segunda-feira, 11 de julho de 2011

51. Bolas


O Miguel foi meu professor e meu amigo. Eu era ainda um jovem pós-adolecescente e Miguel um adulto com comportamentos etariamente dúbios. Ora parecia uma criança pequena na sua ingenuidade e espírito de partilha, ora um velho macambúzio e embirrante. Mas esta segunda personalidade só aprecia depois de uma noite de jogo mal passada. Miguel apostava forte e sofria as consequências. Durante a semana, entre uma aula de Química, que ele explanava com mestria e com o ar mais einsteiniano que se possa imaginar e uma partida de bilhar, tomávamos café, discutíamos futebol e política e um dia, sem que nada de absolutamente extraordinário tivesse acontecido, passamos mais de seis horas a discutir religião. Miguel dizia-se ateu convicto e praticante, o que mais admiração me causou, dada a sua bagagem no conhecimento das divinas matérias. Aos fins de semana eu nunca via o Miguel. Partia à sexta-feira à noite para uma fazenda no Alentejo e passava quarenta e oito horas a jogar póquer. Umas vezes aparecia, à segunda-feira, alegre, conduzindo ora um Porsche 411, ora um Mercedes classe E. Outras vezes telefonava-me para que eu o fosse buscar ao Alentejo porque, além de já ter perdido o carro, nem dinheiro para o autocarro de regresso a Lisboa ele tinha. Nunca soube onde ficava a tal herdade, pois Miguel sempre estava num local diferente quando, às vezes ainda perdido de bêbado da última garrafa de whisky, se me aparecia desfraldado e em adiantado estado de deixa-me estar não me digas nada. Um dos momentos negros desta cumplicidade foi eu ter de penhorar quase metade da minha herança para lhe resgatar a namorada que ele tinha apostado num lance sem qualquer hipótese. Pagou-me tudo até ao último tostão mas não voltou para Florbela. Eu não perdi nada. Não só, como disse, recuperei o dinheiro como fiquei com Florbela por mais de seis meses. Florbela deixou-me, não tenho vergonha de o dizer, porque eu não lhe acrescentava adrenalina como Miguel. Nunca a tinha apostado e, isso, ela achava que não era de homem.

Do meu convívio durante tanto tempo com Miguel, ficou-me o maldito costume de apostar. Durante muito tempo eu não saía de nenhum impasse, não dava um único passo em frente que não tivesse de fazer uma aposta antes de avançar. No dia em que eu e o meu amigo Zé Manel passeávamos junto ao lago Zurique, em mais um intervalo de uma chatérrima viagem de serviço, ao avistarmos uma geladaria, sem exagero a mais de cem metros, virei-me para o Zé e disse-lhe que apostava com ele que a miúda do balcão era portuguesa. Ele deu uma gargalhada e disse-me que comigo não arriscaria apostar a namorada. Eu propus-lhe que desta vez ficassemos em que quem perdesse pagaria os sorvetes. O Zé Manel só teria de chegar perto da moça e pedir em português, os dois gelados. O Zé ainda barafustou comigo porque ia ficar com cara de parvo quando ao pedir os gelados a rapariga não entendesse patavina e propôs-me que fizesse o pedido em inglês. Eu perguntei-lhe, sabes alemão Zé Manel? Não? Pois a aposta é em português e está feita. O Zé Manel pediu, em vicentino português e educado, um gelado, se faz favor e a menina no balcão perguntou-lhe, quantas bolas?

Texto e foto do autor. Todos os direitos reservados.

25 comentários:

  1. Eheheh, se algum dia algum namorado se atrevesse a apostar-me ao jogo, rifava-o imediatamente! E rifava-o no verdadeiro sentido da palavra, venderia rifas para saber quem quereria o traste... :)))

    Quanto à menina da gelataria, confessa: já lá tinhas estado! :)

    Beijocas!

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  2. É por essas e por outras que eu peço sempre um Corneto ou um Perna de Pau. :)))

    Mais um conto exemplar e bem escrito.

    Um abraço.

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  3. Bolas, Constantino!
    Mas que rico aprendiz de feiticeiro!
    Fez bem em nunca ter apostado a rapariga, mas se ela gostava que lhe acrescentasse adrenalina, porque é que não a levou a andar na montanha russa?
    Seria bem melhor do que a roleta...

    Afinal,sempre é verdade...onde há um português há logo dois ou três!
    Ora diga lá se não foi essa certeza que o levou a apostar?))

    Gostei, francamente, dessa dubialidade da personalidade do professor Miguel. Ora ingénuo e cheio de espírito de partilha, ora introspectivo e embirrante.
    Fez-me lembrar uma pessoa que eu conheço.

    Beijos

    Janita

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  4. Acredito que nunca "me" apostaram... Mas saber ao certo, como??? Rsrsrs.. A única coisa que sei é que iria odiar quem fizesse isso!

    Belo conto Constantino. Parabéns :)

    Bjs e uma excelente semana,

    Tânia

    PS.: Fantástica fotografia! Onde é?

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  5. Gosto de apostar gelados. Fica-se sempre a ganhar...pagando-os ou não :))

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  6. :))! Muito engraçado o conto. Há sempre grande probabilidade de se encontrar um português na hotelaria lá fora, principalmente na Suiça .. :) Beijinho

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  7. Tânia esta foto é na Suiça, mas junto ao lago Léman e não ao lago Zurique. Acho que tenho algumas junto ao lago Zurique mas ainda em papel.

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  8. Fiz, eu que detesto apostar, uma aposta com meu marido a respeito de uma garçonete em um restaurante da rua Augusta, em Lisboa. Vi-a de longe e era a única que servia as mesas rebolando os quadris e sorrindo. Apostei que era brasileira.
    Não deu outra. Abraçamo-nos, eu e ela pra espanto dos fregueses!
    O que meu marido pagou de aposta? Não conto...

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  9. Por essas, vou seguir sozinha...


    Um grande beijo, uma semana maravilhosa!

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  10. Ótimo conto, como sempre!

    Me divirto muito por aqui!

    Essa de apostar a namorada, pra mim é novidade...
    :))

    E por falar em "miúda do balcão", por incrível que pareça, quando estive em Lisboa em 1909, quase todas as moças que me atendiam ao balcão, ou mesmo as garçonetes, falavam português, porém do BRASIL! Até mesmo a camareira do meu quarto do Hotel. Fiquei abismada! Não tinha idéia que havia tantas brasileiras em terras lusas!
    Tem umas, na verdade, que já estão a tanto tempo por aí, que já falam com sotaque português...rsrsrsrs

    Abração pra você, amigo.

    Te desejo tudo do melhor.

    Cid@

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  11. Essa de apostar namoradas assusta um bocado, pois imagino a forma de a colocar no banco e render juros. Abraço!

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  12. Olá, Constantino!

    Mas que rico palpite; bem apostado. olha se ele tem apostado a namorada; que sorte a tua, hein...!
    Mas um geladinho, com bolas à escolha, também já não é nada mau...
    Abraço
    Vitor

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  13. No mínimo curioso esse conto! Vim agradecer-lhe pela visita.Volte sempre! Estou preparando algumas postagens que darão continuidade ao assunto "300 anos de história" para os próximos dias.

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  14. Bingo! Amigo Constantino!

    Sabe que o meu filho trabalha em Zurique?
    Agora no aeroporto mas esteve muito tempo na restauração. que é por onde começam todos até chegarem ao nível X, sei lá o nome.
    Só ao fim de alguns anos, e sem cadastro, são equiparados aos nativos e considerados aptos a concorrer aos mesmos postos de trabalho.

    Assim sendo, eu teria apostado mais alto.

    Beijinho

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  15. ja me senti apostada algumas vezes

    Bjinhos
    Paula

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  16. Meu filho apostou a professora de Química! :))) Só que na última hora ela conseguiu se safar da trapaça dele e sabia até quem tinha aprontado. Evidente que foi no meio de uma festa e eles se dão muito bem, senão as notas dele... ai, ai...
    Conto perfeito!!!

    Mirian Martin (desisti de brigar com o seu comentário)

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  17. Na "mouche"!!
    Sempre a surpreender pelo desfecho, sempre a confirmar pela boa escrita.

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  18. Passei por curiosidade e adorei seu blog. Quanto ao texto ,muito bom,quantas bolas? rsrs,abraços ,ja estou a seguir.

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  19. E fico em suspense sempre que venho aqui..como acabará? que destino? qual o desfecho? o inesperado surprende-me sempre esta é a qualidade dos grandes contadores de histórias.
    Aposto que a próxima será tão boa como esta:)))
    Abraço
    Manu

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  20. Olá

    Soberbo, como sempre.

    Consegues prender-me até ao fim.

    Não gosto de apostas.

    Bjs.

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  21. e como sabe bem numa ida ao estrangeiro encontrar alguém que fale português. Também me aconteceu algo parecido, mas jamais fazer apostas:):):)

    Adorei!

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