Tenho sono. Tenho muito sono mas por favor não me deixes dormir. Fala comigo. Estas foram as últimas palavras que disse. O jogo de futebol até estava a correr muito bem. Pudera. Do lado de cá estava eu, com quase quarenta anos de idade, uma vida feita de correrias. As poucas pausas nem sei como as aproveitei. Entre o computador e a plateia da Gulbenkian. Nunca me sairá da cabeça aquela bailarina que pela primeira vez vi num pas-de-deux com um bielorrusso acabado de chegar do Bolshoi. Era esguia, linda e vestia um tutu cor-de-rosa. Não havia mulher mais parecida com a bailarina que todas as manhãs me acordava, quando num ápice, às sete da manhã, se levantava da sua caixa de música e me despertava com os primeiros acordes do Lago dos Cisnes. Poucas mais pausas tinha. Almoços de dez minutos, muitas vezes de pé, reuniões extenuantes, directivas difíceis de fazer cumprir, trânsito de manhã e à noite, stress. Do outro lado, um miúdo de sete anos, vivíssimo, audaz, mas ainda sem experiência na arte da finta e do golo. Uma corrida mais acelerada, um pique esgazeado. Golo! De repente aquela sensação de ficar sem braços e sem pernas, o desfalecimento, as frases supra-citadas, a abertura das portas do túnel. E a vertiginosa viagem até lá, até ao fundo, até ao lado de lá, a entrada noutra dimensão. Voltei ! (afinal esta foi mesmo a última palavra). No momento em que voltei para trás, ouvi de novo o som da minha caixa de música. Quem sabe, um dia contar-lhes-ei como é do outro lado, mas hoje não. A bailarina ainda tem um tutu cor-de-rosa.
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