terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

103. Ismael (27) - Seio familiar



No seio familiar não houve surpresas. A minha mãe disse-me que já estava à espera, pois já era um hábito de família. E relembrava-me que o meu irmão Leopoldo, deste há muitos anos, escreve programas de computador e que o meu mano Paulinho escreveu já uma tese de mestrado, outra de doutoramento e passa o tempo a escrever artigos em revistas. Já para não falar nos teus filhos, rematou. Só me faltou dizer que eu saio a eles, logo eu que sou o mais velho. O meu pai quis também saber do que é que tratava o livro, mas quando lhe comecei a explicar e depois de ter voltado ao princípio duas vezes, ele achou tão complicado que me contou a anedota da moça que quando recebia aerogramas escritos pelo namorado, no tempo da guerra, os levava ao farmacêutico para decifrar. O meu pai aproveita quase todos os ensejos para dizer uma graça. Acho que ele tem a quem sair. Adiante.

Depois falamos de coisas mais práticas, eles quiseram saber quando é que sai o livro, quanto é que vai custar, se eu já tenho muitas encomendas e tal e foi aqui que surgiu a confusão toda. Expliquei-lhes que isto não era bem um livro, nem tão pouco eu próprio sabia se não seria um abuso estar a chamar-lhe livro, pois não é de papel (tenho de fazer um parêntesis para vos dizer que descortinei neste preciso momento o primeiro sinal de admiração pois, que eles saibam, livro é mesmo papel e não há cá nem fun-funs, nem gaitinhas), é escrito na internet e que só quem tem esta ligação é que me pode ler. Talvez se algum dia vier a ser publicado, aí sim, poder-se-á vir a chamar livro, mas haverá sempre quem diga que, como livro, o melhor era eu ter ficado quieto e não se falava mais nisso, mas nós já sabemos como cruel é a crítica. Pelo sim, pelo não, lá me foram dizendo para quando eu fosse lá a casa com a tal internet, lhe lesse umas paginazitas para verem se eu tinha jeito para a coisa. Depois despedi-me, com um beijo, da minha mãe, que ficou com uma lágrima no olho, cheia de pena da Isabella e que ainda me perguntou porque é que deram logo sete facadas à rapariga, que isso não se faz, não há direito, palavras dela. E saí com o meu pai.

O meu pai, pôs-me um braço por cima do ombro, caminhamos no corredor direitos à porta, descemos as escadas lado a lado e, já na rua, suspirou-me, com que então escritor! Eu corei um pouco, porque sou modesto e aproveitei para lhe pedir desculpa por naquele dia, quando eu andava na escola primária, em que ele me ofereceu a minha primeira caneta de tinta permanente eu tê-la deixado roubar. Pela primeira vez ele confessou que nunca se tinha importado com isso pois sempre pensou que eu viria a ser jogador de futebol. Como estávamos longe da taberna do Ismael, entramos no café lá do bairro e fomos beber dois abafadinhos. Quando me vim embora ainda me perguntou, mas sete facadas porquê?


11 comentários:

  1. Preocupações de pais e realmente as sete facadas foram demais...mas oxalá consigas publicar em papel para que eles e nós sintamos mais orgulho no já existente como teus leitores:)

    Pus a leitura em dia e já não tenho adjectivos para aplicar e só espero que nunca desistas.

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  2. Isto das relações familiares é complicado! E depois não se sabe quem sai a quem!
    Mas acho bem isso do livro, mesmo sendo um livro a brincar, porque os verdadeiros têm folhas, feitas de árvores e tal...
    (A propósito, quem é que deu sete facadas a quem?)

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  3. Hummm... afinal ele interessou-se!!
    E qual é o pai que não tem curiosidade em saber o que o filho vai fazendo?!

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  4. o numero sete pode querer dizer uma infinidade de coisas, eu própria escrevi um texto que se intitula 7 e acho que pode ter várias interpretações.

    mas 7 facadas?? não será demais?! (brinco, claro)

    o texto está uma delicia.

    um beij

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  5. Há uns tempos reencontrei a minha primeira caneta de tinta permanente. Velhinha. Daquelas que tinham um depósito para encher, sugando a tinta do tinteiro. Lembrei-me de como tinha ficado orgulhosa com ela. Foi na primeira classe e significava que eu já podia escrever sem ser só a lápis...

    E é verdade... porquê sete facadas? :))

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  6. Ai as re(a)lações familiares...

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  7. Não sei se é por (ainda) ser Carnaval, mas hoje estou farta de me rir na blogosfera! E este teu texto não fica atrás (nem o anterior, note-se!) do sentido de humor generalizado! :)))

    E fico a pensar com os meus botões se os pais da tia Agatha, da tia Ruth, do tio Rex, do tio Erle e por aí adiante faziam perguntas incómodas dessas... :D

    Claro que todos queremos saber, não só porque foram sete, mas whodunit! Portanto, mãos à obra... :)

    Beijocas!

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  8. Há tanto tempo que me habituei às sete facadas desferidas sem dó nem piedade, sabe-se lá porque energúmeno, na desventurada Isabella, que já nem me interrogo porque motivo foram sete e não seis ou cinco.
    Se calhar nunca o saberemos.
    Também para quê? Agora já não adianta chorar sobre leite derramado! Ou será que adianta?
    Na volta ainda tudo não passou de um mal entendido do historiador e a bela corista aparece vivinha da silva...
    Ahh, isso sim, iria tirar todas as ralações que ensombram o orgulho que existe no seio da família!!
    Que tal se formassemos uma corrente solidária entre todos os leitores? Boa!

    Beijinhos e abraços.

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  9. Olá, Constantino!

    Pois é; a mãe não apreciou nada ter decretado a morte da rapariga, e logo à facada, e livro é coisa só mesmo em papel.
    Ainda assim o pai está todo vaidoso, pois já sabe que o filho há-de fazer boa figura, e isso percebe-se nessa cumplicidade boa.

    Em papel ou noutra coisa, que saia lá esse livro, e boa sorte.

    Um abraço.
    Vitor

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  10. Tão gostosa esta leitura. Dinâmica. Quase como assistir novela, que o cenário vai mudando.

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  11. Eu fecho com a Juanita! Aliás, tá me parecendo que você assiste novela brasileira, Vítor Fernandes? De repente tu te inspiras em alguma, e de uma hora para outra, quando menos se espera, eis Isabellita vivinha da Silva Braga Orleans Bourbon e Bragança de Melo (tem que ter sobrenomes assim reais, históricos, "Silva" é coisa de gente desimportante, menos o Presidente Lula da Silva)...

    ;)

    P.S.
    Sim, mas logo sete facadas? Fiquei com pena da moça.

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