Naquele tempo ter uma bola de catechu
era um luxo. Catechu é, naturalmente, um galicismo. Provirá da palavra francesa
caoutchouc que significa borracha.
Mas cá entre nós as bolas de borracha são uma coisa, as bolas de catechu são
outra, nós adotámos bola de catechu para designar as bolas de couro e, pronto,
é assim mesmo que se conhecem, apesar de com a evolução dos materiais e das
tecnologias as bolas hoje sejam totalmente sintéticas e nada tenham a ver com
as bolas com que se jogava antigamente. Curiosamente, quando em condições de
tempo adversas se tinha que jogar sobre poças de água ou terrenos enlameados,
as bolas ficavam irremediavelmente embebidas que pareciam pesar chumbo, o que
lhes consignava o epíteto de bola de “catechumbo”. Era uma perdição para
qualquer criança atingir o desiderato de possuir uma bola de catechu. Sim, uma
bola igual à dos federados, quer dizer, dos futebolistas a sério, daqueles que
até tinham cartão com nome deles e fotografia que lhes permitia entrar à borla
nos campos para ver outros jogos, desde que fossem organizados pela mesma
associação. Bom, coisa difícil de explicar, mas que me fazia brilhar os olhos
quando eu via o cartão de jogador do Tateu, o meu primo, isto é o filho da
minha tia Gracinda, que por acaso se chamava Zé, mas que todos os conheciam por
Tateu, uma abreviatura de Matateu, já que o Zé, embora sem qualquer raiz
africana que lhe fosse conhecida, era um tipo muito moreno e jogava muito bem à
bola. Quanto ao Matateu, esse era um jogador africano de excelência e que
pontificou nos anos 50 do século passado no Clube de Futebol Os Belenenses. Já
as bolas de borracha, acabaram por ser as sucessoras das velhas e artesanais
bolas de trapos, com as quais eu nunca joguei, apesar de me recordar que quando
ainda garoto, o meu falecido e saudoso pai me as ensinou a fazer. Mas voltemos
às bolas de catechu, que um antigo e já desaparecido relator desportivo, da
extinta Emissora Nacional, caraterizava como “os quatrocentos gramas de couro
insuflável”.
As bolas de catechu de antigamente
eram um luxo, mas chegavam, algumas, de qualidade de fabrico mais descuidado a
ser um empecilho à boa prática, ou como se diz hoje ao fluir nas transições
ofensivas a partir da zona de construção. É que as bolas, no local de
enchimento da câmara de ar, ou seja, no pipo, não eram completas. Havia que dar
acesso à agulha de enchimento. E aquele pequeno círculo que não fechava a bola,
era compensado por uma língua de couro mais maleável que metade cosida à bola
era a outra metade enfiada entre o couro e a borracha da câmara de ar sustentando-se
pela compressão que esta, a borracha sob pressão de ar, fazia contra couro da
bola. Ora se a bola vazasse um pouco, esta pressão era aliviada e a língua saía
de fora, pelo que era necessário voltar a colocá-la no seu sítio perdendo-se
com isso algum do tempo de jogo. Além deste quiproquó havia já o referido
inconveniente do peso da bola, quando ensopada em água. Ora isto era um flagelo
para os pés descalços, ou mesmo de sandálias, dos miúdos lá da zona. Depois de
secar, a bola acabava por ficar dura demais para os pezinhos das crianças.
Portanto para os putos, mesmo para os que sonhavam ter uma bola de catechu, a
bola ideal era a de borracha ou até a bola de trapos.
Mas há bolas de catechu e bolas de
catechu. Quero dizer, nem todas as bolas de catechu eram iguais e no
estrangeiro já havia bolas de catechu muito melhores do que as nossas. Mesmo os
clubes de futebol daquela época, só os de maior poderio económico as usavam.
Nas divisões inferiores jogava-se muito com bolas iguais às que descrevi. Falo
do estrangeiro porque, um dia, o meu foi convidado pelo estaleiro onde
trabalhava para ir fazer um curso à Suécia. Sim era um curso, mas que hoje em
dia se dá o pomposo nome de “on the job training” o que significa, “não penses
que vais para o bem-bom duma sala de aulas e o salário vai-te parar ao bolso no
fim do mês”, ou seja, vais bulir e ao mesmo tempo aprender coisas novas. E lá
foi ele, nove meses fora da mulher e dos filhos para poder ter um futuro mais
risonho. Muitas cartas, muitos postais ilustrados, não raros salpicados de
lágrimas sobre a tinta ainda fresca, muitas saudades, muitos beijos e surpresa
das surpresas um presente chegado pelo correio, uma bola de catechu. Mas uma
bola daquelas que não tinham língua. Uma bola a sério, com o pipo incorporado
no couro. Uma bola que não precisava de ser ensebada para que não lhe entrasse
a água, uma bola que não pesava como chumbo, uma bola que não nos deitava a
língua de fora. Uma bola oficial, caraças! Leitoras e leitores, apresento-vos o
novo dono da bola!
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