quinta-feira, 11 de outubro de 2018

240. O dono da bola - #11. Um pontapé de bicicleta


A praia era, naquele tempo, para mim, o areal e uma bola. O mar era para o banho no fim do jogo. Logo pela manhã, aos sábados ou aos domingos de verão, se juntava a rapaziada lá do bairro, cada um com a sua toalha debaixo do braço e uma ou duas bolas, não fosse alguma rebentar e lá íamos nós. Alguns, os mais afoitos, iam à boleia.  Ficávamos no troço da autoestrada à saída da ponte 25 de abril de dedo esticado ou com uma cartolina a dizer C. CAPARICA e não me lembro de algum dia em que em pouco mais de meia-hora não estivéssemos já todos no Paraíso ou no Dragão a escolher as linhas.  Claro está que ir à boleia era um risco, pois apesar de serem tempos mais remotos, predadores sempre os houve, mas nós lá íamos cumprindo algumas regras de que nunca ia um sozinho e a minha mãe a dizer

- Se sei que vocês vão à boleia nunca mais vos deixo ir à praia sozinhos

nem nunca ficava para trás nenhum sozinho. E quase sempre apanhávamos boleia de casais. É verdade que sendo regra nem sempre se cumpria, pois quando a pessoa que nos oferecia boleia tinha “cara de boa pessoa” também aceitávamos. Há quase 50 anos havia muito menos carros a circular mas, em relação aos tempos de hoje, creio que muito maior oferta de boleia. Era frequente, nesse mesmo local verem-se pessoas de mochilas às costas, casais com frequência, jovens na generalidade, estrangeiros muitos e também alguns militares cada um com os seus destinos marcados em maiúscula, por vezes com erros nas placas de cartão que clamavam por VRSA, BEJA, SINES, LAGOS, VENDAS NOVAS,

(um amigo meu fez a tropa em Vendas Novas e saiu com a coluna militar que “fez o 25 de Abril, acho que a partir do Cristo-Rei)

andar à boleia era não só uma aventura, uma forma de poupar umas coroas, mas também uma moda que vinha dos anos 60 do século passado a década do Woodstock, do inicio da guerra nas nossas províncias de África – o Vasco morreu em Moçambique poucos dias depois do 25 de Abril -  do Maio de 68, dos hippies, das manifestações dos estudantes de Coimbra, da greve na Lisnave.

(chorei quando me lembrei do Vasco)

E havia ainda outra regra entre nós, uma terceira regra que era sagrada e a voz da minha mãe ainda a soar-me nos ouvidos

- Se sei que vocês vão à boleia nunca mais vos deixo ir à praia sozinhos

E a regra era, não havia chibos. Ai daquele que tivesse o descaramento ou a imprecaução de, à frente dos pais ou de outros putos que não pertencessem ao grupo da malta da boleia, bufar que fulano ou sicrano tinha ido à boleia. A primeira é que era naturalmente excluído das nossa equipas ficando a jogar ao pau com os ursos como se dizia na altura e que creio ser expressão que ainda hoje se utiliza. A segunda eram as consequências para nós próprios. Se os meus pais sonhassem (sonhar, sonhavam, as recomendações da minha mãe não me deixam mentir), que nos davam o dinheiro para as passagens e até para um gelado da Olá e que andávamos à boleia, era certo e sabido que a ficaríamos esse verão sujeitos a que só fossemos à praia com eles ou, na melhor das hipóteses, termos de apanhar a camioneta da carreira sob a sua vigilância. E isso era terrível pois não era raro passarmos horas na paragem porque as camionetas já vinham cheias desde Cacilhas e muitas não traziam desdobramento, ou traziam-no cheio.

(Era o Machado o expedidor, um tipo magro, austero, de bigode para meter respeito, quem todos os choferes temia, porque quem mandava era o Machado, que mandava parar um autocarro, por exemplo que fosse para outros destino, tipo o Pragal e ordenava que o chofer quando lá chegasse não voltaria a Cacilhas mas seguiria em desdobramento para a Costa).

A bola fora centrada do lado direito do ataque. Eu estava na área quando a vi chegar e vi que ela me passaria nas costas virei-me e num ápice, todo no ar, com as duas pernas como que pedalando numa bicicleta ao contrário, apliquei-lhe em cheio com o peito do pé direito. Não vi o final porque estava de costas e também porque não teve direito a repetição em câmara lenta como hoje em dia fazem as televisões. Mas diz a malta que passou mesmo entre os braços abertos do guarda-redes que não esperava por aquele golpe. A areia fofa da praia aparou-me a queda e foi como se nada se tivesse passado. O pior foi em casa, a explicar ao meu pai, tentando imitar todo o movimento. Sim, porque um golo daqueles não se marca todos os dias, eu não era nenhum Madjer ou Alan do futebol de praia, aliás essa modalidade ainda não existia e nem sei se o Madjer já era nascido e, portanto, o golo merecia ser relatado com todos os pormenores. O pior foi a queda no soalho do corredor. Aquilo não era a areia da praia e ainda hoje parece que me doem as costelas todas.

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