No andar por cima do meu morava uma família
incompleta. Um pai viúvo e dois filhos ou, mais propriamente, um filho e uma
filha. O filho, o Zé Carlos, era o meu parceiro ou, mais precisamente, o meu
adversário no um para um.
O pai, figura austera e de poucas
falas, subia as escadas de cabeça baixa. Bom dia, boa tarde era o mais que se
retirava daquela boca e não era todos os dias. Nas mais das vezes, saía mudo e
entrava calado. Não sei se o poderíamos apelidar de trombudo, de antissocial ou
simplesmente de tímido. Mas para a minha pessoa, para ser verdadeiro, ou mais
condicente com a realidade, tenho de o dizer que nunca foi tão macambúzio
assim. À tal saudação de bom dia ou de boa tarde acrescentava quase sempre um
olá e, talvez por mor do filho, sabia até o meu nome. Boa tarde vizinho dizia
eu, Olá Vítor, respondia ele, e até chegava a perguntar, verdade que raramente,
Estás bom? Não tenho a certeza, apenas
porque não me lembro de ver lá mais ninguém, penso que era o único que ele
autorizava a entrar lá em casa para brincar com o Zé Carlos e bonomia das
bonomias, autorizava a filha a ir ver televisão à nossa casa. Mas os filhos não
punham, com ele, o pé em ramo verde. Se algum fazia alguma patifaria, haveria
castigo pela certa o que a mim me doía por consequência. Era quando ele não deixava
o Zé Carlos sair para jogarmos à bola.
O Zé Carlos era o meu companheiro no
um para um. Quando fomos morar para o Bairro as pracetas não estavam
arranjadas. Eram em terra batida e nem mesmo os passeios dos prédios estavam
acabados. Havia calçada alternando com buracos e pedras de calçada soltas.
Havia também alguns prédios inacabados embora naquela época não fosse moda os
“ocupas” e, como tal, assim se mantinham até que a A Confidente pegasse neles.
Dizia-se na época que os construtores, afogados em dívidas, alguns até com
andares vendidos, mas sem papeis passados, o que fez com que algumas pessoas
tivessem perdido o dinheiro da entrada, poupanças de uma vida, tinham fugido a
salto para França para não serem presos. Outros diziam também que tinha havido
negligência ou até corrupção, na altura usava-se dizer que “estavam feitos” com
a Câmara Municipal, sendo que alguém se abarbataria com o dinheiro das calçadas
que nunca foram feitas, a troco de fechar os olhos nas inspeções. Venha agora a
saber-se porquê, tantos anos passados, isso agora não interessa para nada, siga
a Marinha como se costuma dizer. A verdade é que chegamos ao 25 de Abril com as
pracetas e arruamentos num estado tão deplorável que antes mesmo de se falarem
por todo os país em comissões de moradores, já no meu Bairro se tinha
constituído a Comissão para o Melhoramento da Pracetas, liderada pelo Jaques e
de que faziam parte o Sr. Agostinho, o Ti Abreu, entre outros que já me não
ocorrem à memória. Para muitos isso seria muito bom, pois nos finais dos anos
sessenta, principio dos setenta já existiam alguns carros lá no Bairro, fruto
de uma evolução positiva de emprego na margem sul do Tejo, com a abertura da
Lisnave na Margueira em Almada e, assim, as suas viaturas escusavam de ficar atoladas,
para outros seria muito melhor porque viria mesmo a ser construído, numa das
pracetas, um rinque onde ainda hoje se podem fazer os jogos de futebol, no
local onde no meu tempo era necessário cortar cardos e amassar ervas para jogar
à bola. Além disso, o 25 de Abril já me veio apanhar com quase dezanove anos,
numa altura em que nem eu, nem o Zé Carlos jogávamos à bola na nossa praceta
pelo que não nos faria diferença nenhuma. Aliás, no 25 de Abril o Zé Carlos já
nem morava no andar de cima. Tinha-se mudado não sei para onde.
Quando o Zé Carlos e eu descíamos, pouco antes da hora
do jantar, em tempo de verão, pois está visto, que não só ainda era dia às oito
da noite, como no inverno a praceta era um lamaçal, contávamos dez pés em cada
ponta da praceta entre duas pedras que iriam servir de baliza. E só nós dois,
de um lado para o outro, num mano a mano, onde ninguém ganhava nem perdia.
Quando o pai do Zé Carlos dava um assobio ou a minha mãe se assomava à janela
para avisarem que o jantar estava pronto era como se o árbitro desse por
terminado o encontro. Só que o resultado passava para o dia seguinte e assim
sucessivamente. Penso que o placard
está em duzentos e quarenta e seis a duzentos e quarenta e cinco mas já não me
lembro quem está a ganhar. A última partida foi há quase cinquenta anos.
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