Durante toda a semana não falei de
outra coisa. A minha mãe já deitava futebol pelos olhos. O meu pai, que amiúde
me via jogar com os outros rapazes, não me achava nenhum Cavém, nenhum José
Augusto, nenhum Jaime Graça e nem, mesmo pela altura, nenhum Simões, mas ainda
assim incentivava-me. Achava-me irrequieto, mexido, cheio de vontade e na
brincadeira dizia que de vez em quando eu acertava com o pé na bola. E no meio
daquela converseta e da minha
excitação pelo meu primeiro “jogo oficial”, lá vinham as inevitáveis perguntas
sobre os deveres, o que se viria a chamar mais tarde tê-pê-cês, Então e as
cópias, já fizeste as cópias? Sim, mãe, já as fiz. Mas não te vi estudar a
tabuada. Já estudei, mãe, já sei a tabuada toda. Então quantos são sete vezes
oito e eu São cinquenta e seis, mãe, E nove vezes quatro, Trinta e seis, mãe,
com ar enfastiado e a pensar querem ver
que agora vou ter de responder á tabuada toda, E a lição, Qual lição, mãe?
A lição de hoje… Não é preciso, mãe, eu já sei ler aquilo, Tu só pensas é na
bola, é o que é, rematava e eu ria e ia dar-lhe um beijo. Mais tarde iria aparecer
lá em casa com uma taça, desenhada e recortada em cartolina, pela D. Eduarda a
minha primeira professora primária, como troféu do melhor em tabuada, que a
encheu de orgulho e que ainda hoje fala nisso, Ainda te lembras, filho? Lembro
sim, mãe e ela, Este rapaz tem uma memória…
Naquela semana o mais importante não
eram as cópias, nem os ditados, nem a tabuada, nem a lição… era a bola. A
primeira classe ia jogar contra a segunda, aquele que iria ser o meu primeiro
jogo oficial de todos os tempos.
Quando é o primeiro é o primeiro e será sempre o primeiro não haverá hipóteses
de haver novamente um primeiro pelo que dizer de todos os tempos é só uma
maneira de dizer. O jogo ia ser no sábado e eu estava até com medo de não me
meterem na linha porque era o mais
pequenino da turma e aquilo era só para calmeirões. Mas enganei-me e foi com
grande alegria que me disseram que eu ia jogar. Pudera, deve ter sido coisa da
D. Eduarda, olha, olha, logo o melhor a tabuada, ficar de fora. Isso nem
lembraria ao diabo.
Linha feita e eu, o Vitinha, ia jogar
à defesa. À defesa? Mas eu não sei jogar à defesa, eu sei é correr lá à frente,
chutar para a baliza, marcar golos, e depois correr de um lado ao outro do
campo, com o punho fechado a gritar goooollllooo, como fazia o Eusébio, e os
outros a correrem atrás de mim para me abraçarem, como se faz no futebol a
sério e a gente via na televisão do café Marissol. A preto e branco, é claro,
mas a gente sabia bem a cor da camisola do Eusébio. Não faz mal a gente
ensina-te, disse o Boavida, repetente, oito anos de idade, um veterano! Era o
maior da turma, mas era meu amigo e, portanto, ele ia-me ensinar a jogar à
defesa. Com uma pedra riscou no chão um círculo já perto da nossa baliza e
disse-me, Não sais de dentro desta linha é aqui que ficas e cortas as bolas
quando eles vierem e chutas para a frente. Não percebi nada. Então eu não podia
sair dali? Não podia pegar na bola correr o campo todo e chutar à baliza? Não
podia ir lá à frente? Isso é que era jogar à defesa? Mas está bem, o Boavida é
que era o técnico, ali na escola era o
meu Bella Guttman e se ele dizia que era assim que se jogava à defesa,
então seria assim que eu jogaria. O meu primeiro jogo oficial!
Acabei o jogo a chorar. Não toquei
uma única vez na bola. Ninguém passou por mim e eu não saí de dentro daquela
rodinha. O Boavida não era mesmo um grande treinador. Mas não deviam de passar
por mim para eu cortar a bola? Ou então, não deveria eu ter saído do círculo
para ir de encontro à bola? Oito a um! Oito a um! Que desastre! De um resultado
assim só me lembro daquele, no dia da inauguração do Estádio das Antas, quando
o Benfica foi lá, como convidado, dar oito a um ao FC Porto. Se calhar, nesse
dia, não deixaram o Pinto da Costa sair de uma rodinha.
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