segunda-feira, 22 de abril de 2013

204. D. Micá e os infiéis (prendam esses patifes a ferrolho)



D. Ermelinda estava sentada no sofá pequeno com um xaile de cachemira sobre as pernas e com o Tareco no seu colo dormitando. Suavemente ia-lhe alisando o pelo, com a mão, percorrendo o lombo do gato desde a cabeça até à cauda. O bichano, deliciado, ronronava. A seu lado, Clara Mendonça que tirava da mala um lenço branco de mão, com um bordado de Viana do Castelo, que ostentava a frase “o meu curassão só por ti sespira”, entre corações e pombas e raminhos de oliveira, choramingava. D. Ermelinda esperou que Clara limpasse os olhos e se assoasse, o que ela fez delicadamente, como uma senhora que era, o faz. Depois suspirou, provavelmente inspirada pelos dizeres do lenço de Viana, e rematou o suspiro com um suave “ai”. D. Ermelinda quis saber como é que iam correndo as coisas entre ela e o Jorge Mendonça.

- Nem me fale dele, D. Ermelinda. É um mulherengo – e, num misto de tristeza e fúria rematou: Um putanheiro!

Ao esgar reprovativo de D. Ermelinda, cuidando de que se trataria de crítica à linguagem utilizada, acrescentou hesitante um pedido de desculpas:

- Desculpe-me a grosseria da palavra, D. Ermelinda, mas eu não suporto mais este constante cobiçar de outras saias, este permanente estado de adultério. – Depois, atiçando-se contra o belo sexo como se ela não fosse um magnífico exemplar da espécie, vilipendiou-as: - As mulheres têm sido a causa da nossa desgraça.

 - Eu entendo, Clarinha, eu entendo – tentou consolá-la, D. Ermelinda que, diga-se a propósito, era uma santa alma e acrescentou, desta vez atacando o sexo oposto, como que em contraponto ao que Clarinha acabara de dizer – os homens são uns patifórios.

«São todos assim, não escapa nenhum», continuou D. Ermelinda que em pegando na palavra tinha sempre alguma dificuldade em largá-la. E foi exatamente o que aconteceu de seguida pois que nunca mais se deteve «que o diga eu, Clarinha. O meu Jovelino, que Deus Nosso Senhor tenha a sua alma em descanso», disse-o benzendo-se, «era um perdido por mulheres. Saiba a Clarinha que um dia, saiu-me de casa todo apinocado, exatamente como costumava ir para a empresa, de fato completo, naquele dia um lindo fato azul-escuro com uma risca fininha em cinza, bom pano, que o comprei e mandei fazer na alfaiataria do senhor Desidério, não sei se a Clarinha o chegou a conhecer, um alfaiate que usava bigode à século XIX, fininho e enrolado nas pontas e que fumava uns cigarros pretos que eram um fedor», depois atalhando face à expressão desinteressada de Clarinha, «bom, talvez não fosse do seu tempo». Continuou com a narrativa das peripécias de Jovelino. «Dizia-lhe eu, então, com aquele fato de três peças, o colete com botõezinhos de madrepérola, corrente, sim corrente, que o meu Jovelino nunca saía para reuniões com gente fina sem a sua corrente em ouro, onde sustinha um relógio, também ele de ouro, adquirido a um lavrador a quem a vida não lhe tinha corrido muito bem, mas isso são outras histórias. Vou-lhe contar o que interessa, o meu Jovelino disse-me que ia para a empresa, que vinham uns senhores de uma fábrica em Santa Iria de Azóia, a Clarinha que é de cá de Lisboa deve saber onde fica Santa Iria de Azóia, ora não? Pois é verdade isto que lhe vou contar, tão verdade como estarmos aqui as duas sentadas neste sofá à espera que a minha Micazinha recomece a contar a história do D. Bonifácio. Sabe que ela a mim nunca ma contou, Clarinha? Ah pois, não, não contou, não senhora e olhe que eu acho que ela não está a inventar. Aquilo ou é coisa que ela leu em algum livro ou então não sei. Porque para lhe ser franca, Clarinha, eu não acredito em fantasmas. Nem tenho medo. Sabe de quem tenho medo mesmo, Clarinha? É dos que cá estão. É dos vivos sim senhora. Que Deus tenha em paz e sossego as almas daqueles que já partiram. Mas os que cá estão, Clarinha, esses é que são perigosos. Então não é verdade que têm sido essas intrujonas que se têm atirado ao seu rico marido, que não desfazendo, é uma joia de homem? E pelo que me dizem, até ganha bem. Uns bons contos de reis por mês, Clarinha. Mas isso são coisas da vossa vida, sabem vossemecês e fazem vossemecês muito bem. Ninguém tem nada com isso ou andar por aí a contar as suas vidas. Olhe Clarinha, aqui nos nossos serões, que lá nisso temos de fazer justiça à minha Micá, nem ela nem eu, posso jurar à fé de quem eu sou, autorizaríamos outra coisa. Fala-se de muitos assuntos, muita coisa da cultura, música, poesia e como a Clarinha deve saber, até já se representou uma peça ali no salão. Foi tão lindo, Clarinha! Foi um êxito. Parece que ainda estou a ouvir as pancadinhas de Molière, pum pum pum pum e a minha Micá a fazer de velha alcoviteira, só de me lembrar, Clarinha, me dá uma vontade tão grande de rir», deu D. Ermelinda uma gargalhada e sem perder o ritmo, continuou «querendo casar a menina Marta com o Fagundes e o Fagundes, coitado, que nunca tinha feito uma peça de teatro a ficar muito corado por estar em frente da própria mulher, prestes a se enrabichar por outra, mas que era só a fingir, era teatro. E para lhe dizer o que me vai na alma, Clarinha, não sei para que é que serviu tanto acabrunhamento. No final das contas, na vida real, quem acabou por encornar o Fagundes foi a mulher dele e o coitado que andou por aí a exibir nódoas na camisa acabou por ser o pobre do Fagundes. Mas fala-se que ele está bem, agora tem um caso com uma senhora rica, parece que não lhe falta nada e nunca mais o ouvimos a barafustar contra o Governo por causa do salário e de outras afrontas aos professores. Mas aqui não falamos das vidas dos outros, como a Clarinha sabe. O que é pena, Clarinha, é que já não vou ter tempo de lhe contar o resto da história do dia em que o meu Jovelino saiu de casa, mais perfumado do que o costume, já que aperaltado ele andava sempre e foram-no encontrar ao fim da tarde, em Aveiro, a empanturrar-se de ovos moles, ele que sofria do fígado e fazia uma dieta com leite magro e saladas» relembrou D. Ermelinda consternada, continuando já com uma pequena expressão de fúria maledicente, mas ao mesmo tempo aparentando um certo conformismo. «O pior é que foi apanhado em flagrante, nesses devaneios a que a gula conduz, por uma rapariguita lá de Albergaria, que estava de criada de servir no Hotel Bela-Ria e que, inadvertidamente, quando ia para colocar os últimos preparos para os clientes, se enganou na porta do quarto e abriu aquela que não devia, ou como se costuma dizer a Providência é Divina, Amén. Foi a pequena dar de caras com o meu finado Jovelino, só de cuecas, que lá nisso ele era homem muito respeitador, rodeado por duas espanholas, em trajes que nem lhe descrevo, pois a Clarinha iria ficar mais corada do que um tomate maduro e com mais de uma dúzia de ovos moles espalhados sobre a colcha da cama, capaz de se sujar e ter ainda que pagar uma conta elevada da lavandaria do hotel. Mas depois que a minha Micá acabe a história eu conto-lhe o resto. Estou curiosa em saber porque é que defunta Antonieta andou a aparecer assim tantas vezes ao velho Bonifácio. E já agora, Clarinha, olhe que a menina, que dizem por aí que anda a tratar do divórcio com o dr. Jorge, faz muitíssimo bem. São uns diabos. E quando são putanheiros...

Dizendo isto, D.. Ermelinda colocou a mão em concha, a tapar a boca semiaberta e ficou a senhora com o rosto mais rubro do que a criada Rosalina que como sabemos é roliça, coradinha e tem buço.



3 comentários:

  1. Eu também adoro passar por aqui, mas ler! Só que tu às vezes excedes-te, Constantino, e o tempo é curto!
    Vá lá que desta vez a Micá não teve nenhuma das costumeiras entradas supostamente triunfantes e deixou-se ficar contando as suas estórias para outra plateia.
    Gosto mais da mãe do que da filha, apesar dela também ter uma boa língua de trapo! Simpatias!!

    Belíssimo o conselho dado à Clara; o de pôr o Jorge a milhas. Isso de gajos putanheiros...longe e largo.:))

    Não sei onde vais buscar imaginação para tanto, Ó Constantino!:))

    Beijocas!:)

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