Era uma romaria aos domingos e eu ainda sou do tempo
em que o futebol se jogava aos domingos, às quatro da tarde ou às três quando o
inverno chegava e os dias eram pequenos. Nesse meu tempo de criança havia
poucos automóveis e as carreiras ao domingo, exceto no tempo de praia e exatamente
para as praias, os transportes, tal como hoje, eram mais raros e espaçados. Por
isso, para ir à bola, ia-se a pé.
(parecia
uma romaria)
O Campo de Jogos do Pragal, que era
assim que se chamava ao campo de futebol do Almada Atlético Clube ou
simplesmente do Almada, ficava onde ainda hoje se situa: lá no cimo, paredes
meias com o monumento a Cristo-Rei.
-
Vá lá, senhor, uma imagem do santo. São só vinte escudos, - apregoavam as
vendedeiras que vendiam cristo-reis fosforescentes e colavam autocolantes nas
bandas dos casacos e nas golas das camisas a dez tostões e vendiam também a
Nossa Senhora de Fátima fosforescente que era para se ver à noite em cima da
cómoda ou da mesinha de cabeceira, com as luzes apagadas. Quer aos que iam à
visita ao Cristo, quer os que iam ver a bola ao Almada.
Por isso era ver aquele povo todo a
subir a pé a Avenida Cristo-Rei ou a rampa do Pragal que vinha lá de baixo
desde a estrada nacional, passava pelo quartel e desembocava no largo do
Cristo-Rei, mesmo junto ao campo do Almada. Aliás, como hoje.
Fui, enquanto criança, sempre com o
meu pai. O meu pai foi, se não nascido, pelo menos criado em pleno Pragal e não
poderia ser de outro clube senão do Almada.
-
Viva o Almada!
Poder podia. Naquele tempo quase toda
a gente era do Benfica, do Sporting ou do Belenenses, coisa que já não é igual
hoje em dia, pois que, à força das vitórias que conseguiu nos anos 80 e 90 do
século passado, fez-se transferir a paixão dos miúdos também para o Porto.
-
Almada! Almada! Almada!
Mas se torcíamos por um grande a
verdade é que o Almada e o Piedade eram os clubes de todos nós, os daquela zona
de Almada. E eu, porque cresci no Pombal, exatamente a meio caminho entre o
campo do Almada e o campo do Piedade, escolhi o Almada como clube de coração.
Era a malta dali metade / metade, de forma que, até quando em miúdos
escolhíamos a linha para os nossos desafios, o fazíamos em função disso,
imitando no terreiro frente ao pátio um derby Almada-Piedade. Já no início da
adolescência, porque me mudei para um Bairro próximo do Pragal, aí já ia
sozinho, a pé, com os outros putos
(parecia
uma romaria)
vermos o Almada. Atalhávamos caminho
numa azinhaga que ia dar à Ermida e dali era um pulinho até ao campo da bola.
O pior era para entrar. Os porteiros
não deixavam os putos entrar sozinhos, já que os miúdos teriam que ter quem se
responsabilizasse por eles. E quando não estava lá, aquele porteiro amigo do
meu pai, que apanhando o fiscal da Associação distraído me fazia passar entre
ele e o portão sem que ninguém desse por isso, só entrávamos acompanhados por
um adulto. E aí começava a pedincha,
- Ó vizinho, deixe-me entrar consigo
e logo um adulto nos dava a mão, e na
porta, em perfeita cumplicidade com o porteiro,
- É meu filho,
franqueava-nos a passagem. E lá entrávamos e
nos juntávamos à outra malta que, com o mesmo estratagema, entravam com os
“pais” deles. Muitas das vezes, com dez ou onze anos de idade, não ligávamos
patavina ao jogo. Queríamos era andar para ali a brincar no peão por trás da
baliza, onde a GNR nos repreendia e ameaçava levar-nos presos. Naturalmente
isso nunca aconteceu.
Algumas considerações finais:
1 – O meu Almada sofre das amarguras
que sofrem os que outrora foram grandes clubes. Vi lá grandes jogos contra o
Estoril, o Lusitano e o Juventude de Évora, contra o Amora, contra o Lusitano
de VRSA, contra o Vasco da Gama de Sines, contra o Esperança de Lagos, o
Montijo, o Barreirense e obviamente, contra o grande rival de sempre o Desportivo
da Cova da Piedade,
-
Almada! Almada! Almada!
quando até o varandim do monumento a
Cristo-Rei servia de bancada a 100 metros de altura. Hoje, com a transformação
de um desporto em negócio, a criação de SADs para acionistas, o futebol de
cariz mais popular anda a fazer uma travessia no deserto que parece nunca mais
ter fim. O meu Almada arrasta-se entre a primeira e a segunda regional e nunca
mais se sentiu a emoção do velho derby.
2 - O Grupo Desportivo da Cova da
Piedade conseguiu, via patrocinadores e acionistas chineses criar algumas
estruturas para poder competir em divisões superiores nomeadamente a
profissional 2ª Liga do nosso futebol. Tem até, por isso, direito a algumas
transmissões televisivas onde já ouvi alguns comentadores e relatores
designarem-no por Cova. O Cova isto, o Cova aquilo. Pois, meus senhores, essa
não é nem a designação do Clube nem sequer da localidade que lhe dá o nome. A
localidade é Cova da Piedade e o clube, se falarem com os mais velhos, é para
eles o Desportivo e se falarem para os mais novos, incluindo os da minha
geração, é o Piedade. Cultura desportiva não devia ser coisa que faltasse a
esses arautos. Mas parece que sim.
3 - Um dos porteiros nosso amigo era o sr. Delfim.
Conheci-o quando era miúdo e nunca me deixou ficar à porta. Com ele lá, entrava
sempre sem ter que ter um pai emprestado. Soube que morreu há pouco, em Junho
de 2018. E como o mundo é pequeno soube agora que era o padrasto de um amigo
meu de infância. Nunca tinha relacionado o facto até ter visto a fotografia do
sr. Delfim no cartão da funerária. Que o São Pedro lhe tenha franqueado as
portas do Céu e que descanse em paz.
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