quarta-feira, 20 de junho de 2012

152. Ismael (65) - Depoimento ou despacha-te que se faz tarde



Olá, eu sou Ismael ben-Avraham. Sou um judeu, de uma família tradicional, nascido nas montanhas da Áustria e que, graças a um esquiador austríaco que, cheio de cerveja no bucho, resolveu esquecer-se do blusão numa estância de esqui, consegui safar-me aos esbirros nazis e regressar à terra de Davi. (O escritor reflete sobre a rima usada na frase. Quem sabe um dia se dedique a histórias infantis onde o género tem mais impacto.) Curiosamente, pertenço a um ramo de uma família que nos tempos da Inquisição em Portugal fugiu para outros países da Europa, nomeadamente a Holanda e a Áustria. Nesse tempo ainda era a família Oliveira que aos poucos foi perdendo a identidade lusa, embora se encontrem todavia alguns עץ שמן em Israel e alguns olijfboom na Holanda, bem como, pelo menos uma família Olivenbaum na Áustria. Mas nunca fomos uma família muito unida pois consta dos anais e da história da família, várias ofensas entre ramos, de tal modo que na Áustria chamávamos aos Oliveira holandeses, os Oliveira da ganza e eles chamavam-nos, a nós, os da montanha, os Oliveira da serra que era um eufemismo para não nos chamarem azeiteiros. E eram muito invejosos. Quando eu me formei em medicina chamavam-me o Oliveira do hospital para ver se eu me chateava, eles que, além da ganza, sempre foram Oliveiras de piercings com brilhantes, a lembrar certas ligações com o futebol. Mas adiante, porque vários descendentes foram perdendo o Oliveira e eu, já sou um ben-Avraham da parte do meu pai mas, quem sabe, algum tetravô se chamaria Ismael de Oliveira ben-Avraham. Bom, mas isto que vos contei, das minhas ascendências, parece nada ter a ver com a resolução do crime da Rua dos Correeiros, mas tem. Foi exatamente por causa de eu ainda ter sangue português que a Mossad me mandou para Portugal à procura da medalha que o fascista Rafaello Vicentini roubou a Jürgen Grass, num comboio na Suíça, com o número da conta onde está guardada a fortuna da família Schneider. Mas, antes de continuar tenho de vos pedir um favor que, se calhar, nunca ninguém antes vos pediu. Eu vou fazer uma revelação, mas não gostaria que, no final, quando o inspetor vos dissesse quem matou a Isabella, a filha do ladrão e fascista Rafaello, coisa que naturalmente fará no final da alocução que está em curso na tasca de Ismael Gusmán, não desatassem todos a dizer, «eu já sabia, eu já sabia». Até porque o inspetor não gosta de se sentir ultrapassado, mas que, para não me perder, já vos falarei disso mais adiante. Pois a minha revelação é a seguinte. Eu não matei Isabella Vicentini! Passavam poucos minutos das sete da manhã quando, no meio de uma cirurgia de pequena importância, que os meus assistentes puderam facilmente terminar, fui chamado ao telefone do Hospital. O senhor Ishmail Baruch, tinha conseguido infiltrar-se em casa de Isabella, graças a uma gazua feita com um clip de aço inoxidável, como ele tinha aprendido nas escolas da Mossad e em alguns filmes em cinemascópio que começavam a passar nos écrans israelitas e, também, graças ao estado de cansaço de Isabella, que descurou a tranca e o ferrolho, deixando-os abertos. Isabella dormia, pois, segundo o senhor Baruch e tal como o manuscrito de Francisca o confirma, teria chegado, naquela noite, bem mais tarde do que o costume. Sem que ela o notasse, pois o sono era profundo, começou o senhor Baruch a utilizar as técnicas de busca noturnas, típicas das polícias políticas e serviços secretos sofisticados. Foi abrindo gavetas e armários, apalpando sutiãs e cuecas de renda, camisas de dormir em algodão e em cetim, meias de vidro, com e sem renda, com e sem costura, com e sem pé, tutus em tule italiana, o que mostra que o senhor Baruch até pelo quarto de Ekatrina se movimentou, sapatos de ballet, penaches de corista, batons, rouges, pós de arroz, lápis de sobrancelhas e espelhos, pinceis de rimmel, saias e vestidos de chita, aventais e panos de cozinha, botas de cano alto e sabrinas, toalhas turcas e casacos de abafar, gabardinas, canadianas e camiseiras, cujas cores não me pode referir, dado que toda a pesquisa se fez durante a noite. Teve mesmo o cuidado de andar devagar para que o seu defeito na perna esquerda não o traísse com o mancar descoordenado que poderia despertar a bela corista adormecida. De nada lhe valeu toda aquela apalpação. Nem sinal de medalha, nem de fio, nem de nada que interessasse a um espião, pelo que com a raiva que se lhe acometeu, só lhe apeteceu mesmo foi pegar numa faca e matar logo ali aquela filha de um fascista. Eis senão quando, um reboliço se ouve no corredor, por onde alguém, aproveitando a porta, inadvertidamente deixada aberta, pelo senhor Baruch tinha acabado de entrar. O individuo, sem experiência para se deslocar no escuro, batera contra uma coluna e fez tombar um vaso de flores, onde despontava uma chamaedora elegans que se estatelou direta no chão, desfazendo-se numa dezena de fanicos. Isabella assustou-se e deu um pulo da cama. O senhor Baruch, mais surpreendido do que assustado, escondeu-se no guarda-fatos do quarto de Ekatrina. Isabela precipitou-se para o corredor. O senhor Baruch colou o ouvido na porta do roupeiro. Isabella deu um grito e depois outro. O senhor Baruch ouviu o barulho seco como o de um corpo a cair no chão e saiu de imediato do armário. Correu direito ao corredor no seu, apesar de tudo, engraçado mancar. Alguém no andar de baixo, se lá estivesse, com certeza teria notado isso. Pela escada abaixo, uma correria louca. Ao senhor Baruch seria impossível acompanhar. No chão jazia e esvaía-se em sangue a corista Isabella Vicentina. Estava morta. No peito uma faca. No corpo, três facadas.

Foi isto que escutei ao telefone. Pedi ao meu assistente principal que tomasse conta da cirurgia. Segredei ao ouvido da enfermeira Helena que teria de me ausentar com urgência. A enfermeira Helena, entendeu erradamente o que eu queria dizer e saiu comigo. Quando me apercebi e vi que a enfermeira feia, que me andava a perseguir já há algumas semanas, teria topado o meu segredo, passei por ela, e disse-lhe «anote a hora e amanhã não se esqueça de ir fazer queixa ao senhor Diretor». Pisquei-lhe o olho e olhei para o relógio. Eram sete e meia da manhã. Disso, a enfermeira feia, deu conta ao inspetor Ismael Sacadura Flores, pelo que, como irão ouvir na alocução do polícia, eu estou inocente. Infelizmente, o senhor Baruch, numa crise de nervos, de raiva e de frustração, desenterrou a faca do peito do cadáver e fez-lhe um quarto golpe. Depois saiu.

Não quero terminar esta minha revelação sem acabar o que comecei. E o que comecei foi por pedir-lhes que não dissessem nada ao inspetor Ismael Flores de que já sabem que eu estou inocente. Ele vai sentir-se ultrapassado e quando ele se sente ultrapassado, desata a comer berbigões abertos ao natural com coentros picados e sumo de limão, requeijão com doce de abóbora, profiteroles com molho de chocolate, a beber moscatel de Setúbal, a comer pistachos da Pérsia e a cuspir as cascas, tremoço saloio com cerveja a copo, caracóis refogados em tomatada e bocadinhos de chouriço, a beber vinho rosé bem gelado, a comer choco frito à setubalense, a beber poncha da Madeira, a comer alcagoitas torradas e a beber café sem açúcar. E depois não querem que o homem fique com gases.


5 comentários:

  1. Tenho perdido uns capítulos, vou tentar inteirar-me do andamento, mas já vi que pelo menos este está ilibado...*

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  2. Eheheheheh
    Ainda bem que este episódio saiu hoje à cena, Contantino. É que a partir de amanhã tenho cá a minha tropa da margem sul e tenho de começar a pensar no cabrito, nas sardinhas, tomates e pimentos, para a noite e dia de S.João. Isto sem contar com o carvão. Vai ser um corropio.
    Parece-me que afinal há mais do que um assassino. Se é que se pode matar alguém que já está morto. Para agora temos cinco facadas, atão as outras duas?
    Quando acabares esta saga, se é que algum dia isto vai acabar, pensa então em escrever histórias infantis.
    Quando o teu neto souber ler não vai entender patavina disto...mas lá que vai rir e muito, isso vai.

    Beijocas.

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  3. Aos poucos vamos ficando a saber quem não matou Isabella. Só que estas confissões... não sei porquê, dão-me cá uma fome. Se eu tivesse aqui umas profiteroles com chocolate mmmm....

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  4. Entre Oliveiras daqui e dali, vindas dos lugares mais estranhos e facadas que ficámos a saber que não foste tu o autor...fiquei aliviada:))) misturam-se pitéus de fazer babar qualquer um e como são quase horas de almoço, já estou a imaginar onde irei comer uma bela sardinhada bem regada.
    Essa das histórias infantis, não era má ideia , não senhor, é que com a tua imaginação, acredito que nasceriam enredos bem interessantes que prenderiam mesmo a criancinha mais irrequieta.
    Um dia feliz para ti e nada de abusos, olha o colesterol:)))

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  5. Da história dos Oliveiras ao final feliz daquela mesa onde se petiscavam só coisas boas, se passou mais um pouco do enredo desta história que nos vai permitindo sorrir... e petiscar!
    Um abraço,

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