Desde sempre que o golo foi o objetivo, o sumo, o
êxtase, o orgasmo de um jogo de futebol. Desde sempre o grito de
gooooolllllloooo foi a sua expressão mais almejada, o seu lancinante grito de
guerra, o desiderato mais querido do avançado.
A
minha mãe dizia-me muitas vezes que eu gostava de empregar palavras de sete e
quinhentos que era uma expressão popular para palavras de uso menos comum. No
entanto só as comecei mesmo a usar quando aprendi futebolês, uma língua própria
que é, muitas vezes absolutamente errada na formulação, mas conceptualmente aceite
no meio.
Dentro do campo pelo autor do último
chuto, nas bancadas pelo espectador, bastas vezes em incontrolados pulos que o
podem fazer rolar nos degraus, abraçado ao vizinho do lado que não conhece e com
o qual segundos antes tinha trocada piropos discordando do fora de jogo que foi
mas não era, ou que não foi mas deveria ter sido,
- Foi
fora de jogo!
-
Lá está este a pensar que sabe mais que os outros…
-
Isso é comigo?
-
Não é com o outro
abafado num beijo na companheira ou
companheiro, que nem torce pelo mesmo clube, mas que vai à bola com ele ou com ela
para fazer jeito, ou sozinho em casa saltando do sofá como uma mola,
esbracejando e pulando que nem um maluquinho, fazendo a voz ecoar sozinho entre
quatro paredes também elas sós, a mulher deixara-o há meses, e uma garrafa de vinho
tinto meio cheia,
“ela
agora, desde que se pirou com o senhor engenheiro, é mais ténis, a pirosa”
no restaurante entornado a cerveja
nas calças do tipo da mesa ao lado, com os amigos em frente ao écran gigante estrategicamente
colocado na principal praça da cidade, no carro, preso no trânsito da 2ª circular
ou em plena autoestrada para o Algarve gritando junto com o empolgante e saudavelmente louco relator
da rádio, ou até no sossego intimista da casa de banho, quando, durante um
ataque da sua equipa sofre ele também um ataque de diarreia e quase sem tempo de baixar as
calças, grita golo porque ouviu os outros gritarem lá dentro, na sala, enquanto os amigos saboreiam aqueles pastelinhos de bacalhau feitos pela tia Arminda, que lá nisso
não há pasteis de bacalhau iguais aos da tia Arminda em lado nenhum do mundo.
Corre-lhe uma lágrima no rosto. Corre
o marcador de um lado para o outro no campo ou então apenas para um lado,
gritando ele mesmo golo e ensaiando uma coreografia, pontapeando a bandeirola
de canto ou içando-a em troféu, dançando um samba com os outros companheiros ou
ajoelhando-se virado para Meca com a cabeça no relvado, passando a mão na relva
e benzendo-se, abraçando-se em círculo ou em pirâmide, fazendo um moche de onde
sai a apalpar as costelas para saber se ainda resta alguma inteira, beija a
câmara do operador de TV enquanto lança o seu gutural golo para a lente, coloca
a bola por debaixo da camisola junto à barriga e chuchando no polegar de uma
das mãos dedica o golo acabado de marcar, acabado de gritar, com a mulher e o
filho que esta traz nas entranhas, quem sabe um potencial marcador de golos no
futuro, despe a camisola e roda-la no ar enquanto grita e festeja, mostrando
músculos de fazer inveja a qualquer escritor de histórias, barrigudo e cheio de
tendinites. E há mesmo quem grite o golo a chorar de emoção e alegria.
-
E aquela merda do árbitro a estragar tudo, nem vê que o homem tirou a camisola
só para festejar…
-
Lá está outra vez você, Não vê que dar cartão amarelo é da lei?
-
É da lei, é da lei, o gajo é que precisa com a lei na cabeça!
-
Quem eu?
-
Não, caralho, o gajo, o árbitro, não seja parvo você…
-
Veja lá como é que fala…
E o jogo continua, golo é golo, seja
no estádio, seja na PlayStation, seja no rinque de futsal lá do meu bairro,
seja na praceta onde eu jogava à bola num mano-a-mano com o Zé Carlos, seja no
corredor lá de casa onde eu jogava com os meus irmãos. Golo é golo, é para
festejar. O candeeiro não teve culpa de a bola ter entrado na porta da casa de banho que fazia de baliza, ter sido golo
limpinho, limpinho, mas, quando saltei para o festejar e dei um valente murro
na lanterna que se partiu de imediato, por vingança, deixou-me um golpe na mão
que demorou semanas a curar.
Quando a minha mãe entrou em casa, ela que é católica,
benzeu-se e fez o sinal da cruz, sem ter tocado com a mão no relvado. Não consta que fosse também a festejar o nosso golo.
Mas lá que nos mostrou três valentes cartões amarelos, mostrou. E nem tempo tivemos para despir as camisolas.
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