Estava a terminar o ano de mil novecentos e sessenta e seis. Ismael Gúsman tinha nascido em trinta e um e vindo com o tio para Lisboa no fim da guerra civil, apenas com oito anos de idade. No dia oito de dezembro fazia o que fazia em todos os domingos e dias santos. Vestia a sua melhor camisa, o fato preto de três peças e os sapatos de verniz que eram bem limpos e abrilhantados com azeite na véspera. Saía cedo de casa e, como a D. Laurentina, uma trintona bonita de cabelos negros e olhos cor de azeitona, tinha ficado sem o seu homem na queda dum andaime nuns prédios altos que andavam a fazer lá para Lisboa, como ela dizia, ele acompanhava-a à missa em Azeitão. Hoje era dia da mãe e Ismael, que já não se lembrava da sua, dizia mesmo que não sabia se a tinha conhecido, iria rezar-lhe três Avés Maria e um Padre Nosso. Depois apanhariam a carreira e iriam comer uma caldeirada a Setúbal. Foi nesse momento, embrenhado nestes pensamentos, que Ismael Gúsman se lembrou que hoje não podia ser, que hoje não poderia acompanhar D. Laurentina à igreja.
Tinha sido no início do mês passado que o senhor Augusto parou lá pela tasca, num dia que fora buscar mercadoria aos armazéns de S. Domingos a fim de abastecer a sua venda de roupas. Carregado com dois pesados embrulhos de roupa interior e meias angorá, que se vendiam muito bem naquela época, tinha descansado os pulsos lá no senhor Ismael, saboreado um pastelinho de bacalhau superiormente confecionado pela Fernandinha e bebido um tintinho do Cartaxo. Depois falou-lhe que os garotos iam ser batizados na igreja de S. Tiago em Almada no próximo dia oito e que fazia muita questão que ele estivesse presente. A sua mulher, que na altura estava grávida de oito meses e que previa que o mais novo nascesse lá para Dezembro, insistiu muito e os miúdos lá fizeram a doutrina e agora, com doze anitos o mais velho, era já hora de serem batizados. E haveriam de fazer a primeira comunhão, se Deus quisesse. Pela amizade que tinham um pelo outro não poderia faltar ao batizado dos garotos.
Quando o meu pai conheceu o Ismael num torneio de chinquilho que o Pombalense foi fazer à Quinta do Conde, estava longe de vir a imaginar que o seu filho mais velho se iria tornar um amigo do peito de Ismael Gúsman. Nesse dia Ismael, que não se esqueceu de tirar a boina galega ao entrar na igreja, rezou pela mãe dele. Assistiu ao meu batizado, partilhou do nosso lanche e à noite bebeu um bagacinho enquanto dava um abraço ao meu pai pelo nascimento do meu irmão mais novo que resolvera vir ao mundo naquele mesmo dia. Tienes alí más um xócio para o Benfica, Augusto! O meu pai sorriu e, sabendo que a minha mãe, embora não tivesse assistido ao nosso batizado estava bem e feliz com o seu novo rebento ao lado, virou de um só gole o seu copinho de aguardente.
Constou-nos mais tarde que no regresso à Quinta do Conde, o Ismael, por não a ter levado à caldeirada, passou a noite toda em casa de D. Laurentina a pedir-lhe perdão.
torneio de chinquilho? qui és esso?
ResponderEliminarAvogi, em certos sítios chamam jogar a malha.
ResponderEliminarE a D. Laurentina...perdoou?
ResponderEliminar"fizeram a doutrina"... o que eu gosto de "ouvir" estas expressões de outros tempos:) Agora anda-se na catequese. :)
ResponderEliminareu nem sei que jogo é! é aquele que se joga na terra e enfia-se um arco dentro de um espeto?
ResponderEliminarkis .=)
E assim nasceu mais um sócio do nosso SLB!
ResponderEliminarVivaaaaaaa...!
Hoje foi um episódio bem feliz. Mais um para o clube campeão
ResponderEliminare ninguém leva uma noite inteira a dizer não...
Pois é, há certas ocasiões em que o pedido de perdão requer muitas horas... : )
ResponderEliminarMas uma narrativa genial e sobretudo para quem é do Benfica.
ResponderEliminarFantástico!
Bem, apesar de ser do Benfica o Ismael parecia-me ser boa pessoa!
ResponderEliminar:)
E de certeza que a D. Laurentina lhe perdoou!
Bom fim de semana!
Que delícia de história, Constantino!
ResponderEliminarTanta coisa boa acontecendo ao mesmo tempo!
:)
Sempre saio daqui com um brilho no olhar.
(pena que não vês)
:))
Grande e fraterno abraço.
Tenha um lindo e abençoado final de semana.
Cid@
Vítor, não te importas que te chame de Constantino, pois não?
ResponderEliminar:)
Olá Vitor
ResponderEliminarTodos nós temos um pouco de Ismael ou Constantino. O essencial é que soltemos as amarras que nos prendem àquilo que julgamos ser inatingível.
Gosto deste Constantino e gosto da coragem de quem parte para essa grande aventura de escrever um livro.
Ficarei atento aos teus passos literários.
Um abraço para ti!
A Laurentina deve ter ficado muito ofendida... uma noite a pedir perdão, não há pecador que aguente ahahah.
ResponderEliminarConfesso que em alguns momentos eu perco o fio da meada, em função dos regionalismos, mas por outro lado, acabo por aprender essas particularidades de maneira bem informal e descontraída, porque é impossível conter o riso por aqui. Sr Constantino Guardador de Vacas e de Sonhos! hehe!
ResponderEliminar;)
Estou com uma lombalgia.- lado esquerdo, acima da anca.
ResponderEliminarEscrevo com uma mão enquanto, com a outra seguro o saco de água quente. Já tomei um adalgur n, mas não senti melhoras.
Perdoa vir assim, com uma mensagem pré-feita. É contra meus princípios faze-lo, apenas o faço por ser uma situação excecional
Ha´algum médico por aí’
Só venho desejar um bom domingo.
bshell
Olá, Vitor!
ResponderEliminarE a saga do Ismael continua - muito bem contada, como sempre - neste capítulo com um final feliz, como quase todos os que me antecederam não deixaram de reparar...Pessoa de boa formação este Ismael, e nós uns grandes malandros...
E já agora sempre te digo que o Vasquinho lá da minha história sempre acabou o curso, juntamente comigo - na Armada - mas há muito que deixámos de tomar conta de turbinas; o mar, agora, vê-se cá de fora...
Abraço amigo; bom domingo.
Vitor
Ai Benfica, Benfica até o Ismael? Não há dúvida que somos milhões :)
ResponderEliminarE a D. Laurentina, terá perdoado?
A pedir perdão à dona Laurentina?!? Pois... :)
ResponderEliminarEsta história é meio auto-biográfica, não é? ;)
Beijocas!