quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

83. Ismael (8) - O manuscrito de Francisca


Seis anos Ismael Gúsman viveu com Isaura Peres. Francisca que adorava romances de amor não poderia estar mais feliz com este romance. Francisca chegou a morar no Porto. Filha do Alentejo quis o destino que, por força do trabalho do marido, um ilustre juiz de direito, tivesse de se deslocar para o norte do país. Não viveu aí muitos anos, o casamento não correu bem, pois o Dr. Castro Ribeiro era de mulheres, tendo decido rumar de novo a Sul. Mas regressar ao Alentejo não estava nas suas cogitações mais próximas. Nesse tempo grassava a fome e a miséria pelos campos alentejanos. Os jornaleiros alimentavam-se de toucinho cozido num caldo de água e acelgas e, se havia um naco de pão era porque o caseiro, ou o maioral do gado dispensava um pouco do que o patrão lhes dava. As pessoas emigravam para França e para a Alemanha que precisavam ser reconstruídas e havia trabalho. Quem cá ficava também não se fixava nos campos. É verdade que houve a campanha do trigo mas não chegava para todos. Francisca, que dela não possuía fortuna e como o Dr. Castro punha e dispunha, bem suportado por um regime que protegia os mais fortes, viu-se forçada a regressar com uma mão atrás e outra à frente. Ficará para mais tarde contar a vida atribulada de Francisca. Vem assim, a nossa alentejana, quando regressou ao sul, a fixar-se na Quinta do Conde. Foi aí que conheceu o meu amigo galego, Ismael Gúsman e o seu arrastar de asa à filha do sapateiro a jovem Isaura Peres, a quem todos chamavam Isaurinha bate-sola.

Naquele dia abafado de maio, trovejava e rezava-se a Santa Bárbara. Francisca precisava de ir à mercearia. Queria fazer uma sopinha e faltava-lhe o nabo. Sem nabo, para Francisca, sopa não era sopa. A mercearia do Sr. Rodrigues tinha de tudo. D. Francisca era vaidosa e até para ir à mercearia se aperaltava. Usava um carrapito muito bem composto com dois ganchos de madrepérola que o seu sobrinho Sebastião lhe tinha trazido de uma viagem que fez às Canárias. O sobrinho de Francisca era um belo rapaz, embarcadiço, tratava dos camarotes e das copas, ganhava para se governar. Só era pena ser manco, pois que se tratava de uma bela figura. Diziam que se tinha apaixonado por uma corista italiana e que andava na vida do mar para juntar um dinheirinho. Vestiu um vestido de chita às flores, calçou uns sapatos abertos, que mais pareciam sandálias, fino recorte a condizer com a sua anterior condição, colocou um cinto que lhe realçava a estreita cintura, pegou num pequeno cabaz de verga e um guarda-chuva, não fosse a trovoada lhe pregar uma partida e saiu.

Naquele dia na mercearia o encontro entre Francisca e Isaura foi tudo menos alegre. A filha do sapateiro estava disposta a abandonar o galego e Francisca ficara perplexa. Tão amorosos que eles eram. Depois, assim como se fossem duas grandes confidentes, veio Isaurinha bate-sola a confessar que soubera que Ismael tinha tido outra mulher, da qual nascera um rapaz, tal e qual a carinha do pai que até lhe puseram o mesmo nome e que, sempre que o galego estava com ela, ela se imaginava como uma substituta. Parece até que a moça era bailarina, amiga de uma tal Isabela que tinha sido assassinada uns meses atrás e a última coisa que Isaura queria era ver-se envolvida em crimes de sangue. Entrou Sebastião na mercearia, encharcado até á medula mas no seu tão inconfundível como harmonioso coxear, trocou olhares com Isaurinha, deu um beijo na testa da tia Francisca e pediu uma gasosa.

Quando regressou a casa Francisca colocou o nabo de lado. Pegou num bloco de apontamentos e gatafunhou umas frases. Juntou dois com dois mas não lhe dava quatro. Toda a história de Isaurinha bate-sola lhe cheirava a esturro a ponto de não ter acreditado nem  em uma única palavra? O que teria Isabela a ver com a mãe de Ismael Gusman Júnior? Porque é que o seu sobrinho andava a desencaminhar Isaurinha bate-sola se a sua paixão era uma bailarina do parque Mayer? O filho era tal e qual o pai mas quem seria a paixão de Ismael? Disse-me o Espinheira, bem recentemente, que apesar de toda a sua formação paleológica, uma das mais indecifráveis escritas era a do manuscrito de uma tal Francisca, da Quinta do Conde.

Eu era muito pequeno e nunca soube nada do que acima escrevi. Tive de inventar tudo para preencher mais um capítulo do meu livro. Mas fica bem haver histórias de amor, que com paciência desenvolverei, descreverei até a cor dos cortinados do quarto de Isaurinha Peres, a filha do sapateiro, do candeeiro de teto de Francisca, a qualidade das pantufas que Ismael usava em casa e os afagos que o bobby, o cão rafeiro, do marinheiro Sebastião recebia de cada vez que voltava de viagem. Mas agora só vos pretendo dizer que na tasca de Ismael Gusmán, que apenas comecei a frequentar já nos inícios dos anos setenta, pendurados numa parede, havia, como decoração, uma bigorna de sapateiro, duas sapatilhas de ballet e um ramo de hortaliça com dois nabos dependurados. Todas as semanas, um homem de bigode à Chalana, mas totalmente branco e com um sotaque de emigrante francês, substituía a verdura por outra mais viçosa.

12 comentários:

  1. Viva a inventiva... é que parece mesmo verdade.
    Entre um qualquer e um escritor a gente sabe bem ver quem é o impostor...

    (lá da minha mesa do canto, onde corri o risco de ser tomado pelo homem que vestia cinzento e lhe levou o tal livro, nunca tinha assistido à mudança da verdura)

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  2. Constantino...
    assim muito rapidamente a seguir já,já da primeira leitura só lhe venho dizer que me doem os músculos da barriga de tanto rir...

    Oh...episódio hilariante este!! Só espero que não lhe perca o ritmo, lol.

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  3. Como diria o Herman José: "Agora é que me lixaste, Ó Alcibíades!"
    ...trocou tudo..bom, adiante.

    Pois é Constantino, este capítulo caiu-me no goto. Fartei-me de rir quando o li ontem, ou melhor esta madrugada, e ainda continuo rindo!

    Imagino a Francisca toda aperaltada, com o seu carrapito enfeitado com ganchos de madrepérola, cestinha na mão e guarda-chuva, só para ir à mercearia, e dá-me pra rir!
    Não fora o vestido de chita florido, diria que tinha ido buscar a D.Perpétua à "Tieta do Agreste" do Jorge Amado.lol

    Parabéns Constantino, isto está uma belezura.

    Por acaso também conheço uma Francisca que sopa sem feijão e sem nabo, para ela não é sopa.

    Só não compreendi uma coisa...porque motivo o homem de bigode à Chalana, apenas substituía a verdura e deixava os nabos a murchar?!

    Arranje paciência, Constantino...eu agora quero saber qual a razão porque o romance entre o Ismael e a menina bate-sola não deu certo.

    Ahh! sou mesmo uma sentimentalona.:(

    Beijinhos Constantino e Bom Natal:))))

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  4. foi assim q começou a Quinta do Conde ??

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  5. prosista tens de mostrar ao mundo o teu dom!!!

    Esse talento não é para guardar na gaveta!!
    Que esperas heim?

    Beijos daqui

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  6. não seria o chalana...himself? olha que verdura ela gostava tb e de sabonetes
    kis :=)
    BFSEMANA

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  7. hahahah...ficamos à espera...agora caldo sm nabo..nãoé caldo: gostei dos ganchos de madrepérola das canárias...e do enredo. Muito bem escrto, oh yesss!

    Grata pela vsita.
    BShell

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  8. Mais dois capítulos FABULOSOS onde soltei umas sonoras gargalhadas, tu realmente és inédito:)

    Um abração!

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  9. E o limite é a nossa imaginação... em tudo!
    Tu prendes bem as pessoas à tua escrita.

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  10. Voltei para continuar a ler a saga de Ismael e continuo deliciada com este humor genuíno e de génio!
    Parabéns porque a escrita embala-nos e rapidamente chegamos ao fim.

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  11. Ismael está se tornando o personagem mais conhecido da blogosfera, Vítor Fernandes!

    ;))))

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