domingo, 4 de dezembro de 2011

80. Ismael (5) - Bufos


A primeira pergunta que lhe fiz foi que cara é essa e ele quase me fulminou com os olhos. Ismael estava na ombreira da porta, o espanta-espíritos batia-lhe na cabeça sem que isso o incomodasse, um cigarro português suave sem filtro no canto da boca a dar mostras de que se iria apagar. Tirou a prisca da boca apertou-a entre o polegar e o indicador e jogou-a, como se fosse um berlinde, para o pavée da rua em frente à porta da tasca. E a culpa foi toda sua, senhor Constantino!

Quase me dava um baque quando entrei na tasca do galego. Parecia que tinha havido uma revolução. Mesas e cadeiras desarrumadas, viradas de pantanas, umas ainda caídas sobre as outras, garrafas partidas pelo chão, uma grande mistura de odores de licores e vinhos. Só uma garrafa de ginginha se mantinha intacta no seu lugar costumeiro entre a máquina registadora e o prato dos carapaus de escabeche. Nas prateleiras nada, as gavetas de um pequeno aparador onde Ismael guarda toalhas de mesa, talheres e pratos, caídas e despejadas, e os cacos do que outrora foram pratos de loiça esparramados pelo chão. E sou eu que tenho a culpa, sr. Ismael? Tenha lá paciência, mas não dei por nenhum tremor de terra e mesmo que desse por isso não sou eu que comando a Natureza. E foi então que o galego me explicou tudo. Aquele homem de fato cinzento e chapéu que se senta sempre na mesa do canto. Sim esse mesmo, aquele que todos dizem que é da PIDE.

(o meu pensamento voou; o pai do galego tinha morrido na guerra civil de Espanha, mas isso tinha sido há uns bons trinta e três para trinta e quatro anos; verdade que o D. Ismael de Gúsman y Toledo era republicano, mas o seu tio materno, o que o trouxe para Lisboa, era um devoto falangista e venerava o caudillo; e tantos anos, mas tantos anos depois, a mais a uma criança que chega aqui com oito anos de idade, não o haveriam de conotar com nada; cá para nós, que ninguém nos ouve nem lê, ele nunca se declarou mas eu acho que Ismael era do contra; mas isso era eu que era muito íntimo do galego; como é que eles iriam desconfiar?)

Sabe o que foi, sr. Constantino? Foi o seu livro. Sim o seu livro, aquele de capa cinzenta que você costuma andar sempre com ele debaixo do braço. Mas vossemecê tem necessidade de andar por aí com autores russos a exibir-se? E o pior é esquecer-se dele em cima da mesa. Vou-lhe contar, o tipo de fato cinzento e chapéu, pegou no livro, levou-o com ele, ainda o chamei, mas nada. Não era passada meia hora, chegaram outros, ele não, ele desapareceu, não deve querer que saibam que é bufo, revistaram-me tudo e perguntavam-me onde é que eu escondia os outros, onde que estavam os livros do Lenin e do Stalin?

Se não fosse trágica a situação do Ismael eu ter-me-ia rebolado a rir. Os desgraçados sacaram-me o Piskonov, o meu livro de matemática e deram cabo da taberna ao galego. Divinas inteligências. E ainda por cima tive de comprar um novo, porque àquele nunca mais lhe pus a vista em cima.

12 comentários:

  1. Boa história ,Vitor, e me parece verídica, é? Foi bom passar por aqui, um abraço

    ResponderEliminar
  2. Só hoje pude ler os dois últimos capítulos desta saga do Ismael que prende cada vez mais.
    Abraço

    ResponderEliminar
  3. Hei de concordar com o Ismael, "a culpa é sua, sr Constantino"!

    ;)))))

    ResponderEliminar
  4. Um dia, tinha os meus 13 anos, ia pela António Maria Cardoso entretido a ler um livro que tinha acabado de trocar na estação do Rossio, quando esbarrei com um tipo alto, de chapéu à detective, que enquanto me barrava o caminho, me sacou o livro das mãos.
    Deu uma vista de olhos à capa, virou duas ou três páginas, devolveu-mo e mandou-me seguir.
    Às vezes fico a pensar neste episódio caricato e pergunto-me:
    Será que aquele idiota imaginou que um puto de 13 anos podia ser um espião russo?

    ResponderEliminar
  5. Coitado do galego! Mas sim, a PIDE não primava pela inteligência, mas algo me diz que alguns não eram tão burros assim, tinham apetência por amedrontar o pessoal, só porque sim... ;)

    Beijocas!

    ResponderEliminar
  6. Uma das características desses esbirros era a falta de cultura, portanto está tudo certo!Desde que o nome acabasse em ov ou ich era subversivo e perigoso...
    (obrigada pela visita- e concordo contigo:)))) )

    ResponderEliminar
  7. Pois...´lá estás tu a provocar desacatos com a livralhada!!
    Mas que mania!!!
    E depois dizes que não tens culpa nenhuma... razão tinha o "galego"!!!
    Ehehehehehe... um abraço, pá!

    ResponderEliminar
  8. Quase me dava um baque era a mim. Eu que tinha escolhido aquele canto recatado para me sentar...
    Vou manter-me cliente, tenho é que mudar de lugar.
    (a última coisa que queria na vida era manter-me nesse posto e ser confundido com um bufo tosco)

    ResponderEliminar
  9. Homens de fatos cinzentos e chapéus em busca de livros de capa cinzento .... Haverá pior?
    Muito bom mesmo!

    ResponderEliminar
  10. Por causa do seu Pisk-o-nov, ficou a tasca do Ismael feita num oito!
    Lá foi pró maneta a minha garrafa de ginginha e adeus fados e guitarradas.
    Com amigos assim, quem precisa de inimigos?
    Põ-se a comer as rapsódias de queijo e depois esquece-se da matemática em qualquer lado...livra!
    A culpa foi toda sua, sim senhor!

    ResponderEliminar
  11. Hoje temos "bufos de outra natureza" mas relatas como a PIDE actua na realidade e nenhum, mas nenhum dessa corja foi julgada!

    Tive que sorrir!

    ResponderEliminar
  12. O que escaqueirou tudo, incluindo a tasca, foi a matemática e nem mesmo aqueles tipos do chapéu escaparam à má fama de quem nunca soube fazer bem as contas...

    ResponderEliminar