sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

190. Nu com vento



Ele há histórias que por mais que repetidas nunca cansam. É por isso que gosto de passar os meus serões de quintas-feiras na casa da D. Micá. Não que eu já conheça o desfecho da história de fantasmas que ela tem andado a contar e que eu, por afazeres ou parêntesis que não me permitem a sua continuação mais efetiva, tenho demorado a transcrever. Ou então é mesmo a D. Micá que faz estes parêntesis tão grandes, estas extenuantes esperas, em que nem ata nem desata. Caprichos de uma contadora de histórias que já apanhou os vícios do seu criador, não do Criador, como é bom de ver, teriam bastado apenas sete dias, incluindo um de descanso.

Retornando ao que me fez hoje voltar ao vosso convívio que foi contar o que se passou com o meu amigo Eduardo Aragão precisamente ontem e que ele não perdeu a oportunidade de à noite nos encher de pormenores. Foi até bom porque a noite estava fria, D. Micá teve de acender a lareira, o ambiente compôs-se e até as pernas da Eduardinha sobressaíam mais ruborizadas das meias brancas com rendas. Mas de Eduardinha, por hoje, vamos ficar por aqui e vamos desde já diretos ao assunto.

Não é a primeira vez que o Eduardo vai para aqueles lados. Mas das outras vezes que ele lá foi, diga-se de passagem, quase sempre de forma bem produtiva, falar-vos-ei quando for oportuno para que não nos dispersemos do essencial. Contar-vos-ei do dia em que ele tinha marcado um encontro com uma senhora que conheceu num baile social de caridade, mas, bom, não adianto mais nada, porque nem o Eduardo, apesar de meu amigo, me perdoaria as indiscrições, nem vocês, tão entusiasmados que estão para saberem o que é que houve ontem de tão especial, estariam interessados no episódio de Eduardo Aragão com a senhora de sociedade com quem se encontrou em plena Serra da Arrábida. E é precisamente aqui que começa a narração do Eduardo.

A manhã apresentava-se chuvosa mas nada que não se previsse. Os meteorologistas já o tinham avisado, mas mais nada havia a fazer, pois o encontro estava combinado e o almoço com os amigos não seria perdível. A vegetação está mais verde que nunca, mas rareiam as flores. Ainda faltam alguns meses para que as aroeiras se cubram de roxo e para que as abelhas, sôfregas de néctar,  as povoem. Também o céu, se em vez de cinzento carregado tivesse aparecido azul misturado com alguma nebulosidade  cinza escura, cinza claro, teria dado outra luz ao vício de Eduardo, que é, embora eu nunca vos tenha dito, um amante da fotografia. Um dia contar-vos-ei como é que ele, a bordo de um navio soviético, comprou a sua primeira Zenite de contrabando, é claro, mas uma boa máquina, com lentes Zeiss de primeira categoria. Fica para outra vez. Vestia umas calças quentes de fazenda grossa, enfiadas em botas de caça e um blusão impermeável. Um chapéu na cabeça, acessório que ele não dispensa, dá-lhe um ar fino e o momento, para ele é sempre solene. Quando entra no Convento de Nossa Senhora da Arrábida, outrora pertença dos duques de Aveiro e mais tarde dos de Palmela, sente algo de especial, visto, vocês não sabem mas a D. Micá é pessoa para o confirmar, ser ele ainda descendente em quarto grau, de um franciscano que se desviou do seu caminho contemplativo, ou melhor dizendo, contemplou coisas terrenas e foi por aí fora. Pagou o seu bilhete de três euros, tal como estava estipulado e tal como os outros amigos, com quem foi, o fizeram e depois seguiu com avidez de conhecimento as informações transmitidas pelo insubstituível Quirino de Almeida. Este homem, ex funcionário da Centrel, trabalhando nas telecomunicações tal como Eduardo trabalhou um dia,  trabalha no Convento da Arrábida, onde vive, há já 19 anos, tendo sido até personagem de livro, do escritor Jorge Marques e ator num filme dirigido por Manoel de Oliveira, precisamente, "O Convento".  O senhor Quirino que é um autodidata, hoje faz de quase tudo lá no Convento, conhece-lhe toda a história desde a sua fundação, pelo que teve de ler e se documentar para isso, falou nao só da estrutura física que ali se nos depara mas também, com afinco e convicção, da vida dos frades que por ali andaram e primeiro desfrutaram do Convento, Frei Martinho de Santa Maria, a quem D. João de Lencastre, duque de Aveiro cedeu o usufruto quer do Convento quer das encostas da serra, aonde já existia o "Convento Velho", que mais não eram que grutas na serra onde os frades franciscanos cumpriam a sua missão contemplativa, Diogo de Lisboa, Francisco Pedraita e S. Pedro de Alcântara. Falou o senhor Quirino e assim nos contou ao serão o Eduardo Aragão, das capelas construídas na serra a mando de d. Ana Manique para que se tornassem lugar de peregrinação constituindo as catorze estações da Via Sacra, embora só sete houveram sido construídas  Depois falou da passagem do convento para os duques de Palmela e finalmente para a Fundação Oriente, seu atual proprietário. Quirino de Almeida realçou a vida isolada, contemplativa e de reflexão, dos frades, incluindo a frugalidade das suas refeições, constituídas quase exclusivamente de pão e água. Depois, o senhor Quirino propôs-nos um jogo. O senhor Quirino é assim mesmo, tem algum espírito de humor e é um artista. Não vos disse mas o senhor Quirino é pintor. Um dia destes assistiremos a uma mega exposição no Convento dos seus óleos que, pela figura do senhor Quirino só temos de acreditar que será uma grande exposição com E maiúsculo.  E o seu jogo consistia em fazer de nós um arquiteto. O objetivo foi fazer-nos ver o state of art do século XVI. Na realidade, para a época, aquele era um Convento com todas as comodidades, nomeadamente tinha água "encanada". E esta? Pois foi aqui que pontuou o Eduardo Aragão. No jogo do senhor Quirino intervieram como arquitetos-projetistas todos os visitantes, nomeadamente o José Mota que foi eleito arquiteto-mor. Não havia nada naquele lugar. Zero. Nem paredes, nem sequer os bancos em que estavam sentados, o que quer dizer que se aquilo fosse de repente, teriam todos caído com o rabo no chão.  E como construiriam  então,os novos arquitetos, o Convento? Construí-lo-iam à luz do século XXI, obviamente. E entre outras comodidades, luz, televisão, microondas,  máquinas de lavar roupa e loiça, chuveiros e retretes. Nas celas, os frades, teriam ate computadores ligados à Internet. E foi aqui que interveio o nosso Eduardo. Dizia ele para o senhor Quirino  que se assim fosse, os frades não mais viveriam a pão e água. Era só mandarem vir umas pizzas pela Internet. Ah rica contemplação do nosso século.


4 comentários:

  1. Isto só lido! Contado ninguém acreditaria!
    O título deste episódio que, diga-se de passagem me fez vir a correr para o ler, fez-me lembrar aquela anedota da fulana que se apressou a ir ver o filme "Os Canhões de Navarone", por não ter entendido bem o título...Adiante!

    Gostei muito desta lição de História acerca do
    Convento de Nossa Senhora da Arrábida, muitíssimo bem contada pelo senhor Quirino, mas preferia ter sabido o que aconteceu entre o Eduardo Aragão e a tal senhora da sociedade.

    Bom, pensando bem, talvez não tenha sido nada de especial, já que o homem tem tiradas que são de uma pobreza franciscana...!

    Mal, por mal, antes os fantasmas da D. Micá.

    Beijocas, Constantino!

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  2. muito bem, deve ter sido um belo passeio :)

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  3. Seria um convento do tipo web 2.0 :)

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  4. Em todos os conventoe habitaram fantasmas

    de carne e osso
    e quem tiver dúvidas
    basta escutar o som ainda entranhado
    nas paredes
    ou perguntar à dona da casa

    Mais uma bela viagem

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