quarta-feira, 1 de agosto de 2018

232. O dono da bola - # 3. Esta sim, era uma bola de catechu


Naquele tempo ter uma bola de catechu era um luxo. Catechu é, naturalmente, um galicismo. Provirá da palavra francesa caoutchouc que significa borracha. Mas cá entre nós as bolas de borracha são uma coisa, as bolas de catechu são outra, nós adotámos bola de catechu para designar as bolas de couro e, pronto, é assim mesmo que se conhecem, apesar de com a evolução dos materiais e das tecnologias as bolas hoje sejam totalmente sintéticas e nada tenham a ver com as bolas com que se jogava antigamente. Curiosamente, quando em condições de tempo adversas se tinha que jogar sobre poças de água ou terrenos enlameados, as bolas ficavam irremediavelmente embebidas que pareciam pesar chumbo, o que lhes consignava o epíteto de bola de “catechumbo”. Era uma perdição para qualquer criança atingir o desiderato de possuir uma bola de catechu. Sim, uma bola igual à dos federados, quer dizer, dos futebolistas a sério, daqueles que até tinham cartão com nome deles e fotografia que lhes permitia entrar à borla nos campos para ver outros jogos, desde que fossem organizados pela mesma associação. Bom, coisa difícil de explicar, mas que me fazia brilhar os olhos quando eu via o cartão de jogador do Tateu, o meu primo, isto é o filho da minha tia Gracinda, que por acaso se chamava Zé, mas que todos os conheciam por Tateu, uma abreviatura de Matateu, já que o Zé, embora sem qualquer raiz africana que lhe fosse conhecida, era um tipo muito moreno e jogava muito bem à bola. Quanto ao Matateu, esse era um jogador africano de excelência e que pontificou nos anos 50 do século passado no Clube de Futebol Os Belenenses. Já as bolas de borracha, acabaram por ser as sucessoras das velhas e artesanais bolas de trapos, com as quais eu nunca joguei, apesar de me recordar que quando ainda garoto, o meu falecido e saudoso pai me as ensinou a fazer. Mas voltemos às bolas de catechu, que um antigo e já desaparecido relator desportivo, da extinta Emissora Nacional, caraterizava como “os quatrocentos gramas de couro insuflável”.

As bolas de catechu de antigamente eram um luxo, mas chegavam, algumas, de qualidade de fabrico mais descuidado a ser um empecilho à boa prática, ou como se diz hoje ao fluir nas transições ofensivas a partir da zona de construção. É que as bolas, no local de enchimento da câmara de ar, ou seja, no pipo, não eram completas. Havia que dar acesso à agulha de enchimento. E aquele pequeno círculo que não fechava a bola, era compensado por uma língua de couro mais maleável que metade cosida à bola era a outra metade enfiada entre o couro e a borracha da câmara de ar sustentando-se pela compressão que esta, a borracha sob pressão de ar, fazia contra couro da bola. Ora se a bola vazasse um pouco, esta pressão era aliviada e a língua saía de fora, pelo que era necessário voltar a colocá-la no seu sítio perdendo-se com isso algum do tempo de jogo. Além deste quiproquó havia já o referido inconveniente do peso da bola, quando ensopada em água. Ora isto era um flagelo para os pés descalços, ou mesmo de sandálias, dos miúdos lá da zona. Depois de secar, a bola acabava por ficar dura demais para os pezinhos das crianças. Portanto para os putos, mesmo para os que sonhavam ter uma bola de catechu, a bola ideal era a de borracha ou até a bola de trapos.

Mas há bolas de catechu e bolas de catechu. Quero dizer, nem todas as bolas de catechu eram iguais e no estrangeiro já havia bolas de catechu muito melhores do que as nossas. Mesmo os clubes de futebol daquela época, só os de maior poderio económico as usavam. Nas divisões inferiores jogava-se muito com bolas iguais às que descrevi. Falo do estrangeiro porque, um dia, o meu foi convidado pelo estaleiro onde trabalhava para ir fazer um curso à Suécia. Sim era um curso, mas que hoje em dia se dá o pomposo nome de “on the job training” o que significa, “não penses que vais para o bem-bom duma sala de aulas e o salário vai-te parar ao bolso no fim do mês”, ou seja, vais bulir e ao mesmo tempo aprender coisas novas. E lá foi ele, nove meses fora da mulher e dos filhos para poder ter um futuro mais risonho. Muitas cartas, muitos postais ilustrados, não raros salpicados de lágrimas sobre a tinta ainda fresca, muitas saudades, muitos beijos e surpresa das surpresas um presente chegado pelo correio, uma bola de catechu. Mas uma bola daquelas que não tinham língua. Uma bola a sério, com o pipo incorporado no couro. Uma bola que não precisava de ser ensebada para que não lhe entrasse a água, uma bola que não pesava como chumbo, uma bola que não nos deitava a língua de fora. Uma bola oficial, caraças! Leitoras e leitores, apresento-vos o novo dono da bola!

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