Vamos começar por fazer contas. Meio
tostão é metade de um tostão e um tostão são dez centavos. Dez tostões são cem
centavos e, portanto, dez tostões faz um escudo. Assim, cinquenta tostões são
cinco escudos e duzentos tostões são vinte escudos. Se os rebuçados custarem
meio tostão cada, ou seja, dois por um tostão, vinte escudos compram
quatrocentos rebuçados. É só fazer as contas. E em cada rebuçado vinha um
boneco da bola.
Hoje são cromos, requintados,
retratos de frame cheio, encerados,
brilhantes, autocolantes, vêm em saquetas, cada saqueta com quatro cromos custa
1,00€. Um euro são mais ou menos, arredondando para baixo, duzentos escudos dos
antigos que se convertidos a tostões seriam dois mil tostões o que, revertido
ao meu tempo de colecionador de bonecos da bola enrolados em rebocados, a dois
cada tostão, daria para quatro mil bonecos da bola. Ah se eu tivesse 1,00€ para
bonecos da bola! O meu pai ganhava isso, talvez pouco mais, numa semana de
trabalho…
Entrei na Elisiária, a mercearia que
vendia os bonecos da bola, com a caderneta cheia. Cheia, quero dizer, cheia
não, faltava colar um porque os outros já iam todos coladinhos com cola de
farinha, faltava o mais custoso, faltava o número da bola. Esse nunca saía,
vinha carimbado com o mesmo número que estava na lata e na bola de catechu
presa no cartaz dos prémios. Estava colado no fundo da lata para não poder ser
vendido a ninguém. Imaginem que saía a meio da lata. Alguém teria logo direito
à bola de catechu, bastava acabar de preencher a caderneta e isso era fácil. E
o jogo perderia o fascínio e os restantes rebuçados ficariam por vender, a não
ser que o ganhador e o merceeiro guardassem sigilo até ao fim da lata. Mas isso
nunca acontecia, ou pelo menos, seria muito raro que acontecesse, pois
tratava-se de batota. Era assim, devido a esta artimanha do boneco da bola
estar agarrado no fundo da lata que a bola de catechu, bem como os restantes
prémios do cartaz (alguns bonecos traziam também enrolados uma “senha” com a
designação de um prémio) só saiam mesmo no fim ou a quem rebatesse a lata. Os
primeiros prémios a sair eram as cadernetas o que incentivava os putos – e os
crescidos, diga-se de passagem – a fazer a coleção. Já nessa altura o marketing tinha espertezas destas. Pois
entrei com a caderneta e com o meu pai a acompanhar-me. O meu pai ia rebater a lata
pois os miúdos, os filhos, claro está, não se calavam com a bola de catechu.
Num cálculo assim por alto, a
Elisiária, tendo em conta os prémios saídos e altura de rebuçados na caixa
calculava que estariam para lá uns quatrocentos. Eu olhava para o cartaz e nem
ligava aos chocolates, pentes, carteiras, canivetes, cadernetas… nada! A única
coisa que me fazia brilhar as duas luzinhas era a bola de catechu. E aquela ia
ser minha. Até me arrepiei todinho.
Começou a contagem. Um, dois, três,
quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze… dezanove, vinte, vinte e um…
trinta e nove… quarenta e sete, setenta e oito – Ó Sr. Augusto eu disse setenta
e oito ou sessenta e oito? e se não se tinha a certeza começava-se de novo,
cento e vinte e três, cento e vinte e quatro, … trezentos e oitenta e um e eu
não tirava os olhos da lata a não ser para ir olhando para os olhos do meu pai,
Ainda faltam muitos D. Elisiária? perguntava ansioso, quatrocentos, quatrocentos
e um e dois e três… e eu tremia, devia estar quase, e quarenta e quatro, ai ai,
ai ai, que as coisas não estão a correr bem, quatrocentos e noventa e nove e Pare
aí D. Elisiária! ordenou o meu pai. Parava a contagem e terminava a esperança.
Era demais e o orçamento familiar não dava para gastar vinte e cinco escudos em
bonecos da bola ou mais ou talvez muito mais, pois ficamos sem saber quantos
rebuçados ficaram ainda por tirar da lata.
E enquanto uma lágrima me escorria
cara a baixo, a Elisiária voltou a espetar o cartaz no prego lá de cima. Olhei
de novo e pareceu-me ver a bola de catechu deitar-me a língua de fora.
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