sábado, 11 de junho de 2011

38. Trutas



Várias vezes me alertou para que quando eu pusesse as amêijoas na frigideira, o azeite já estivesse bem quente. E que os alhos não seriam descascados mas sim apenas esmagados para que não queimassem. A especialidade dele não era as amêijoas à Bulhão Pato. Nem sei qual era a especialidade dele. Ele era um cozinheiro exímio, o melhor que eu conheci. Amador, dizia sempre, para que não houvesse confusões.

Se não me falha a memória, não, não falha, foi apenas uma força de expressão, conhecemo-nos na quinta de um amigo nosso, ainda adolescentes, onde ele tinha a mania de saltar para a cozinha enquanto nós saltávamos para a piscina. Quando o cheiro atacava, como se fosse um filme de desenhos animados, seguíamos-lhe o rasto, saltávamos borda fora, neste caso da água para terra firme, planávamos de nariz esticado e lá estava o Carolino, que raio de nome mas era mesmo o dele, de petisco acabado, a gente a babar e o gajo embevecido a ver- nos devorar pratos, talheres, frigideiras e tachos. Tenho a impressão que algum de nós terá mesmo comido a tampa de uma panela. Não foi por acaso que o Carolino seguiu a escola de hotelaria e turismo enquanto nós, hoje gordos, anafados para os mais sensíveis, cheios de colesterol, ácido úrico e diabetes, nos sentamos em frente a secretárias a olhar para papéis de contabilidade, maquetas e projetos ou a dormitar sobre teclados de computador. E não venham cá pôr as culpas no Carolino. É que além dos tachos e das panelas, ele não descuidava o exercício físico e sempre nos dizia que uma alimentação sã num corpo são era até um ditado latino. Prometo-vos que num destes dias vos deixarei algumas das melhores receitas do Carolino, comida regional, com tempero regional, onde não faltará a hortelã da ribeira, o poejo, a manjerona, o rosmaninho, o tomilho ou alho de cheiro. E a perdiz de caça à moda da Aldeia Nova era uma criação sua que ainda hoje, quem provou não lhe consegue apor adjectivos.

Infelizmente, nem sempre as histórias mais olorosas ou feitas de paladares indescritíveis têm os finais mais felizes. Carolino faleceu em condições ainda hoje não esclarecidas, tendo aparecido a boiar num rio do interior. Toda a gente crê que estaria a pescar trutas, que ele próprio confeccionava e servia abafadas e frias com um vinho verde de Amarante, sempre que nos recepcionava para dois dedos de conversa. Mas a verdade tem de ser dita. No seu funeral ele ia tão bonito de avental branquinho com um galo de Barcelos estampado.

Foto e texto do autor. Todos os direitos reservados.

14 comentários:

  1. Digo-lhe, com toda a estima:
    Não deve um bom cozinheiro
    deligenciar a matéria-prima
    (limito-me à aquisição dos produtos
    evito, assim, esforços brutos)

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  2. Bem... ficaram as receitas!
    Há sempre alguma coisa pela qual somos recordados!

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  3. Rogério, o meu amigo Carolino
    Desde o peixe até às frutas
    dizia que no campo ou na cidade
    primeiro estava a qualidade
    (e pescava as próprias trutas).

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  4. Tudo isto me deixou com água na boca. Pena o triste final. :(

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  5. Uma bela prosa poética

    para servir à mesa dos amigos

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  6. E muitos de nós, os tais que dormitam sobre os teclados ou na frente da TV ainda pensam: " tá vendo, morreu tão saudável", como se isso fosse um álibi que nos inocentasse de nossos colesteróis e quilos a mais...Eu mesma, devo dizer, perdi um irmão que, de nós tres, era o único atleta, nunca fumou nem bebeu.
    E eu, calhorda que sou, sempre dou um jeito de pensar, olhando por entre meu vinho tinto: "afinal, morreremos todos, os fortes e os fracos de espírito também...
    E viva o cabernet sauvignon e o porto!

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  7. Amêijoas, já fiquei a salivar e os avisos do Carolino coincidem com as minhas quando as confeciono,..azeite bem quente e alhos esmagados, claro que há os coentros e um lume bem forte para que não cozam e abram de imediato, depois é só reduzir o molho...e junta-se um grupinho que rapa tudo até ao fim.
    Aguardo as receitas do Carolino que apesar de se ter finado cedo e de forma trágica deixou obra e um bonito texto escrito por um fiel seguidor e exímio contador de histórias.

    Manu

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  8. As receitas do Carolino? UAUUU!!!

    Quanto à infeliz morte do senhor, é caso para dizer que pela boca morre o pescador... ;)

    Beijocas!

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  9. Quem te manda, cozinheiro, armar em pescador?
    Quase tão delicioso quanto os petiscos do Carolino, é o pormenor do avental.
    Ia tão bonito... Lololol

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  10. Alguém que te marcou e foi-se o homem (que por respeito e honra foi com um dos seus materiais de ofício -o avental) mas ficou a sua obra e oxalá que alguém tenha seguido as pegadas do Carolino.

    Trutas, obrigado...mas que ia um pratalhão de ameijoas lá isso ia

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  11. Olá Constantino!
    Por motivos alheios à minha vontade estou temporariamente afastada da actividade blogueira. Sofri uma lesão que me tolheu o movimento dos membros inferiores, mas felizmente estou em franca recuperação. Se não sofrer nenhuma recaída, claro!
    Isso levou-me a manter o meu estaminé em stand by e assim continuará até eu poder andar normalmente. Segundo a opinião do meu médico, poderei retomar a actividade daqui a uma semana ou duas.
    Ainda a seu conselho ( do médico) e para ir exercitando as pernas, devo fazer umas pequenas caminhadas diárias. Hoje, num desses meus passeios, passei em frente à sua porta e resolvi entrar.
    Pois em boa hora o fiz. Que belos petiscos aqui estão!...
    Então as amêijoas à Bulhão Pato eu não consigo resistir. Só o cheirinho ao alho e aos coentros me faz perder a cabeça, comer desregradamente e nunca ficar saciada. Há coisas que se comem até sem vontade, de tão bem que nos sabem.

    Constantino, espero que tenha aprendido algumas especialidades gastronómicas do e com o finado Carolino. Na minha próxima passagem, espero que me convide para uma petiscada, de preferência a perdiz de caça à moda da Aldeia Nova. Quem sabe eu não lhe consiga apor algum adjectivo. Pelo que o aconselho a esmerar-se.
    Aquilo que nunca me poderá colocar na mesa será trutas, de acordo?

    E pronto Constantino, gostei muito de estar consigo este bocadinho.
    Desejo-lhe um bom dia de Santo António.
    Eu cá estou à espera do S. João.
    Beijo amigo da
    Janita

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  12. Olá

    E de recordação em recordação escrevemos,com os dedos da memória, o livro da nossa vida.

    Bjs.

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  13. Olá Janita,
    não sei se foi transmissão de pensamentos ou não, mas no meio de tanta gente linda que lê o meu blog e deixa a sua opinião, eu já tinha pensado, mas que raio, já tenho saudades dos comentários da Janita. E hoje tive esse imenso prazer. Folgo muito em saber que já está melhorando, recupere rápido pois tem de dar um pezinho de dança no S. João e não deixe de nos fazer companhia, a mim e aos meus queridos(queridas leitoras. Gostamos de si. Um dia destes ir-se-ão sentar comigo à mesa quiçá para uma sopa de cação com poejos, hein?

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  14. Que história!!!

    Fico a aguardar as receitas do Carolino...

    Que Deus o tenha!

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