terça-feira, 2 de outubro de 2012

171. O pisa-papéis de D. Micá



Hoje é quinta-feira. Fico sempre um pouco excitado às quintas-feiras, o dia em que D. Micá recebe como ninguém na sua nova residência à Lapa. Desde que se mudou de Albergaria para Lisboa e logo que as obras no antigo palacete terminaram, que D. Micá não falha um serão de quinta-feira. É claro que só os amigos têm o privilégio do convite e também alguns familiares. De entre os que já vos falei e os que anda virão a ser mencionados, poucos há de quem eu lhes conheça a vida que não tenha sido através da verve escorreita de D. Micá, que não só é uma mulher atenta ao mundo e às pessoas, mas também, se não a melhor, talvez uma das melhores contadoras de histórias que o nosso burgo conhece. Mas como vos prometi, hoje vou-vos falar de Eduardo Aragão, um velho amigo meu, de quem conheço detalhes que nem passam pela cabeça de D. Micá. Ou talvez não pois que, pensado bem com os meus botões, eu acho que há algumas cumplicidades entre eles. Às vezes fico a pensar como é que uma mulher que ainda não chegou aos quarenta, que se criou numa aldeia perto de Albergaria, que estudou em Coimbra não mais do que uma dedada de uma mão de anos letivos, conhece tanto mundo que é como quem diz tanta gente e alguns lugares. Bem sei que D. Micá o que mais fazia era viajar pois nunca precisou de trabalhar e apesar de ter cursado Direito com distinção, desde que se formou não mais pegou no Código de Direito Administrativo, no Código de Direito Penal, em nenhum tratado internacional, no Código Comercial ou, vejam bem se é possível, no Código de Direito das Sucessões, que não fosse para os arrumar bem arrumadinhos nas estantes de mogno que forram as paredes de uma pequena mas bonita biblioteca na casa onde morava na província, uma mansão que era impossível dissociar da construção de tipo colonial com redes e tudo, a servirem de cama de descanso, em largos alpendres com colunas. A biblioteca do Comendador tinha, por vaidade pessoal deste, já que, embora a sua vida não tenha sido uma vida dedicada à cultura, mas sim bem mais ligada à agricultura e à pecuária, alguns tomos antigos, primeiras edições e algumas ofertas de autores regionais. Destacavam-se na biblioteca do Comendador os quarenta e oito volumes da Enciclopédia Luso-Brasileira Atualizada, um “Tratado de Química dos Adubos na Cultura de Oleaginosas e outras Sementes”, a coleção completa e encadernada em capa de couro genuíno escandinavo tingido a azul e debruado a filigrana dourada, de uma edição em francês da obra mais famosa de cada um dos Prémio Nobel da Literatura, desde o inicio aos nossos dias e ainda, entre obras de grandes mestres, a cartilha de “Bem ordenhar, melhor beber” de autor suíço, cujo nome não fixei, mas que termina em Frei. A verdade é que quando D. Micá se decidiu a viver em Lisboa, arrastando consigo D. Ermelinda, sua mãe, uma sexagenária de muito bom aspeto, que veste e que se penteia muito bem e que, só em jeito de parêntesis pois não me quero desviar do motivo que me levou a escrever hoje, digo-vos que D. Ermelinda não vai à missa sem se pentear na Isabel Lencastre que abre mais cedo cerca de uma hora aos domingos, exclusivamente para ela e que, aos serões das quintas-feiras, faz questão em vestir algo sofisticado e elegante, ora de Augustus, ora de Ana Salazar, (confessou-me uma vez que era íntima de Buchinho, mas eu ainda não o vi nos serões), contava que quando D. Micá e D. Ermelinda vieram para Lisboa, nada trouxeram da casa da terra, onde passam frequentes fins-de-semana, tendo deixado tudo entregue a caseiros. Talvez tenham feito bem porque a casa da Lapa tem a sua própria decoração, pontifica no teto do salão um candeeiro de Peter Gasper e sobre a mesa uma escultura assinada por Gerin além do já referido quadro de Paula Rego, não conviria muito misturar o que não tem osmose. Além disso, D. Micá não é, hoje em dia, uma mulher de muitas leituras, é mais society, entendem, claro, isto retomando o assunto com que comecei o tema. No entanto, voltando à casa de Albergaria, para que não me escape nenhum detalhe e à pequena mas bonita biblioteca, o que mais me fascinou quando lá entrei a primeira vez, a convite da simpática D. Micá, que gostou muito que o meu primo me introduzisse no seu círculo reservado de amigos, «em boa hora», chegou a dizer, foi um pisa-papéis feito em madeira exótica oriental com esculturas miniaturizadas, talhadas na própria superfície esférica, representando as várias posições do kamasutra. Assim como quem não quer a coisa, perguntei a D. Micá se ela me venderia o pisa-papéis, ao que a jovem senhora ficou muito corada. Tão corada como D. Ermelinda, sua mãe, quando a apanhei, um serão aqui atrasado, numa conversa de caráter íntimo com o meu amigo Eduardo Aragão de quem vos falarei um destes dias.


5 comentários:

  1. Acredito que a D. Micá seja uma grande contadora de histórias, para já fiquei-me só a morder o ambiente que a rodeia... ;)

    Beijocas!

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  2. Fico à espera quero saber sobre esse Aragão...

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  3. Ficou corada? porque seria? :) aguardarei o prosseguimento desse Aragão que desconfio que irá levar com o pisa-papéis.

    Um abraço e bom domingo

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  4. Eu queria era ver o pisa-papéis com as imagens do kamasutra, haha!

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