sexta-feira, 12 de outubro de 2012

173. O Fagundes, um amigo de D. Micá.


Encontrei o Fagundes. Anda feito um maltrapilho. Ele que era todo cheio de nove horas andava no centro da cidade de calções velhos, chinelas havaianas, uma camiseta amarrotada e absolutamente despenteado. Pareceu-me ver até uma nódoa na t-shirt, mas podia não ser, podia ser reflexo das estampagens. Quem o viu e quem o vê. Por sinal eu ia acompanhado da Catarina que é toda avantgarde e que não liga nada ao como os outros se indumentam, pois, na verdade, a Catarina é um bocado narcisista e adora ser o centro das atenções e é com ela que se preocupa. Falarei mais da Catarina pois ela é muito boa moça e eu gosto de algumas das extravagâncias dela. Fiquei a cismar foi no que iria pensar a D. Micá se visse o Fagundes naqueles preparos. Cumprimentou-me com um aperto de mão pouco másculo, o que me deixa sempre a impressão de que estou a apertar um pedaço de plasticina, e perguntou-me «tens lá ido?». Pensei alguns segundo sobre a que é que ele se referia e percebi, então, que falava dos serões de D. Micá. «Tenho», respondi, «e tenho também estranhado a tua ausência».

D. Micá continuava, serena, a contar a sua história da noite e foi logo avisando que hoje, porque a história era comprida, iria fazer um intervalo na narrativa para bebermos um leitinho com chocolate, ao que foi saudada com um sorriso por todos os homens que lhe levantaram os seus copos de whisky e de vinho do Porto e alguns acentos de cabeça das senhoras presentes, até mesmo da sirigaita da Geninha que já tinha virado dois shots de vodka e da maravilhosa, ingénua e pura Luísinha Monteiro que só bebia champanhe, pois fora criada com a sua tia Natércia que viveu em França muitos anos, com o Conde Gerard Blanchet, da famosa família dos Blanchets, vinicultores em Reims. Fiz-lhe sinal que no intervalo do conto tinha urgência em falar-lhe e assim entre dentes fui avançando «… é o Fagundes».

«Aristides tinha sido um próspero industrial têxtil, mas desde que a globalização se tornou uma realidade, com os preços das confeções made in China ou made in Indonesia começaram a cair, que os seus negócios sofreram um forte abanão. Era coisa que ele nunca pensou que lhe pudesse acontecer, visto que o seu avô tinha investido em maquinaria de primeiríssima geração e construído um império. D. Bonifácio d’ Assunção conhecia-lhe bem a história de vida. Um estroina, o pai de Aristides, nunca ligou nenhuma importância ao negócio do velho, nem tão pouco à educação dos filhos. Uns emigraram e outros disseram adeus à indústria têxtil, já em decadência, sem dizer nem água vai, nem água vem, sem prestar mesmo nenhuma satisfação ao mano Aristides. Mas Aristides não. Lutou com quantas forças tinha, renovou stocks, contratou estilistas e entre lágrimas de sentimento, pois já estava acostumado aos barulhos que produziam, foi mandando, pouco a pouco, a velha maquinaria do avô para a sucata. Vieram até do Japão os engenheiros para montarem o equipamento todo novo. Era o orgulho de Aristides. Mas nem assim se aguentou. Os juros a pagar pelos empréstimos contraídos, a mercadoria a escoar cada vez menos devido ao enfraquecimento do dólar e de outras moedas dólar-dependentes, deitaram abaixo o bom do Aristides. Despediu o pessoal, vendeu as máquinas, fechou a fábrica. Pôs as contas em dia e fez alguns telefonemas. Hoje Aristides é o motorista de D. Bonifácio da Assunção, um velho amigo com quem fez o serviço militar. Aristides, travou lentamente e parou o Rolls Royce em frente ao portão. Ele conhecia-o bem, embora lá tivesse ido poucas vezes. Não se via o número, nem era preciso. Aproximaram-se algumas lanternas no escuro e ouviu-se o ladrar de cães. Ao longe, o eco ou outros cães respondiam à algazarra dos lebréus».

Não, não foi aqui que D. Micá fez intervalo mas como a história desta noite está para lavar e durar vou interromper a sua narrativa para vos contar o que falamos do Fagundes. Naquele dia não me pude alongar muito em conversas. A presença de Catarina foi um bloqueador e agora, posso dizer-vos que lhe estou agradecido. É que tudo isto contado por D. Micá tem muito mais sumo. Graziela, a mulher do Fagundes, a quem aliás todos davam os parabéns pelo casamento que fez, pois Graziela era tida como uma verdadeira rapariga de família, o pai era gerente bancário e a mãe solicitadora, classe média, remediada, sem propriedades de família mas com rendimentos que lhe puderam dar uma educação de que se orgulhavam, parece ter posto o pé na argola. E, segundo consta, foi lá em casa, na casa da D. Micá que tudo começou. Ela explicou-me assim: O Fagundes depois de acabar o curso de professor de Geografia e História teve a sorte de ser colocado numa escola secundária perto de casa. No primeiro ano correu tudo bem, mas no segundo ano de casados, o desgraçado fora deslocado para Santarém. Ao princípio ia e vinha todos os dias de carro, mas a despesa em combustível estava sempre a aumentar e ele acabou por alugar um quarto perto da escola. Um quarto exíguo, muito mal decorado, mal cabia uma cama de corpo e meio, umas cortinas escabrosas castanho-escuras, as janelas rangiam ao abrir e vedavam mal quando fechadas, um tapete nos pés da cama e uma cómoda que servia também de mesa-de-cabeceira, era tudo o que tinha de mobília. A casa de banho era partilhada com a idosa, dona da casa, que vivia só com um papagaio que se chamava Jacó. E ali passava as noites de segunda a sexta-feira o professor Fagundes, a preparar lições, a corrigir pontos de Geografia e de História, umas vezes a rir à gargalhada com certas respostas dos alunos, outras com uma raiva a que se somava a saudade por Graziela, a inquietude, a dúvida. Mas às sextas-feiras, mal o toque de saída soava às cinco e meia da tarde, metia-se no carro onde previamente já tinha arrumado a mala da roupa suja e corria para os braços de Graziela.
Fagundes não vinha aos serões de D. Micá. Os serões eram, e continuam a ser, às quintas-feiras e durante todo esse ano letivo era exatamente às quintas-feiras que mais lhe batia a nostalgia, saudades daquele salão do palacete da Lapa. Mas o Fagundes não era rapaz de muitas borgas pelo que, nesses dias de quase depressão, desligava o rádio a pilhas (Fagundes detestava a televisão), tapava a cabeça com o lençol ou com o cobertor conforme os caprichos atmosféricos e adormecia a sonhar com histórias cor-de-rosa, com leite com chocolate, com pianos brancos incrustados a Swarovsky, com a sua linda Graziela. Graziela, por sua vez tinha encontrado em Faria o consolo para as ausências do marido. Passava os serões de quinta-feira na conversa com o Faria, um estudante de engenharia aeroespacial, amigo do Eduardo Aragão, só interrompendo para aplaudir alguma peça ao piano ou algum trecho na guitarra portuguesa, quando o Bruninho, o garoto dos Mendonça nos fazia companhia ou, obviamente, durante as narrativas, intensas, emocionantes, de suspense ou de fazer chorar, contadas pela melhor contadora de histórias que alguma vez se ouviu em Lisboa. Quando Eduardo introduziu o Faria nas soirées culturais de D. Micá, todos ficavam espantados com a verve do estudante, projeto de expert na NASA, filho de famílias abastadas, eloquente no falar, D. Juan na arte de cativar o belo sexo. Quando pela primeira vez Graziela mostrou os seus seios nus ao Faria e mais que o pudor impediu D. Micá de me contar, verificou que o quarto onde este morava era ainda mais modesto do que o que Fagundes arrendara em Santarém. E se Fagundes tinha um apartamento agradável, a ser pago em prestações é verdade, ao Montepio, com máquinas de lavar loiça e roupa, frigorífico e micro-ondas, internet wireless, um dálmata de porcelana no hall de entrada que lhes ofereceu a sogra, um conjunto de sofás, uma estante de parede a parede e um candeeiro de pé, comprados no IKEA, um pequeno bar com algumas garrafas de bebidas espirituosas, uma varanda com vista para a baía do Seixal, uma cama em MDF lacado, duas mesas-de-cabeceira, um guarda-fato onde Graziela mantinha impecáveis os seus dois únicos fatos, alguns pares de calças, um blaser azul-escuro com botões de latão amarelo, com uma fateixa em relevo, dois pares de sapatos pretos de atacadores, exatamente iguais, uma dúzia de camisas, sendo algumas de manga curta e alguma roupa casual como várias camisetas, uma das quais oferecida pela organização da meia maratona de Lisboa e outra da Escola Básica 2 + 3 da Arrifana, onde um dia foi com uns alunos numa visita de estudo e onde lhe foi oferecida além da camiseta, também uma caneca de barro com a menção Recordação do Algarve, já o Faria não tinha nada de seu. Os fatos que costumava levar aos serões de D. Micá eram alugados a uma senhora que fazia arranjos e que depois dos alugar, à revelia dos seus verdadeiros donos, acendia uma velinha a Nossa Senhora para que fossem devolvidos em condições e a quem o Faria já devia mais de três alugueres, o rapaz não era estudante de coisa nenhuma, era trolha numas obras em Santo António dos Cavaleiros e o perfume que costumava usar, era dos frascos de exposição numa perfumaria de um centro comercial, próximo da loja da senhora dos arranjos. Mas Faria era um Adónis e cheirava bem. E, para quem era um simples alisador de massa de cimento contra tijolo, falava como um doutor, ou, para ser mais preciso, como um futuro engenheiro aeroespacial. Graziela fugiu com ele para parte incerta. O pior foi que, para comprarem os bilhetes de avião, tiveram de vender o recheio da casa e dos armários. Nem os dálmatas escaparam, disse-me a D. Micá. Deixaram uns calções, uma t-shirt e um par de chinelas havaianas. Eu acrescentaria que a blusa tinha uma nódoa.


5 comentários:

  1. Nem é preciso ir ao salão da D. Micá, para sentir a ambiência envolvente desses serões a contar histórias de vida... :)

    Muito bom! :D

    Beijocas e bom fim de semana!

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    1. Obrigado Teté por teres a paciência de me continuar a ler. És um / uma dos resistentes. Acho que as pessoas não têm paciência para ler posts deste tamanho. E eu aceito isso com fairplay. :)

      beijinhos

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  2. Pobre Fagundes, fiquei com pena do pobre.Não lhe chegava já a desdita de ser professor nos dias que correm e ainda ver a sua amada fugir com um trolha..enfim razões que o coração desconhece.
    As conversas em casa da D. Micá continuam a encantar-me de tão bem descritas que estão, quase se sentem os cheiros, os sons e atrevo-me a adivinhar as expressões dos ouvintes.
    Excelente Vítor!

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    1. Os professores estão sempre a levar na cabeça... LOL; grato pelo seu comentário. Um beijinho, Manu, uma fotógrafa de excelência.

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  3. Coitado do Fagundes.
    Acho que as noitadas na casa de Dona Micá, não traz muita sorte a ninguém!...
    De qualquer modo, longe de mim acrescentar mais nódoas à t-shirt deixada para trás na pressa da fuga.

    Aguardemos que a D. Micá nos traga outras estórias ou seja substituída por outro contador mais tolerante.

    Beijos, Constantino.

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