quinta-feira, 23 de junho de 2011

44. Sandrinha


Naquela tarde apeteceu-lhe sair. Costuma passar as tardes pachorrentas de verão em casa, a ver televisão ou a ler um livro com a ventoinha ligada no número três e as invernosas, quase sempre no sofá, de pantufas e de roupão, cachimbo, ele é dos que fumam em casa, um mau hábito pelo qual D. Isaura passa o tempo a criticar e a abrir janelas, com livros espalhados na mesa da sala e no chão. Não raras são as vezes que Sandrinha, uma brasileira do interior do Ceará, à procura de vida melhor cá no pedaço e entretanto contratada como criada de casa, lhe joga uns olhos fulminantes e lhe chama a atenção de que assim não pode ser, tanta desarrumação, que não pode aspirar o chão, limpar as mesas, escovar os sofás, ainda mais com os pelos dos quatro gatos e desata num pranto, em brasileiro já se vê, pedindo a todos os santos e até ao seu padrinho Padre Cícero, que ela diz de uma forma que só a custo se percebe, que o patrão volte a sair de casa, volte a beber cerveja mas que a deixe, pelo amor dos santos e de seu Padim Ciço, que a deixe trabalhar. Mas, naquele dia calmo, quando pouco faltava para o Sol começar a beijar o horizonte, decidiu sair. Antigamente, desde que se aposentou, entre outros passeios que fazia durante o dia, tinha o costume de sair pelas sete da tarde, mais ou menos quando o seu amigo Jorge chegava do trabalho para se encontrarem, sempre no café central , para uma cerveja e dois dedos de conversa. Mas há muito tempo que os encontros começaram a rarear e finalmente, já lá vão mais de três anos, deixaram de se encontrar. Conversei já com D. Isaura sobre isso, mas Eduardo, a quem ela, à parte de barafustar por causa do fumo e do cheiro do tabaco Gama (nunca mudou de marca desde que se lembra de fumar cachimbo; um dia o filho mais novo, viajante assíduo pelas europas e américas também, trouxe-lhe um pacote de um qualquer pipe tobacco americano com aroma de canela e Eduardo apenas abanou a cabeça negativamente), mas D. Isaura que lhe chama carinhosamente de o meu monge, não faz a mínima ideia porque é que o marido e Jorge se terão afastado. Naquele dia, deu-lhe uma vontade enorme de se embebedar de azul. Do resto do azul que o céu ainda continha, do azul do mar, azular-se em positivas vagas de aromas e luzes. Saiu, assobiando como se fosse um jovem adolescente a treinar uma serenata, meteu no bolso a sua pequena máquina fotográfica digital, que raramente usava e, num ápice, arribou à praia, de onde não mora longe, diga-se de passagem. Sentou-se numa rocha junto à calçada, meio virado para as pessoas que àquela hora caminhavam e corriam para manter a forma, ou simplesmente passeavam, meio virado para o mar onde as ondas ao baterem no molhe criavam uma doce neblina, proveu a caldeira do cachimbo da quantia exata de tabaco, acendeu o cachimbo, deu-lhe duas baforadas e inebriou-se com as pequenas gotas de perfume a sal. Tirou a máquina do bolso, disparou em várias direções e como uma criança pequena quis logo ver o resultado da sua obra. Alguém a quem de passagem tirou o retrato tinha as feições do Jorge e, como que por milagre, apeteceu-lhe tomar uma cerveja. Sandrinha iria gostar de saber.

Texto e foto do autor. Todos os direitos reservados.

13 comentários:

  1. Hehehehehe!...

    Amei a Sandrinha a clamar pelo Padim Ciço!

    E olhe, que ela tanto clamou, que os Santos a atenderam!...rsss

    Te desejo um maravilhoso feriado, amigo.

    Beijokas,

    Cid@

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  2. Boa noite.
    É a primeira vez que aqui venho, gostei muito do texto e da forma como escreve, parabéns!

    Grata pela visita.

    Beijinho,
    Ana Martins

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  3. É impressão minha ou este texto tem uns pozinhos de auto-biográfico?! :)))

    Mas gostei muito! Embora ficássemos sem perceber se as fotografias saíram boas... :)

    Beijocas e bom feriado!

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  4. Teté, autobiográfico não pode ser porque nunca tive nenhuma empregada brasileira.

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  5. Ana Martins fico feliz por ter gostado. Volte sempre que quiser pois é muito bem vinda.

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  6. Cida, você já é visita da casa e eu adoro que venha sempre.

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  7. Bem... afinal o Padim Ciço sempre faz milagres!!

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  8. Olá meu bom amigo hoje só passei para lhe deixar o meu beijinho de luz e muita paz, minha saúde está fraca.
    Tudo de bom em sua vida.

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  9. Por vezes basta um pequeno "clique" para nos tirar do marasmo...

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  10. Por vezes temos que pegar em nós próprios e sairmos, milagres que nos tiram de uma rotina um pouco doentia e nada como dar uma volta a pé e disfrutar do que ainda não é taxado:)

    Adorei!

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  11. Olá, Constantino!

    Há dias assim, dá-nos no bestunto, e lá vamos nós, sabe-se lá porquê...Para bem da Sandrinha, coitada,esperemos que seja mesmo o Jorge...
    Gostei de ler, e do estilo de escrita.

    Um abraço.
    Vitor

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  12. Gostei da Sardinha! Belo conto! A foto é magnífica. Abraço

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  13. Meu querido amigo que delicia raspar o fundo do tacho do bolinho acabado de fazer, mas também que carinho desejar-me as melhoras são coisas que jamais irei esquecer.
    Ter amigos verdadeiros vale todo o oro do mundo e infelizmente eles se podem contar pelos dedos.
    Desejo na sua vida tudo do melhor que aquele Deus que a gente nunca vê mas que sempre está por perto , paz amor e muita alegria em sua vida...

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