quinta-feira, 18 de outubro de 2012

174. D. Bonifácio entrou no portão



Tenho muita vontade em vos falar do meu amigo Eduardo Aragão. E não podia escolher melhor época do que a estação da queda das folhas, a estação das chuvas. Mal os plátanos começam a encher o chão do jardim com folhas castanhas, Eduardo Sequeira Aragão, meu amigo de há muitos anos, começa a entrar em depressão. Mas não é o único da família pois o seu primo Pedro, o Pedro Pinto Aragão, tem o mesmo problema. Só que enquanto o Eduardo planta nos roupeiros, à espera que a primavera volte, os seus fatos de calça branca e blaser azul, de calça bege e polo Fred Perry azul claro, os lenços de seda de bolso ou os que lhe fazem gargantilha, as calças de caqui e camisas de meia manga aos quadrados e sapatos vela, que usa para, nos fins de tarde, dar um salto até ao bar do Quim Geraldes, um rapaz, também da nossa criação que sempre sonhou ter um bar de praia com karaoke e écrans gigantes a projetarem, em sessões contínuas, imagens de desportos náuticos, de quem vos terei ocasião de falar, eu ou a D. Micá, pois ele é, para ela, como o irmão que nunca teve e que, tirando aquelas tardes de canícula em que não dá para abandonar o barco, que é como quem diz, o balcão dos cocktails, não falta a um serão no salão mais famoso da Lapa, o Pedro há muitos anos que não sabe o que são, nem outonos nem invernos. Quando a temperatura do ar baixa dos vinte graus, uma pequena mala com alguns parcos haveres e produtos de higiene para as primeiras horas e ala que se faz tarde, já o Pedro está no aeroporto com bilhete para o Rio de Janeiro. Ele diz que é por causa das alergias, mas ninguém acredita nisso.

Pedro conhece perfeitamente o Rio. Viveu lá, em jovem, com os pais, quando o senhor Segismundo Aragão foi nomeado Encarregado de Negócios no Rio de Janeiro e São Paulo. Infelizmente para uma maior proximidade entre Eduardo e Pedro, D. Custódia, mãe deste, não tem afinidades com a tia Perpétua, a mãe do Eduardo, embora entre eles haja amizade e até algum companheirismo e cumplicidade, sempre que podem. E por falar em poder, algumas vezes planearam irem os dois passar o inverno europeu nos 40 graus do Leblon, nos chopes em Copacabana, assistir ao Carnaval mais quente do mundo, «em tudo» diz o Pedro e repete «em tudo, em tudo». Mas não, nunca se concretizou, a família Pinto e a família Sequeira já se conhecem há décadas e nunca se deram bem. Coisas de família, invejas, namoros cruzados, umas terras na Charneca da Caparica, uns pinheiros que eram de uma e afinal, vai-se a ver as cadernetas eram da outra, enfim uma trapalhada das antigas, que já contava duas, três gerações e com a agravante de Custódia e Perpétua terem acabado por casar com os irmãos Aragão, Segismundo e Alfredo. E como se não bastassem os problemas e conflitos antigos, trocaram-se namoros, primeiro a filha do Sequeira namorou com um, vindo depois a casar com o outro e vice-versa no que diz respeito à filha do Pinto, parece que calhando a fava aos coitados dos irmãos Aragão. Para agravar e complicar a coisa se o Pedro e o Eduardo não fossem primos, seriam praticamente gémeos, nasceram com três dias de diferença. Nos bastidores das famílias diz-se à boca pequena, que é como quem diz em surdina, que ninguém tem a certeza quem é o pai de quem, obviamente falamos de Pedro e Eduardo e isso, além de ter atiçado as desavenças entre os Pinto e os Sequeira, desde há mais de cinquenta anos que tem trazido as agora septuagenárias numa pilha de nervos e em mútuos ódios.

A esta hora, Pedro já viaja ou já estará instalado no Caesar Park de Ipanema ou no Pestana Atlântico só não se sabendo ao certo porque, é como D. Micá sempre diz, ele morre de amores tanto por Ipanema como por Copacabana e que nunca sabe onde há-de ficar, tendo por costume desempatar em Angra dos Reis. Ia eu a pensar nisto quando, ao sair de um cocktail bar ali para Santos e ao subir calmamente a Rua das Trinas para me desviar e me perder do Museu da Rádio, uma das minhas grandes paixões, fazendo tempo para me encontrar com Eduardo com quem iria jantar antes de nos dirigirmos ao palacete de D. Micá para o nosso serão das quintas-feiras, dou de caras com a própria Micá. Pedi-lhe imensa desculpa por na última noite ter tido de sair antes dela acabar o conto que estava contando, mas um desarranjo intestinal impedia-me de continuar no serão, sob pena da minha presença se tornar incomodativa para os restantes convidados. D. Micá riu-se, ou porque achou piada ao dichote ou porque se pôs a imaginar a cena e não se fazendo rogada acompanhou-me ao museu e recontou-me a história da semana anterior.

“D. Bonifácio saiu do carro depois de Aristides lhe ter aberto a porta. Não foi fácil para um homem, que embora não seja ainda um idoso, teve uma trombose que o deixou muto maltratado. Hoje desloca-se sempre com a ajuda de uma bengala, uma bengala personalizada, feita em amaranto com punho em osso de tartaruga das Seychelles, efetivamente muito bonita, com as suas iniciais incrustadas em bronze polido, fabricada por um famoso ebanista francês. O seu ar imponente, o chapéu alto, o sobretudo em pura lã, clássico, a bengala personalizada com as iniciais BA, faziam-no parecer um homem não de hoje, mas de meados do século passado. D. Bonifácio era um conservador, um homem de porte, uma pessoa elegante. O portão abriu-se e D. Bonifácio seguiu a pé, acompanhado pelos dois homens que traziam as lanternas na mão e um pastor belga, de pelo lindo bem tratado, altivo e dócil. Um dos homens segurou no guarda-chuva que entretanto Aristides lhe passara, protegendo o patrão, o outro foi alumiando o caminho. Desde que aquela herdade lhe pertencia, nunca D. Bonifácio transpusera o portão que não fosse a pé. Quando conduzia, deixava o carro na parte de fora e era um dos criados que o estacionava no parque da casa. Agora é Aristides quem o faz. Superstição, alguém comentava. Afinal são só trinta metros, sempre se desculpou. O vulto que o esperava na escadaria da porta principal intrigou-o. Fechou os olhos e parou. Teve uma vontade enorme de voltar para trás, mas hesitou. O pastor belga, parou e sentou-se ao seu lado e, com a língua de fora, olhava para onde D. Bonifácio olhava”.

Entramos no museu e visitámo-lo em silêncio. Isso faz com que não posso continuar a falar do meu amigo Eduardo. Fá-lo-ei, com certeza numa próxima oportunidade.


6 comentários:

  1. Oi Vitor
    Estive ausente um período e estava saudosa de ler as histórias fabulosas que deixas aqui aos seus leitores.
    Quem sabe dou de cara com o 'Pedro Pinto Aragão' pelas ruas de Copacabana, aproveito e mando uma lembrancinha pra D.Micá rsrs e ela me adianta algumas cenas do D.Bonifácio.
    Um prazer voltar ao seu mundo de fantasia Vitor,
    deixo meu abraço e podes fazer companhia ao Aragão quando invernar muito por aí, aqui entraremos no escaldante verão.
    abraços

    ResponderEliminar
  2. Estas histórias dentro da história, em narrativa paralela, por vezes são um pouco difíceis de seguir... especialmente quando são publicadas espaçadamente! Mesmo assim, gosto sempre de te ler! :)

    Beijocas!

    ResponderEliminar
  3. eu já me cruzei com o eduardo aragao, mas consultas de psicologia devido ao stress da chuva, ele como eu detestamso o inverno
    kis :=)

    ResponderEliminar
  4. Com a imaginação de sempre e a descrição fantástica de detalhes onde nada lhe escapa, me fiquei por aqui mais uma vez admirando a sua capacidade de bem escrever.

    Manu

    ResponderEliminar
  5. Fica-se bem dentro desta prosa magnífica.
    A caracterização das personagem traz-me algo de Eça, sobretudo no domínio da ironia.

    Um abraço

    ResponderEliminar
  6. Estive quase , quase, para apontar os nomes desta gente toda...para controlar a cena-literalmente.
    Muito bom .

    ResponderEliminar