terça-feira, 5 de julho de 2011

49. Cabeça ao vento


Ercília foi talvez, a par com o engenheiro Monteiro e o arquiteto Marques Ramires, a pessoa mais distraída que conheci. O engenheiro Monteiro, uma ocasião em que me fez um exame oral de uma das disciplinas no quarto ano do meu curso, achou que eu merecia ser penalizado com perguntas de grau mais elevado por não me conhecer e achar que eu nunca tinha ido às aulas dele. O engenheiro Monteiro, que chegou a dar aulas com um sapato de atacadores num pé e um moucassin no outro (vá lá, eram ambos castanhos), tomava comigo a bica quase todas as manhãs no bar do pavilhão e entravamos a par na sala de aula, não bastas as vezes conversando sobre futebol de que somos ambos apaixonados. O arquiteto Marques Ramires, quinze minutos depois da aula ter começado, reparava que estava a dar a matéria de geometria do décimo segundo aos alunos do décimo primeiro. E não fez isto só uma vez.

Ercília estudava à noite no Instituto Superior de Psicologia Aplicada. Não poucas vezes saiu de casa para o emprego, de gabardine ou casaco comprido em dias de canícula quando pela manhã já o ar era irrespirável de tão quente. Claro que chegava ao trabalho com eles debaixo do braço e afogueada. Pudera! Usava amiúde uma meia às riscas e outra lisa e nem sempre da mesma cor. Ercília esquecia-se da carteira ao balcão do bar onde tomava café e só dava por isso quando, ao final da tarde, entrava no elétrico a caminho da faculdade e não tinha o passe para mostrar ao revisor. Todos nos riamos ao vê-la procurar os óculos com eles na cara e isto era frequente. E a chave do carro, um belo fim de semana em que quis sair com o namorado, foi encontrá-la no frigorífico, após mais de uma hora de árdua procura. Contavam-se pelos dedos das mãos as vezes que Ercília saía na paragem certa quando andava de elétrico ou de autocarro ou até de metropolitano.

Naquele dia tudo correu certinho. Ercília chegou ao trabalho com os sapatos e as meias certas, uma blusa branca de folhos, impecavelmente passada a ferro, o que não era costume,  uma saia azul escuro, plissada, a bater-lhe no joelho, que lhe ficava absolutamente à medida, com o fecho traseiro fechado e no local, sentou-se na sua secretária, deixou a pasta com os livros à mão de semear para quando tivesse de ir para a faculdade. Naquele dia não deixou a carteira, nem na hora do café, nem na hora de almoço, no balcão da pastelaria. Naquele dia, Ercília nem se esqueceu de fazer dois telefonemas importantes. Um para uma repartição de Finanças e outro para uma empresa de camionagem. Não pediu transporte de uns caixotes de mudanças ao funcionário do fisco, nem tratou do IRS com a atendente da transportadora. No fim do dia, quando se sentou na mesa da sala de aula, puxou da pasta com os livros e abriu as Páginas Amarelas.

Texto e foto do autor. Todos os direitos reservados.

10 comentários:

  1. Amigo... Se eu ñ me chamasse Tânia e minha formação não fosse matemática e administração... Diria que essa é a história de quando cursava universidade!Rsrsrs...
    Exceto pela combinação (ou falta dela) de roupas... Já fui uma Ercília!

    É sempre muitoooo bom andar por aqui...
    E acho que estou melhorando a minha compreensão em português... compreendi tudo o que escrevestes!Rsrsrs..

    Beijo grande p/ vc Constantino.

    Tânia

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  2. Constantino... Então conheces Lenine? Fico feliz em saber que apreciastes! É sempre muito bom receber sua visita amigo!

    Estou descobrindo através de alguns amigos de Portugal, músicos incríveis. Lamento por a música de vcs ñ ser mais propagada... Ela é tão linda! E há cantores portugueses estupendos!

    Ando em minha fase romântica.Rsrsrs... Ando ouvindo Miguel Gameiro e Tony Carreira. Não os conhecia... Mas já sou fã!
    Se quiseres me indicar alguns outros te agradeço, amigo!

    Bjsss,

    Tânia

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  3. Carambaaaaaaa e logo as páginas amarelas:):):)

    Na minha terra "cabeça ao vento" tem outra conotação e aqui diria "despistada", ai Constantino sou um pouco assim, mas essa bate-me aos pontos!

    Esta irei contar às netas com as devidas adaptações como IRS etc e tal:):):)

    És de facto um bom contador de histórias e as tuas fotos são obras de arte!

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  4. É curioso. Sempre pensei que Ercília se escrevia com «H» mas já estive a "googlar" o assunto e de facto existem as duas possibilidades.

    Quanto ao conto em si.... belíssimo (como não poderia deixar de ser. :))))))))

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  5. Tive um colega de liceu que de vez em quando também aparecia nas aulas com um sapato de cada naipe: deve ser normalíssimo, pelos vistos! :)))

    Mas deve ser difícil lidar com pessoas destas no dia a dia. Quer dizer, para colegas deve ser um motivo de algumas risadas extra, mas para maridos, mulheres, filhos ou pais, deve ser complicadíssimo! :D

    Beijocas!

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  6. Dizem que tipos assim vivem muito.
    São tão distraídos, que se esquecem até de morrer!
    :))

    Gostei muito da história da Ercília, mas, mais ainda, a forma com que foi contada.
    É sempre muito bom te ler!

    Constantino, tenha uma linda e luminosa quarta feira.

    Beijinhos,

    Cid@

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  7. :))) very good... gostei. destes twists finais é que eu gosto. :)

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  8. Tive uma colega que foi a uma reunião a Beja e regressou ao Algarve de boleia. Esqueceu-se que, para lá, tinha levado o carro. Mas não se chamava Ercília. :)

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  9. Sempre sempre surpreendente!
    Estás em forma!

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  10. Olá Constantino!
    Esta sua Ercília cabeça-de-vento, aérea e despassarada, fez-me lembrar um caso que ainda hoje, eu e a minha irmã, nos rimos quando nos encontramos e calha de vir à baila esse episódio passado com ela.
    Não o vou contar porque aqui a contadora de histórias não sou eu, obviamente. Digo-lhe apenas que tem a ver com um sapato de cada cor.
    Um castanho e o outro verde escuro. Ambos de salto alto e muito elegantes, que a minha mana foi sempre uma mulher de muito bom gosto.

    Há ainda o caso de um amigo meu, extremamente distraído. Mas esse, dá-me mais vontade de chorar de raiva do que de rir.
    Não era para falar nisso, mas ao chegar aqui e vá-se lá saber porquê, esse episódio caricato veio com toda a força à minha memória.

    Esse meu amigo é tão distraído, mas tão distraído, que se esqueceu de uma afronta injuriosa que alguém sedento dos seus "cinco minutos de fama ou com algum desiquilíbrio mental" ( isto está entre aspas por serem palavras dele) lhe fez publicamente.
    E, um belo dia...bem, não vou dizer o que ele fez.
    Somente acrescento que eu, que entrei no barulho movida pela amizade e solidariedade, ainda hoje tenho isso atravessado como uma espinha na garganta.
    Não Constantino, eu não sou uma pessoa intolerante e mal formada, tenho é um raio de uma memória de elefante que só me traz amargos de boca.
    Meu querido, sei que não percebeu nada, mas não se preocupe. Isto nem sequer lhe diz respeito. São divagações aqui da sua amiga, que precisava era de apanhar com a lista das Páginas Amarelas, com toda a força, no cocuruto da cabeça.

    Parabéns por mais esta divertida e belíssima estória, cujo final me faz lembrar algo parecido com o rock'un'roll.:))

    Com amizade

    Janita

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