segunda-feira, 19 de setembro de 2011

64. L(u/a)gares



Ligando o Lugar e a Vila, havia uma avenida e havia uma azinhaga, fazendo entre elas um ângulo de noventa graus. A vila crescia a montante da azinhaga, onde já havia prédios e a oriente da avenida. Os prédios da vila subiam da azinhaga até ao cimo e do cimo até ao rio. Ao longo da azinhaga, casas térreas e pátios com os dias contados. No sítio onde a azinhaga se bifurcava, no centro da fisga, mais quintas e algumas barracas. Parece difícil descrever, parece que é coisa com quase cinquenta anos, mas na cabeça dele ainda estava viva a estrutura. De tal maneira ele tinha presente o lugar onde vivia que me fez um desenho. É por isso que eu estou a tentar reproduzir. A jusante da azinhaga, quintas e também, quintas para oeste da avenida. Era a quinta do ti Zé Guimarães, a quinta do Pombal, a quinta do ti António (mais tarde, disse-me ele, descobriu que era a quinta do Teotónio), a quinta do Plantier, um francês há muito radicado em Portugal e outras que ele me descreveu mas que, peço perdão, não tendo a mesma memória, já se me varreram os nomes.

O tio Raul era um homem fino. Não que fosse algum bacharel ou tabelião, isso não. Nem era engenheiro, doutor de leis, médico ou farmacêutico. O tio Raul era corticeiro, talvez o melhor das fábricas do Concelho pois sabia da arte de escolher, quadrar e rabanear como ninguém. E fez a quarta classe com distinção. No seu círculo de amigos havia até gente graúda. E por isso mesmo, raramente o tio Raul passaria mais do que uma noite na pildra por gritar mortes a Salazar e vivas à Rússia. O tio Raul era inteligente, lia como poucos e dizia poesia como mais nenhum. O pior era os copitos, coitado.

Naquele dia vinham os dois garotos, irmãos, cada um com um saco de azeitonas verdes, acabadas de colher. Tinham atravessado a azinhaga, saltado o valado da quinta do Plantier, onde havia um enorme pomar e extenso olival. O caseiro, o ti Manel Francisco, já lhes tinha dito que eles eram os únicos miúdos que ele autorizava que fossem às azeitonas, mas que não dissessem a ninguém. Encontraram o ti Raul, já com um grão na asa, que lhes perguntou o que traziam nas mãos. Olhou os sacos, mirou as azeitonas, tirou um punhado, olhou-as atentamente, voltou a colocá-las no saco, devolveu as azeitonas aos garotos, isto tudo sob o olhar daqueles dois pares de lanterninhas brilhantes, um azul como o mar, outro castanho cor de azeitona madura, de seis e sete anos de idade, chispando respeito pela excelência de tio que tinham. Deu dois tostões a cada um e disse-lhes “Rapazes, não sejam parvos, de pequenino é que se torce o pepino”- Quando o tio terminou a primeira parte “não sejam parvos…”, o que me fez o desenho jura que ambos pensaram que o tio lhes ia dizer, “não deixem roubar as azeitonas!” .  O que seria isso de torcer o pepino?

17 comentários:

  1. ..será que se trata de ser um fruto pioneiro da indigestão ... Quiçá há que dar voltas tortuosas para que não fiquemos a exibir com orgulho o arrotar a pepino ...digo eu...que até nem entendo essa expressão popular :))


    Beijinho da Assiria
    e bom inicio de Semana..

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  2. Ahh, Constantino...como são lindas as nossas memórias de meninos! E aquelas ligadas a lugares e a lagares, são completamnte místicas. Ainda que não sejam nossas e, os lugares, nos tenham sido descritos com um desenho. Sim, porque um lagar todos sabemos o que é.
    Bela memória!
    Que lugar será esse com tantas quintas a jusante de uma azinhaga? Só pode ser no Alentejo!

    Como sempre, cá estão as suas histórias a bulir com as minhas memórias.
    Gostei muito do Tio Raul corticeiro, não tanto por ele ser óptimo a quadrar e rabanear ( esta última actividade totalmente desconhecida para mim ) mas, por ser uma pessoa inteligente que gostava de ler e saber dizer poesia como ninguém.

    A propósito dos vivas à Russia, lembrei-me do meu tio Manel, que era marido da minha tia Gertrudes. Também gostava dos copitos e um belo dia foi para a Praça da República em Serpa, e desatou a gritar: "Viva a Russia e os seus Aliados". Coitado, duvido que ele soubesse quais eram e se a Russia tinha aliados, mas em três tempos apareceu uma ramona e lá o levaram, para grande desespero da minha tia. Só esteve preso uma noite, pois os lacaios da outra senhora devem logo ter visto que ele era inofensivo. Isto é verídico.

    Anda tenho uma história a respeito do Tio Filipe ortelão numa bela horta, aonde eu e as outras mocitas, a pretexto de ir apanhar caracóis, enchiamos a barriga de fruta e depois saíamos com meia dúzia de caracóis no bolso dos bibes. Ele fingia que acreditava. Grande coração aquele!

    Isso do pepino pode ter muitas interpretações, mas se calhar vai ficar para uma próxima, se o meu amigo me permitir. É que este comment já parece um testamento...

    Beijinhos

    Janita

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  3. Passando pra deixar um mega abraço!

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  4. Eu não me lembro se era se "torce" ou se "endireita" o pepino, mas era uma expressão que sempre incomodava a minha imaginação, pensando em mil coisas, inclusive dar nó no pepino. :)

    Adorei as "lanterninhas" azul e castanho.

    bjs

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  5. Mais uma boa estória...
    Nela
    Se me fosse dado a escolher
    que personagem queria eu ser
    ficaria embatucado
    sem saber o que responder

    Mas o Ti Raul...

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  6. Sempre agradável ler estas histórias. Não sei qual dos dois lhe fez o desenho... mas decerto já entenderam o aviso de começarem cedo a serem parvos... :)Beijinho

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  7. Que deleite de leitura.
    Vou ler de novo.

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  8. tem horas em que me sinto estrangeira em meio a nossa (ou vossa) língua portuguesa. Mas em outras sinto-me é humilhada mesmo! Eu que mal distingo direita de esquerda e você me vem com montante e jusante!! Credo!

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  9. leitura agradável que me deixou um sorriso no rosto.

    um beij

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  10. As nossas memórias... são as melhores do mundo!

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  11. Querida Amiga.
    Me perdoe a demora em visita-la
    eu queria ser perfeita para fazer a
    felicidade de todas minhas amizades,
    pois só assim me sentia muito feliz.
    Amo a cada um da mesma forma peço a
    Deus para viver minha vitória que
    certamente Deus tem preparada para mim.
    Uma linda tarde.
    Bejs carinhosos.
    Evanir

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  12. Recordar é viver e fiquei fascinada com estas memórias. Adorei!

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  13. Constantino...volta e meia cá venho eu ler as suas histórias.
    Entro e saio devagarinho, por isso nem dá por mim.

    Agora apeteceu-me falar e vou dizer-lhe duas coisas:

    1ª- ponha-me lá o H no hortelão, se faz favor.
    ( às tantas caiu )

    2ª- já sabia quem era o menino das lanterninhas azuis e agora descobri quem é o das castanhinhas cor de azeitona.

    E com pena me vou, não sem antes o felicitar pelas maravilhosas histórias com que nos encanta.

    Um beijinho e bem-haja.
    Janita

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  14. Nunca percebi bem esse ditado, confesso.. mas está muito bem enquadrado na história.
    Bom fds

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  15. E como elas ficaram boas depois de "curtidas" pelo "Ti Augusto".

    As azeitonas claro...

    Mas será que em vez dos dois tostões não teriam sido duas rodas?

    É que o ti Raul tinha destas coisas.

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  16. @O outro da estória: quando é começas a escrever o teu blog?

    (eram mesmo duas rodas)

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  17. Já eu tentei criar a imagem da vila, a partir das suas coordenadas... e me embrenhei na história, pulei o muro junto, peguei azeitonas, fiquei receosa ao encontrar o "ti Augusto", enfim, virei protagonista, garças a sua forma peculiar de nos envolver no texto.

    Sem falar que a temática, "memória", é a minha preferida. E fiquei imersa nas suas, no que nos contaste.
    É sempre uma delícia e um refresco vir aqui lê-lo, Vítor.

    No Brasil também se usa esse dito, o sentido eu sei, mas a origem e porquê pepino, não.

    Abraço!

    ;)

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