sexta-feira, 3 de agosto de 2012

162. Tripas



Não se contavam as minis que invadiam o tampo da mesa do café. Gervásio Garção e Jacinto Jesus tinham tirado a tarde para se enfrascarem e falarem dos velhos tempos. À pala de um pratinho de caracóis a que se seguiu um pires de polvo vinagrete e um de ovas de bacalhau temperadas com cebola, pimenta moída, azeite e vinagre, já lá iam mais de duas dúzias de minis.

Gervásio e Jacinto são amigos de longa data. Já se conheciam nos tempos de liceu. Tendo sido cada um de sua turma não tinham a intimidade que vieram a ter e a usufruir quando ambos decidiram, cada um por sua própria vontade, tirar o curso de oficial da marinha mercante, na Escola Náutica em Paço d’Arcos. Se o liceu não os juntou tanto quanto o comboio da CP, que os levava do Cais do Sodré à estação de Paço de Arcos, não raro até Oeiras, pois que na conversa amiúde se esqueciam de sair na estação devida, tendo de inverter a marcha para poderem chegar à escola, o João Balão e os seus petiscos eram de facto o elo de união que soldava como prata a amizade destes dois jovens estudantes. Tão amigos eram que quando acabavam o namoro com uma já o outro se agarrava à mesma febra e vice-versa para não complicar a prosa. Acabavam sempre na tasquinha a queixarem-se um do outro a atirarem culpas de um para outro «pois cedeste-ma porque a gaja não vale um pires de caracóis». E o outro «ó meu grande pilantra, para não te chamar outra coisa, a tua, mal se senta no banco do carro, adormece e começa a ressonar que eu, em vez de a levar até à praia de Santo Amaro, deixo-a mas é à porta dos paizinhos». E riam à gargalhada, sem nunca antes terem deixado de bater os fundos da garrafa, uma na outra, e soasse um uníssono «à nossa!».
Passaram mais de quatro anos sem se verem. Os cursos acabados, um ingressou na Soponata, o outro foi para a CTM, infelizmente companhias de navegação que a desastrosa política económica cá do burgo resolveu destruir, as rotas e os destinos eram diferentes e, quando um desembarcava, o outro navegava e de novo vice-versa, também para não complicar a prosa.

Foi um recado dado por Gervásio à mãe de Jacinto, num tempo em que nem telemóveis ainda existiam em Portugal, que acabou por reunir os dois amigos, primeiro num rememorativo almoço no Chico e, depois de um passeio pelas instalações da Náutica e alguns dedos de conversa com antigos professores e com a bonita empregada da secretaria, acabarem, finalmente, a tarde no João Balão.
- Lembras-te da Carolina Cintra que andava com a gente no quinto ano do liceu e que todos a conheciam pela fuinha? – Perguntou o Gervásio Garção, a propósito ninguém sabe de quê e já com mais álcool no estômago e no sangue do que aquele que lhe permitia abrir os olhos com firmeza.
- Se me lembro, ó Gervas – que era assim que Jacinto Jesus tratava o amigo – se me lembro. Era uma miúda que veio transferida de um liceu do Porto não foi? Andei caidinho por ela e ela nunca me deu a mínima bola.
- Vê lá se te portas com juízo, já não somos garotos – atalhou Gervásio com receio de que o Jacinto entrasse nas propostas e apostas que faziam com que trocassem de namoradas um com o outro, como quem empresta uma camisa para um jantar com a professora de inglês. – Eu agora sou um homem casado e já não vou nessas maluquices.
- Mas diz-me cá, ó Gervas. O que é que a Carolina Cintra tem a ver com o teu casamento?
- Caraças, pá, parece que não percebeste, ó tanso. – E virou mais uma mini de um só gole. – Casei com a Cintra, pá. Não deu para entenderes?
Naquele momento era difícil que alguém entendesse alguém. Tal era o arrastar de línguas que parecia não se descolarem do céu da boca e nem se desprenderem dos dentes. Já se tornava até difícil perceberem-se um ao outro, quanto mais entenderem-se.
- Pois ouve bem.  ó Gervas. À Cintra até as tripas lhe comia. – rematou o Jacinto que entre as miúdas do liceu, era conhecido pelo Jacintão, no seu metro e noventa e dois e quase 100 quilos de peso e deixando cair a pesada cabeça sobre o braço, adormecendo de seguida.
Nem a conta pagaram. O senhor João chamou-lhes um táxi, assentou com o taxista que primeiro deixaria em casa o Jacinto pois morava mais perto e estava bem pior da buba e só depois entregaria Gervásio à porta de sua casa. Pagou ao taxista a corrida por antecipação e recomendou-lhe, «cuide bem desses dois».

A dona Isménia de Jesus, mãe de Jacinto era uma senhora que sempre tivera Gervásio na melhor das contas. Assim, cada recado que recebia do Gervas com destino ao seu filho era como se fosse uma ordem a cumprir com a maior brevidade possível. Até entrava em ansiedade. Era quase meio-dia e o Jacinto ainda nem tinha acordado para o almoço. Ora essa! Agora que o moço gozava de umas merecidas férias de embarcadiço era deixá-lo descansar, mas assim não. Assim era demais. Mas enfim, hoje era desculpável porque na véspera não tinha chegado muito católico a casa. A olhar de mãe, ninguém engana. Mas logo que o viu descer a escadaria que ligava os quartos à sala, onde habitualmente tomava o pequeno almoço em casa, nem o deixou respirar.
- O Gervásio ligou-te
- E o que lhe disse, mãe? – Perguntou-lhe esfregando os olhos.
- Olha, disse-lhe que deves ter abusado um bocadinho, que nem jantar quiseste e que ainda estavas a dormir.
- Fez bem, mãe, em não me acordar. Obrigado, mãezinha. – E deu-lhe um beijo repenicado na bochecha que deixou dona Isménia toda embevecida. – O que é que o Gervas queria?
- Quer que vás lá jantar esta noite.

Carolina Cintra abriu a porta ao amigo do marido num à vontade de andar por casa. Um short mostra-badana de ganga azul-clara , uma blusa branca de alças, com um coração aplicado ao meio do peito de onde parecia as mamas quererem saltar e chinelas havaianas cor de rosa. Dava-lhe um ar desarranjado, meio blaisé, mas sexy. Jacinto não podia, nem evitou fulminá-la com os olhos.
- Olá fuinha - disse com um sorriso de estupefação mas de uma timidez mal disfarçada, quando Carolina lhe abriu a porta.
- Olá Jacintão. Entra. Não faças cerimónia.
- E o meu amigo Gervásio? – Perguntou, por não ter encontrado outra maneira para se desbloquear.
- Vê lá a chatice Jacinto. Sem mais nem menos, recebeu ao meio da tarde um telefonema da companhia, teve de fazer as malas à pressa. Apanhou um voo de última hora e já deve estar a caminho do Dubai. Vai render um piloto que adoeceu de repente. Coitado.
- Sendo assim se calhar é melhor eu voltar noutro dia. Até porque, com certeza não estavas à minha espera.
- Aí é que tu te enganas, Jacinto. Foi tudo combinado com o Gervásio. Não lhe disseste que a mim, me comias as tripas?
- Disse. Não posso mentir. – Respondeu ainda mais acabrunhado Jacinto, tentando desviar o olhar das cavas da blusa de Carolina, por lhe ter vindo à memoria o que Gervásio disse e deixou claro, de que os tempos de adolescente já tinham passado.
- Pois então passa ali para a sala de jantar. Vou-te servir um vinho fino enquanto se apuram as tripas. Hoje vais comer umas tripas à moda do Porto como nunca te passaram pelo estreito, carago.


7 comentários:

  1. Isto é que são amizades...grande Gervas!
    E claro, o Jacinto lá teve de fazer das tripas coração.
    Quem diz o que quer, come o que não deve.
    Tenho cá a impressão que essa Carolina nao me é estranha. As tripas estavam salgadas?

    Gostei muto deste relato, mas o pratinho dos caracóis, com o cheirinho a oregãos, não me sai da ideia...

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  2. Já consegui pôr a leitura em dia e neste... essa Carolina não é a tal? Carago:):):) e tripas e caracóis fica lá com isso.

    Gostei desta história e como sempre pões-me um sorriso:):):)

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  3. Constantino.
    Quer-me cá parecer que tens de voltar às chamuças, à salada de orelha de porco, aos peixinhos da horta e às punhetas de bacalhau.
    Tá provado, comprovado e re-comprovado, que o pessoal não vai à bola com as tripas à moda...do Porto.
    Carago!!

    Beijocas.

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  4. Excelente escrita

    a desbravar caminhos

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  5. Quem nunca comeu, que experimente, hehe!

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  6. e depois do jantar deu direito a sobre a mesa? para assentar as tripas...
    abraço

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