O que aqui vos conta esta história poderia ter sido
jogador de futebol. A sério, pá! Quero dizer, jogador de futebol a sério. Com
chuteiras de marca e camisolas da Adidas, ou da Puma, ou da Nike, ou da Macron…
Com os estádios cheios, ou quase, a verem e a aplaudirem. E a gritar golo, correndo
o estádio de punho no ar como o Eusébio. Bem, como o Eusébio não, que foi único.
Como o Ronaldo, talvez. A saltar, a fazer uma chicuelina e gritar olé em cada golo,
(E como é que isso podia ter acontecido se nunca
passaste da cepa torta? Se nunca jogaste futebol a sério apesar de teres jogado
à bola até aos quarente e cinco anos?)
e aqui começa a narrativa. O meu irmão Carlos
andava nos treinos de captação do Sporting. A coisa ia bem lançada e, treino
após treino, regressava a casa com mais esperanças de que poderia assinar, de
um momento para o outro, pelo seu clube do coração
- Pai eles dizem que para a semana mandam os papeis
o meu pai entusiasmado porque a coisa ia bem lançada.
Entretanto, o Marques, que era um dos centrais do Sporting e nosso vizinho lá
no Bairro recrutou e recomendou aos treinadores que faziam a captação, alguns
de nós,
(havia um que
festejava cada vez que que conseguia acertar na bola, mas isso não é para
contar)
que dávamos uns toques lá no Matadourense, eu
excluído, não porque não desse uns toques na chincha,
(a minha avó tinha um dito que era
qualquer coisa assim: gaba-te cesto…)
mas porque já ultrapassava a idade limite para a
captação. Mesmo assim fui. Fui ver o meu irmão treinar.
Quando chegamos ao campo de treinos
do estádio de Alvalade, equipou-se o Carlos, equiparam-se outros que iam à
captação e equiparam-se os recomendados pelo Marques. Obviamente, eu não me
equipei
- Junte-se àquela turma, aqui não tem
espectador
mas o senhor Osvaldo Silva, um dos
treinadores, o outro era o celebríssimo Hilário, perguntou-me porque não me
equipava. Expliquei-lhe que já não tinha idade para a captação e que só vinha
ver o meu irmão treinar
- Vai que aqui não tem espectador
mas isso não podia ser. Ou me
equipava e me juntava à turma ou tinha
de me ir embora, sentenciou-me. Não tive outro remédio. No meio de camisolas e
calções, lá encontrei umas chuteiras que me serviam. Nem sei se eram do mesmo
par. Mas serviam-me. E lá fui eu, para
as bancadas,
- Ó cara aí você não quer jogar, não?
é bom de ver, tentando me esconder
ou, pelo menos, passar despercebido, enquanto os miúdos que tentavam a sua
sorte se esgatanhavam para ter lugar num dos onzes. Num destes onzes estava a
maioria dos juvenis do Sporting que transitavam de um ano para o outro, as
academias dos clubes, nomeadamente a de Alcochete, só veriam a luz do dia
muitos, mas muitos anos mais tarde. No outro time os noviços. O meu irmão,
porque já tinha ido a muitos treinos, já equipava na equipa principal, embora
ainda não tivesse contrato assinado
- Pai eles dizem que para a semana
mandam os papeis
E eu sentado na bancada, ia assistindo ao desenrolar
do treino e à velocidade com que os treinadores, Osvaldo e Hilário, iam
mandando os candidatos para o duche. Quem sabe, sabe e um jogador de futebol
reconhece-se logo ao primeiro toque. Ou ao segundo, De vez em quando ouvia-se a
voz de um deles: Há aí algum defesa esquerdo na bancada?
- Ó cara aí você não quer jogar, não?
e depois um defesa direito, um
central, um médio centro, por aí fora até que depois de vários extremos
direitos terem ido para o balneário mais ninguém respondia das bancadas,
- Vai que aqui não tem espectador
acabrunhado, levantei o braço
(mais
um para jogar dez minutos)
mas na primeira jogada em que
intervim, sentei no chão o defesa esquerdo da equipa juvenil, dei uma revienga
ao central, chutei à baliza onde, concentrado, atuava o meu mano e pimba! Bola na
barra. Todo eu tremia. Por um lado, marcar um golo ao meu irmão seria a pior
das traições, por outro, quando a gente está em campo nem sequer pensa nisso.
Pensei? Não pensei? Não faço a mínima ideia. Graças a Deus que a bola foi ao travessão.
Oiço o apito de um dos treinadores.
(mais
um para jogar dez minutos)
O senhor Hilário interrompeu o jogo.
Pensei de imediato. Falhar um golo em frente ao guarda-redes é uma blasfémia
cuja penitência é o balneário. Mas não. O senhor Hilário, muito educadamente,
veio ter comigo e explicou-me qual seria a posição correta do corpo para que eu
tivesse tido êxito naquela jogada. Eu tremia cada vez mais, mas respirei fundo
e a tremura passou. Nova corrida da direita, um passe em profundidade, o ângulo
era difícil e o remate foi pronto. O Carlos correspondeu com uma daquelas
defesas que a gente só vê nos resumos da televisão, como a defesa da semana.
Seu Osvaldo, manda um berro,
(mais
um para o balneário)
o Carlos para e fica com a bola na
mão, o treinador corre para mim. E sentencia: Se falha outra assim vai tomar um
banho.
(Eu
não disse? Mais um para o balneário)
Não falhei mais porque também não
tive mais nenhuma oportunidade. Cinco minutos depois o treino tinha acabado.
Que vitória! Já tinham ido para o banho uns quatro extremos direitos e eu fiz o
treino até ao fim.
No final os treinadores foram falando
com alguns dos miúdos. Não sei o que lhes disseram porque estava longe.
Distanciei-me sempre…
- Aqui não tem espectador
Chamou também o meu irmão Carlos e
soube depois que lhe disseram que continuavam a contar com ele.
- Pai eles dizem que para a semana
mandam os papeis
Depois chamou o grupo do Marques, ou
seja, os do nosso Matadourense. Escolheu o Carapinha para o próximo treino.
Creio que o Mesquita também, não tenho a certeza. Voltaram aos balneários e eu
segui com eles. Aí o senhor Hilário chamou-me: És do grupo do Marques? Não,
somos do mesmo Bairro mas só vim ver o meu irmão treinar,
- Aqui não tem espectador
e ele ripostou: Voltas para a semana e, se
puderes, traz o teu pai contigo. Ainda argumentei que não tinha idade par a
captação. Ele fez um ar de não importa e ainda me perguntou: És tu que és irmão
aqui do guarda-redes? E eu: Sou sim, senhor treinador. Ao que ele terminou
dizendo; então o pai serve para os dois.
Despedimo-nos. Só voltei ao estádio
de Alvalade muitos anos depois para ver um jogo da seleção nacional. Mas no
metro, de regresso a casa, pensei, Está
decidido. Não volto. Isso é que era bom. Não seria capaz de jogar ali! E
foi assim.
Boa! Falou coração vermelho.
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