terça-feira, 25 de dezembro de 2012

185. A consoada de D. Micá



As portas da sala de jantar de D. Micá raramente eram franqueadas aos seus convidados. O salão, o varandim, a copa de apoio e os WCs socias eram mais do que suficientes para se passarem serões agradáveis. Ali se tocava piano, ali se tocavam guitarras, ali, principalmente, se contavam histórias. Uma vez por outra, se falava de moda e, com menos frequência, se falava da vida alheia. A não ser que isso viesse a propósito. Quanto a religião, futebol e política eram quase temas tabú embora não fossem proibidos. Só que havia sempre alguém que, quando a conversa decaía para esses temas, se propunha a contar uma história e todos assumiam que os serões na D. Micá eram para isso mesmo. Mas naquela noite foi diferente.

A comprida mesa estava posta e o lugar de topo reservado para D. Ermelinda. À sua direita, a cadeira pertencia a sua filha D. Micá e os restantes lugares seriam ocupados por um protocolo muito pouco definido, mas que todos assumiam que os lugares mais próximos das anfitriãs seriam ocupados pelos amigos mais antigos. Eu, que por deferência de D. Ermelinda e por insistência de D. Micá, me viria a sentar no topo oposto da mesa, perdia assim a oportunidade de privar mais de perto com a mãe e a filha mas, em contrapartida, ficava num lugar privilegiado para tomar nota de todo e qualquer detalhe. E é por isso que vos digo que a mesa de consoada de D. Ermelinda, fazia juz à atual presidente, por inerência, da Fundação para a divulgação e incentivo ao consumo do leite magro com chocolate ou, abreviando, da FPADEIACDLMCC.

O serviço de copos era completo e estava quase completo na mesa. Só para que conste, o cristal era Atlantis de 24% de Pb3O4, isto é, de extrema pureza, constituído por um copo para água, dois copos para vinho, branco e tinto e ainda uma flute para os apreciadores de champanhe à refeição. Apenas os copos de licor se reservaram para a sobremesa. Um lindo serviço Vista Alegre, com prato de entrada, um prato de sopa e dois pratos de prato principal, pois, na noite da consoada, havia não só o tradicional bacalhau com couves, ovo cozido e batata, mas também o mais suculento peru assado em forno de lenha, que acabara de chegar diretamente da Arruda. Eram aliás dois perus e não apenas um, dado o número de convidados que se sentariam à mesa. No salão, uma grande mesa de vidro, ali colocada apenas para a época, estava recheada das mais apetitosas vitualhas, onde não faltavam as filhós, os sonhos e as azevias, as rabanadas, a aletria doce por cortesia ao Armindo e à Tansinha que são do Porto, os figos secos e as nozes, as amêndoas torradas e pinhões descascados, as frutas cristalizadas e as avelãs, a lampreia de ovos e o tronco de chocolate, ameixas secas, damascos, sultanas doiradas, passas de uvas sem grainha, já para não falar de uma taça com mousse de chocolate e um cesto de frutas frescas com líchias, romãs, ananás dos Açores, mamão do Brasil, mangas importadas via aérea, laranja do Algarve, uvas chilenas e uma enorme taça com cerejas compradas numa frutaria da baixa que as importa diretamente da África do Sul, especialmente para esta época festiva. Infelizmente, o Armindo não chegaria a tempo para jantar, pois uma tão arreliadora como inesperada avaria no seu novo automóvel, fê-lo ser anunciado pelo segurança Alfredo já passava das 23:00h. Ainda assim, na copa, a sempre diligente Estela, uma empregada que veio servir para Lisboa no século passado e que já passada dos cinquenta anos foi cooptada por D. Ermelinda, preparou-lhe uma sandes de peito de peru com maionese e uma folha de alface e um copo de vinho tinto. Depois juntou-se ao grupo para comer uma broa castelar já que os diabetes não lhe permitiam abusos de qualidade nenhuma.

Vieram o Pedro Rebocho e a Marta Caracinha, como não podia deixar de ser, ela de totós e ele com mais gel do que cabelo, mas ambos, desta vez, impecáveis no traje, se bem que eu não tenha gostado muito da bolsa da Marta. Havia ali qualquer coisa que não condizia, mas tenho de olhar com mais atenção para as fotos para o poder detalhar. Foram também convidadas a Geninha e a Luisinha Monteiro, que por pouco não virava, esta, uma garrafa de champanhe na antecâmara do jantar, enquanto a primeira, para não se ficar atrás, ia bebendo shots de vodka. Pelo que se me foi dado observar a Geninha já estava bêbada antes de ser servido o bacalhau, mas se, mesmo atendendo a este comportamento desviante e habitual da Geninha, a D. Micá a continua a convidar, é lá com ela que eu não tenho nada a ver com isso. O Fagundes também veio, trazia uma bonita gravata Hermès e um blaser muito fino comprado na Sacoor, azul-escuro com botões dourados. Segundo consta, depois do par de cornos que Graziela lhe tinha pespegado com o Faria, o professor do ensino secundário, andou um bocado abalado e um tanto ou quanto à deriva mas, parece-me (e também consta aqui nos bastidores dos soirées da D. Micá), que namora uma senhora fina, mais velha que ele uns catorze anos, viúva, com uma boa renda mensal, mas que, talvez por estratégia, ainda não contou nada aos seus parceiros das quintas-feiras à noite. Mas a D. Micá, inevitavelmente já conhece a história toda. Um dia contar-nos-á. O Pedro Pinto Aragão, primo do Eduardo, por se encontrar a usufruir dos quarenta graus do Rio de Janeiro mandou uma mensagem de Boas Festas para todos e claro está com os desejos de um Feliz e Santo Natal. O Justino Carlos veio com a mulher, ela toda espampanante, com uma gargantilha incrustada de brilhantes e uma pulseira a fazer pandan e o Justino com um alfinete de gravata, em ouro de lei de 24 quilates. No aperitivo, enquanto eu espetava um palito num camarão com alho e ervas provençais, segredou-me, «isto foi o corno», que era como ele designava o amante da mulher, «que pagou» e apontou para o alfinete. Jantaram também connosco o Ricardo e o Adriano, uma vez que a Rafaela iria consoar com os pais dela e que os pais do Ricardo estavam emigrados na Suíça. Já o Adriano, por questões relacionadas com a crise no seu emprego, não pode ir seque à terra e por isso também se juntou a nós. Felisberto Passinhas e Sebastião Jerónimo fizeram a noite de consoada com as respetivas famílias mas o Ezequiel Canário e o Julião Guedes vieram. este último muito mais atinado do que é habitual pois passou pela Luisinha Monteiro e não lhe apalpou o rabo. Com certeza que era por ser noite de Natal. Foi bonito ver Efigénia chegar com Henriqueta. Apesar da condição de prostituta da Henriqueta, D. Micá gostava dela. Só lhe pediu para desta vez não vir de minissaia cor-de-rosa por cima das leggings brancas, nem de casaquinha de pelúcia roxa, ao que Henriqueta deu uma gargalhada e segredou-lhe «Ó filha eu vou ser a gaja mais elegante da tua mesa de consoada». E só não o foi porque D. Micá nunca deixava os seus créditos por mãos alheias, ou seja, quero dizer exatamente o contrário, pois foi pelas mãos de Tenente que ela estava deslumbrante que nem uma princesa. E com um decote que, olalá, nem vos conto.

Pois eram mais os convidados, os vinte e quatro lugares estavam ocupados, até o otorrinolaringologista Luís Lopes Lacerda, o casal Carlota e Paciência Monteiro, o dr. Fabrício Páscoa e, claro está, o meu amigo Eduardo Aragão estiveram na nossa consoada. Hoje, Eduardo entrou discretamente, vinha acompanhado por uma senhora casada, sei-o eu porque a conheço de outras andanças e, quiçá, sabê-lo-á D. Micá, que ele apresentou como menina Lucinda, obrigando-me a disfarçadamente pigarrear e receber um olhar cúmplice da “menina”, cujo marido é oficial da marinha mercante e estaria nesta noite a consoar com uma turbina a vapor ou um motor a fuel . Trazia com ele um saco de grandes dimensões e, tendo segredado qualquer coisa a Estela, entregou-lhe o saco, sendo que, depois, mais descontraído serviu-se de um Chivas Regal de 18 anos, olhou para D. Micá e brindou à FPADEIACDLMCC.

Já vinte e três se tinham sentado à mesa, quando olhando uns para os outros, inquirimos a menina Lucinda sobre o paradeiro de Eduardo. Ela, corou, colocou a mão à frente dos lábios e sorriu. Eis se não quando, vindo do WC contíguo, logo atrás de Estela, que saía da copa com uma bandeja cheia de postas de bacalhau asa branca do Atlântico Nordeste e ornamentada com ovos cozidos, surge o nosso Eduardo Aragão, em traje de Pai Natal. Todos riram, só eu não achei qualquer piada porque uma rocambolesca história, com traje similar, em outro Natal fê-lo consoar nos calabouços da polícia, ainda por cima, podre de bêbado. Mas da vida de Eduardo Aragão falar-vos-ei quando for oportuno, que hoje é noite de Natal. E pode também trazer o peru, amiga Estela.


quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

184. D. Micá e a fruta do tempo (ou a história de D. Camelinha)



“Antonieta parecia calma. Uma calma fantasmagórica, na palidez do seu rosto. Fez que se sentou ficando a planar sobre o sofá, perna traçada, deixando cair o branco véu que, na posição em que ficou, se deixava embalar pela corrente de ar, aparentemente injustificada, já que a criadagem se encarregara de cerrar portas e janelas, deixando ambos trancafiados no vasto salão dos espelhos. Apenas Penafiel, o fiel cão de D. Bonifácio, um pastor belga de leonina juba e Gatófio, um gato magrelas que Antonieta tinha adotado antes de morrer, tinham sido autorizados a ficar. No momento em que a corrente de ar se acentuou, pondo a nu, as alvas coxas de Antonieta, não conseguindo D. Bonifácio, ou não tendo tempo para, desviar o olhar, o ribombar de um forte trovão fez estremecer todo o edifício. Instantaneamente, Penafiel começou a ladrar e Gatófio deu um fabuloso salto tentando anichar-se no regaço de Antonieta. Em vão esperneou pois que trespassou roupas e colo, tendo-se estatelado no chão, por falta de sustentáculo. Em boa verdade, dada a sua natureza felina, Gatófio caiu sobre as quatro patas mas, ato contínuo, desatou a correr de cauda eriçada pela estupefação, percorrendo os quatros cantos da sala à procura de um onde se escondesse. Não contente com tanta algazarra e ainda assustado com o estrondoso trovão, Penafiel dirigiu os seus latidos a Gatófio ao que este lhe fez “fuuuuummm”. Contado que foi os desatinos de gato e cão, deve dizer-se que Antonieta assistiu a toda esta balbúrdia como se nada se tivesse passado e que D. Bonifácio mostrou alguns sinais de nervosismo, pois por duas vezes deixou apagar o fósforo quando tentava acender um charuto. Ou então não. Ou então foi a brisa que lhe apagou os fósforos. Mas isso nunca se virá a saber porque que também não o sei”, concluiu D. Micá, visivelmente empolgada com o desenrolar da sua história.

Parou por aqui a sua narração, levantou os olhos com um olhar de preocupação e olhou em redor. Se bem que lhe era notório que hoje também não estaria nos seus melhores dias, tendo por mais do que uma vez puxado pelo lenço, por sinal da mais fina cambraia, magistralmente bordado por dona Camelinha, uma minhota que há muito se radicou nas avenidas novas, desde os tempos em que veio acompanhar um afilhado que cursou engenharia metalúrgica no Instituto Superior Técnico, acabando por cá se radicar, ao contrário do afilhado, que também era sobrinho, que regressou a Viana, mais propriamente a Afife de onde era natural, por mor de trabalhar nos estaleiros. Pudera que dona Camelinha não por cá se tivesse quedado pois, quando ainda nem os quarenta anos houvera feito, conheceu o senhor Policarpo Santana, um abastado comerciante de bacalhau da Rua do Arsenal e com ele se amantizou, até que o senhor Policarpo Santana se finou com um enfarte, pois ter relações sexuais tão intensas com uma mulher ainda no fogo da idade, ele que já tinha quase trinta e cinco em cada perna, como gostava de se gabar, não lhe era muito aconselhável e dizem as más-línguas que tão pouco era proficiente. Deixou-lhe um dinheirinho, coisa pouca, dizia dona Camelinha, mas não se sabe bem ao certo de quantos contos de reis se tratou, já que dois prédios, um dos quais no Areeiro, deixou ele a um sobrinho que era magarefe no matadouro dos Olivais e outras propriedades a uma afilhada, também ela sobrinha, que era beata e que vivia mais tempo entre paredes seculares do que em sua própria casa, se bem que toda a gente afirmasse que era uma santa mulher e que a ela nada se podia apontar nem com a cabeça do dedo mindinho que fosse. Pois o lenço de D. Micá já tinha todo bastante uso essa noite e o mesmo se pode dizer de Januário Pireza, que até tinha espirrado seis vezes consecutivas e do Carlinhos Epicurista, assim chamado desde que se formou em filosofia e defendia teorias bem próximas de Epicuro, que andava a tossir uma tosse cavada que o deixava quase sem ar. Já a Graciete Malheiro, colocou várias vezes as costas das mãos na testa, fazendo com esse gesto como que uma elegante vénia, uma vez que tirava sempre a luva arrendada da mão direita, dizendo, para que todos ouvissem, «parece-me que estou com febre». A um canto, D. Ermelinda, sua mãe, mãe de D. Micá está bem de ver, bebia um chá de limão bem quente, adoçado com mel e sorvia um cálice de uma boa aguardente de vinho verde que desde miúda o via fazer a seu falecido pai. É assim, neste clima de espirros, assoadelas e estados febris que, com ar preocupado, D. Micá se virou para mim e perguntou, afirmado ao mesmo tempo:

- E o Eduardo Aragão? Ainda não o vi por aqui hoje.

- Pois não - respondi. Telefonou-me a dizer que não viria. Parece que está com gripe.     


segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

183. Micá e o chá de Eduardo



Quando o meu amigo Eduardo Aragão ouve falar em chá começa a ficar em transe. Nem por brincadeira, quando ele saboreia um puro malte, se lhe pode referir ao chá da Escócia e se, nalguma tertúlia, alguém se refresca na mousse de uma cerveja bem tirada, nenhum infeliz tente sequer insinuar a expressão plebeia do “chá” de Vialonga. Muitas das pessoas que frequentam os serões de D. Micá, a bem dizer a maioria, não conhece Eduardo Aragão tão bem como eu o conheço pelo que, a história de hoje foi contada por mim próprio e não, como habitualmente, pela nossa incontornável D. Micá. A propósito deste meu conhecimento profundo de Eduardo Aragão, talvez um dia, se se proporcionar, eu aqui vos conte detalhadamente a história da sua vida. Mas se o fizer será bem mais lá para a frente, já que a outras coisas mais importantes se deve dar prioridade.

- Conte-nos cá essa história, Constantino – pediu-me D. Micá depois de Eduardo ter dado as boas noites e, com o argumento de que teria uma viagem bem cansativa este fim de semana, colocara um boné de pura caxemira aos quadrados em dois tons de azul, um marinho, outro azul ultramarino, já que o frio se faz sentir, levantou a gola do sobretudo, atou ao pescoço um cachecol Pierre Cardin, e saíra. Poucos minutos passados, a dr.ª Gisela, esposa de um diplomata itinerante, saiu também.

- Com certeza, por quem é – respondi-lhe cordial e formalmente, como quase sempre é o nosso tratamento. E foi assim, que depois de ter aquecido as entranhas com uma chávena de cacau quente e fumado uma cigarrilha espanhola que me foi ofertada pelo Ezequiel Pintasilgo, um novo camarada destas tertúlias, figura caricata, com uma pequena barbicha a pender-lhe do queixo e um bigode tipo mosca não mais largo que as narinas que veste camisas com gola à padre e coletes de cores garridas e que só fuma cigarrilhas espanholas, pigarreei para aclarar a voz e comecei, mais do que a explicar a fobia de Eduardo Aragão ao chá, a contar a história que lhe deu origem.

Como já vos falei anteriormente, não que com isso queira falar da vida de Eduardo Aragão, este meu amigo sempre teve um fetiche, chamemos-lhe uma queda, para evitar estrangeirismos, por mulheres casadas. E, apesar da educação que os pais lhe deram, em bons colégios de base religiosa, Eduardo Aragão não conhecia por vezes os seus limites. Não foi portanto de estranhar que sempre que se cruzava com Carlota Monteiro, uma senhora a rondar os seus trinta e seis anos, bem empregadinhos, visto a correção do seu porte, as linhas definidas das suas ancas e a beleza das suas coxas, uma cintura quase que poderíamos dizer de vespa e um busto não demasiado farto mas que se realçava pela firmeza, fosse isso no restaurante que ambos frequentavam no intervalo para almoço, fosse na repartição de finanças onde a bela Carlota Monteiro trabalhava e que Eduardo frequentava sob qualquer pretexto, mesmo que não houvessem impostos para pagar, nem valores a declarar, fosse ainda no autocarro que, Eduardo Aragão, por mera “coincidência”, apanhava juntamente com Carlota Monteiro, nem que para isso fosse obrigado a regressar pela mesma via, para pegar o carro que entretanto estacionara num parque próximo da paragem, pois não havia ocasião que Eduardo não transmitisse a Carlota Monteiro o seu desejo de um dia tomar um chá com a senhora. Aqueles convites perturbavam Carlota. Se é verdade que a presença tão assídua de Eduardo na sua vida a começava a atrapalhar, não fossem as más-línguas começarem a fazer conotações erradas, não menos verdade é que a própria Carlota começou a sentir, ela própria um secreto desejo de tomar chá com o meu bom, mas um tanto ou quanto descabeçado amigo, Eduardo Aragão. Mas não. Ao invés do que os seus pecaminosos pensamentos tentados em desejos a invetivavam a fazer, Carlota introduziu cautelosamente o tema ao seu muito ciumento, quiçá por vezes colérico marido o senhor Paciência Monteiro, comerciante de prestígio, cujos armazéns importavam as mais belas e qualificadas sedas da Índia. Debalde toda a diplomacia e cautela de Carlota. Inesperadamente, o senhor Paciência Monteiro ordenou-lhe que ela aceitasse o convite mas na condição de o tomar em sua própria casa, a deles, a do casal Monteiro. E assim se decidiu, assim se fez, pois que Carlota Monteira, argumentando com Eduardo de que estava cansada de tanto assédio, se dispôs a aceitar o convite, mas fê-lo nas condições impostas pelo marido.

- E ele? - perguntou preocupado Eduardo Aragão.
- Não estará – respondeu, ligeiramente nervosa por estar a mentir, Carlota Monteiro.
- Não estará?! – perguntou exclamativamente Eduardo Aragão, parecendo incrédulo com a resposta, mas ao mesmo tempo denotando, para quem estuda essas coisas da expressão facial, um certo ar de satisfação. E ainda acrescentou, no mesmo tom: - Como não está?
- Este fim de semana, ele terá uma viagem de negócios pelo que se ausentará sábado de manhã e só regressará no domingo pela tardinha.

Para Eduardo, o meu bom amigo, mas um tanto ao quanto desbragado, outras coisas lhe começaram a passar pela ideia, visto tão prolongada ausência de Paciência Monteiro lhe poder proporcionar algo mais do que uma chávena de chá, quem sabe se acompanhada por algum biscoito caseiro, sim que Carlota, tinha ar de quem era mulher de perceber de pastelaria. E não lhe perguntem porquê que ele achou isso, que ele, com toda a certeza não responderá e já vão saber porquê.

Resumindo para que se não enfastiem, contar-vos-ei que, como era de esperar e com a desculpa de que o seu propósito, por motivos alheios à sua vontade fora adiado, Paciência Monteiro foi ele em pessoa quem veio à porta receber o meu amigo Eduardo que, com toda a educação que recebera em criança, não quis deixar as suas boas intenções a débito e aceitou entrar para tomar chá, desta vez, com o casal. Não se tocaria no assunto dos vários convites para um “chazinho” como o meu amigo se referia nas aproximações a Carlota, não fora o caso de depois de tomada a primeira chávena de chá e recusado que fora a degustação de um biscoito caseiro, Eduardo não tivesse resolvido que havia chegado a hora de agradecer tão amável receção e tenha decidido retirar-se.

- Ora essa – dizia Paciência Monteiro – não convidou Vossa Excelência por mais do que uma vez a minha esposa para um “chazinho”, como era sua a expressão? Pois se o fez não é agora que ainda mal começamos que já vai querer debandar de nossa casa.

E, ato contínuo, serviu-lhe mais uma chávena de chá e ainda outra, depois mais outra e tantas mais que Eduardo Aragão esteva à beira de uma congestão por excesso de líquido ingerido, tendo chegado a perder a consciência.

Vendo assim o convidado naquele despropósito, desmaiado sobre a carpete, uma chávena de porcelana inglesa decorada com motivos florais literalmente em cacos no meio do chão, pouco faltou para que o casal Monteiro entrasse em pânico. Mas, no meio da confusão e da aflição, sim da aflição, porque não dizê-lo, ainda houve o discernimento de Carlota para limpar os vestígios e levantar a mesa e para Paciência ligar para um amigo seu, o Dr. Fabrício Páscoa, que embora fosse médico veterinário, sempre saberia melhor do que eles resolver a situação. Sem explicar ao dr. o que exatamente se tinha passado, receberam o Dr. Fabrício como se fosse um Deus, deixaram que o médico mexesse e remexesse no corpo inanimado de Eduardo, apesar de tudo com uma respiração normal e sem sintomas de qualquer traumatismo, lhe abrisse a pestana para ver os olhos e até, talvez por deformação profissional, lhe abrisse a boca e desviasse a queixada, verificando-lhe assim língua e dentes. Com calma e usando uma solução que tresandava a amoníaco, fez o dr. Fabrício Páscoa com que o meu amigo retomasse os sentidos e, quando ele já parecia restabelecido, aconselhou-o:

- Agora vá para casa, descanse um pouco e antes de se deitar tome dois destes comprimidos – e passou-lhe para a mão um blister contendo quatro comprimidos brancos, pequeninos, acrescentado – e quando acordar tome os outros de dois. De preferência com uma chávena de chá.


segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

182. O colar de D. Micá



“Apenas uma mantilha, diáfana e branca, cobria o corpo de Antonieta. O clarão dos relâmpagos mostrava um corpo nu na translucidez do véu. Mas mais alvo que aquilo que a cobria era a sua pele. O seu rosto, de olhos encovados e debruados a preto, era como uma máscara veneziana. D. Bonifácio d’Assunção parou à sua frente. De repente não parecia ter-se impressionado. Apenas lhe perguntou:
- Que queres?
E lembrou-se da caixa que tinha recebido nessa tarde.
O fantasma de Antonieta girou sobre si próprio ficando de costas para D. Bonifácio. Deu alguns passos em frente e, ato contínuo, foi seguida pelo pastor belga que rosnou. D. Bonifácio fez um gesto e um dos empregados puxou a trela ao cão. Este sentou-se mas não parou de rosnar. Uma aura de luz circundava agora o fantasma. O criado da lanterna apagou-a e Aristides deu o braço a D. Bonifácio, apoiando-o”.

À entrada da porta do salão ouviu-se um estardalhaço inesperado. Parecia que a criada de servir estava possuída. Sem nada que o fizesse esperar, tropeçou num Arraiolos que uma amiga de D. Micá fez numas aulas de artesanato que frequenta num Centro Social, por acaso muito bonito e que nada fica a dever aos mais famosos processados na Igrejinha ou em qualquer outra localidade de Arraiolos, e estatelou-se no meio do chão entornando todas as canecas de cacau quente e os copos de leite magro com chocolate, pirogravados com as armas da Confraria, e o nome escrito em gótico ou em letra francesa, não sendo eu um especialista para o poder distinguir. Todos os copos se quebraram e apenas uma das canecas, de fina loiça da Vista Alegre, não se partiu, mas, infelizmente, ficou sem asa o que acabou por dar no mesmo. A moça, que D. Micá tinha empregado a pedido do senhor Hortênsio, que já tinha sido merceeiro na Lapa e era muito amigo da família, veio, depois de ter bebido um copo de água com açúcar e se ter abanado com se sofresse de afrontamentos, já sentada numa cadeira, a confessar que ao ouvir, assim por alto, a D. Micá falar em fantasmas, lhe tinha passado uma coisa pela cabeça e que uma tontura muito grande a tinha desequilibrado. Os convidados de D. Micá, olharam uns para os outros e assentaram com a cabeça que poderia, sim, ter sido muito bem isso, já que há muita gente que se impressiona com estas coisas.

Restabelecida que foi a situação, foi a vez da Carlinha Menezes comentar o vestido branco com que D. Micá os recebia hoje, e do lindo colar, naturalmente caríssimo, que enfeitava o seu pescoço. Eduardo Aragão, um amigo meu que frequenta amiúde estes serões, foi ele mesmo à copa que serve de apoio não só ao aposento onde se contam as histórias, mas também a uma pequena sala de repouso para os que se “excedem” no consumo de copos de leite magro com ou sem chocolate, buscar um copo de água com açúcar para se acalmar. O colar que D. Micá ostentava era exatamente igual a um que Eduardo oferecera a Antonieta, nos tempos em que foram amantes. Mas da vida de Eduardo Aragão falar-vos-ei, quando for oportuno.