto, de cada rotina, de cada sentir e de tantos dtalhes aparentemente insignificantes , mas escritos com tamanha mestria que fazem dos seus textos uma verdadeira obra literária.
ResponderEliminarParabéns!
Abraço
Manu
Estava morrendo de saudades desse espelho! :) E não é que ele apareceu como figurante aqui? Que este homem, que faz de seu dia-a-dia uma rotina feliz, coma o seu o seu pastel com bastante creme e que dane-se o colesterol! Que muitos abraços e beijos estejam a espera também. O meu já vai indo... talvez demore um pouquinho porque atravessar o Atlântico nesse aquecimento global está cada vez mais difícil. ;)
ResponderEliminarMil beijos!
Excelente!
ResponderEliminarHá muito tempo que não passava aqui a-ver-as-vacas (e nem sei se alguma vez deixei comentário...) Vou passar e dar sinal que passei por aqui. Quem tem um blog gosta destes sinais :)
[a descrição é magnífica «é sempre mais tarde do que pensa ser ... levanta-se num ápice» etc, para acabar num jardim a espalhar migalhas)
Este parece-me um que já li no Pre, mas mais elaborado e gostei embora eu não dê nada a pombos e gatos de rua, embora goste muito deles...acho um crime porque perdem as suas defesas naturais e procriam-se que mete dó. Mais dó ainda...quando - e agora mais do que nunca - 99,9% deixaram de dar de comer.
ResponderEliminarGostei!
Olá amigo Vitor!
ResponderEliminarEstava com saudades de seus contos!
Obrigada por compartilhar suas histórias.. É sempre uma aventura le-las!
Bjs,
Ainda estou à espera da primeira vez em que os finais dos seus posts não me surpreendam...
ResponderEliminarO rapaz também tem jeito...
ResponderEliminar;)
Boa shark :)
ResponderEliminarMaravilha de cotidiano !
ResponderEliminarfiquei admirada com as quatro voltas que dás às chaves ! rs bem guardadinho ...
vivi um dia diferente (?) simplissímo , poético e especial, como tudo que tenho lido aqui.
abraço Vitor
* gostei de saber o nome de quem "guarda as vacas" , e é bem familiar, do meu caçula.
Ai, amigo, que lindo!!!
ResponderEliminarEstou aqui a ler os posts que ainda não havia lido, e vou aos poucos, rindo...me emocionando...
Rapaz, como você escreve bem!!!
E o livro?
Já publicou??
Vai publicar???
Eu, no seu lugar, já estaria pensando nisso há muito. Vá em frente!
Promete?
:)
Vítor, tenha um lindo setembro.
O meu, tenho certeza que será, pois, além de ser meu aniversário, e aniversário de casamento, lá para o final, junto à entrada da primavera, vou ganhar mais um netinho.
Poderia estar mais feliz???
Abraço fra[terno],
Cid@