Hoje é
quinta-feira. Fico sempre um pouco excitado às quintas-feiras, o dia em que D.
Micá recebe como ninguém na sua nova residência à Lapa. Desde que se mudou de
Albergaria para Lisboa e logo que as obras no antigo palacete terminaram, que
D. Micá não falha um serão de quinta-feira. É claro que só os amigos têm o
privilégio do convite e também alguns familiares. De entre os que já vos falei e
os que anda virão a ser mencionados, poucos há de quem eu lhes conheça a vida
que não tenha sido através da verve escorreita de D. Micá, que não só é uma
mulher atenta ao mundo e às pessoas, mas também, se não a melhor, talvez uma
das melhores contadoras de histórias que o nosso burgo conhece. Mas como vos
prometi, hoje vou-vos falar de Eduardo Aragão, um velho amigo meu, de quem
conheço detalhes que nem passam pela cabeça de D. Micá. Ou talvez não pois que,
pensado bem com os meus botões, eu acho que há algumas cumplicidades entre
eles. Às vezes fico a pensar como é que uma mulher que ainda não chegou aos quarenta,
que se criou numa aldeia perto de Albergaria, que estudou em Coimbra não mais
do que uma dedada de uma mão de anos letivos, conhece tanto mundo que é como
quem diz tanta gente e alguns lugares. Bem sei que D. Micá o que mais fazia era
viajar pois nunca precisou de trabalhar e apesar de ter cursado Direito com
distinção, desde que se formou não mais pegou no Código de Direito
Administrativo, no Código de Direito Penal, em nenhum tratado internacional, no
Código Comercial ou, vejam bem se é possível, no Código de Direito das Sucessões,
que não fosse para os arrumar bem arrumadinhos nas estantes de mogno que forram
as paredes de uma pequena mas bonita biblioteca na casa onde morava na
província, uma mansão que era impossível dissociar da construção de tipo
colonial com redes e tudo, a servirem de cama de descanso, em largos alpendres
com colunas. A biblioteca do Comendador tinha, por vaidade pessoal deste, já
que, embora a sua vida não tenha sido uma vida dedicada à cultura, mas sim bem
mais ligada à agricultura e à pecuária, alguns tomos antigos, primeiras edições
e algumas ofertas de autores regionais. Destacavam-se na biblioteca do
Comendador os quarenta e oito volumes da Enciclopédia Luso-Brasileira
Atualizada, um “Tratado de Química dos Adubos na Cultura de Oleaginosas e
outras Sementes”, a coleção completa e encadernada em capa de couro genuíno
escandinavo tingido a azul e debruado a filigrana dourada, de uma edição em
francês da obra mais famosa de cada um dos Prémio Nobel da Literatura, desde o
inicio aos nossos dias e ainda, entre obras de grandes mestres, a cartilha de
“Bem ordenhar, melhor beber” de autor suíço, cujo nome não fixei, mas que
termina em Frei. A verdade é que quando D. Micá se decidiu a viver em Lisboa,
arrastando consigo D. Ermelinda, sua mãe, uma sexagenária de muito bom aspeto,
que veste e que se penteia muito bem e que, só em jeito de parêntesis pois não
me quero desviar do motivo que me levou a escrever hoje, digo-vos que D.
Ermelinda não vai à missa sem se pentear na Isabel Lencastre que abre mais cedo
cerca de uma hora aos domingos, exclusivamente para ela e que, aos serões das
quintas-feiras, faz questão em vestir algo sofisticado e elegante, ora de
Augustus, ora de Ana Salazar, (confessou-me uma vez que era íntima de Buchinho,
mas eu ainda não o vi nos serões), contava que quando D. Micá e D. Ermelinda
vieram para Lisboa, nada trouxeram da casa da terra, onde passam frequentes
fins-de-semana, tendo deixado tudo entregue a caseiros. Talvez tenham feito bem
porque a casa da Lapa tem a sua própria decoração, pontifica no teto do salão
um candeeiro de Peter Gasper e sobre a mesa uma escultura assinada por Gerin
além do já referido quadro de Paula Rego, não conviria muito misturar o que não
tem osmose. Além disso, D. Micá não é, hoje em dia, uma mulher de muitas
leituras, é mais society, entendem,
claro, isto retomando o assunto com que comecei o tema. No entanto, voltando à
casa de Albergaria, para que não me escape nenhum detalhe e à pequena mas
bonita biblioteca, o que mais me fascinou quando lá entrei a primeira vez, a
convite da simpática D. Micá, que gostou muito que o meu primo me introduzisse
no seu círculo reservado de amigos, «em boa hora», chegou a dizer, foi um
pisa-papéis feito em madeira exótica oriental com esculturas miniaturizadas,
talhadas na própria superfície esférica, representando as várias posições do
kamasutra. Assim como quem não quer a coisa, perguntei a D. Micá se ela me
venderia o pisa-papéis, ao que a jovem senhora ficou muito corada. Tão corada
como D. Ermelinda, sua mãe, quando a apanhei, um serão aqui atrasado, numa
conversa de caráter íntimo com o meu amigo Eduardo Aragão de quem vos falarei um
destes dias.
Acredito que a D. Micá seja uma grande contadora de histórias, para já fiquei-me só a morder o ambiente que a rodeia... ;)
ResponderEliminarBeijocas!
... entretanto...
ResponderEliminarinSeguro é fiche
Fico à espera quero saber sobre esse Aragão...
ResponderEliminarFicou corada? porque seria? :) aguardarei o prosseguimento desse Aragão que desconfio que irá levar com o pisa-papéis.
ResponderEliminarUm abraço e bom domingo
Eu queria era ver o pisa-papéis com as imagens do kamasutra, haha!
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