Passeio-me de braço dado com a minha mãe
pela rua onde antes fora uma azinhaga. A nossa azinhaga. Dos valados, onde em
garoto íamos às pichas de gato, raízes doces das azedas e do muro da quinta do
Plantier, só recordações. Impossível era, mais de cinquenta anos depois, ainda
haver vestígios. Depois vieram os prédios, primeiro do lado direito para quem
caminha na direção oeste-leste e depois do lado esquerdo, um dos quais acabou
por ser erigido sobre o pátio onde cresci, sobre o pátio da minha infância. Nos
primeiros prédios ainda moraram, a saber, um colega da escola primária e mais
tarde filho de vereador, um primo meu também e onde se estabeleceu uma
mercearia / lugar de frutas cuja primeira caixeira-dona encontrei por acaso
numa excursão, em Trás-os-Montes. Em Almada é que eu não a via, exatamente há
cinquenta e dois anos. Coincidências do caroço, como dizia uma tia minha, já
falecida. Não me lembro do teu colega,
comentava a minha querida e octogenária mãe e acrescentava, Como é que este rapaz se lembra disto tudo?
quando lhe disse o nome do dono da mercearia e a relembrei que no prédio onde
morou a prima Helena tinha também uma barbearia. Dos donos da mercearia
lembrava-se ela muito bem e até sabia o nome das filhas e dos filhos que eram
muitos. E quando falámos do muro da quinta e de uma abertura que dava da
azinhaga para a mesma, relembramos que as pessoas faziam daquele local uma
montureira onde se despejava toda a espécie de dejetos domésticos a céu aberto,
pois, segundo alguns, no tempo do Salazar é que era bom! Falamos do pátio onde
moramos, das condições difíceis, dos anos sem eletricidade, nem água, nas casas
de banho construídas por nós próprios, da oliveira de esquina que marcava a
zona de casas da zona de barracas, da rua que subia da oliveira, cujo tronco
saía da terra como se forre uma raiz e voltava a entrar em outro pedaço de
terra rompendo o valado, ou melhor dizendo o valado é que lhe caiu em cima, a
rua que subia para Almada e onde hoje há o Teatro Municipal e que passava no
pátio de cima e na casa da madrinha e lembrei o nome dos vizinhos todos, os
nossos, porta a porta, os de fora do pátio, os do pátio de cima e os vizinhos
da minha madrinha. E aqui mãe, lembras-te
o que era? perguntei fazendo-lhe um novo teste à memória. Se me lembro filho, aí não havia nada. Tinha
razão. Era um descampado, um terreiro que já fora da quinta onde hoje está um
jardim e onde os miúdos do meu tempo lançavam os papagaios ou talvez, com mais
frequência, as estrelas, uma estrutura com três meias-canas laçadas no centro em
forma de estrela, de maneira que os extremos ligados com fio uns aos outros,
formando um hexágono regular que depois seria coberto a papel de seda e que
eram mais fáceis de estabilizar e que subiam bem mais alto. A estrela vai alta como o… e lá saía o
palavrão de um ou outro mais simplório, menos educado ou mais menino de rua,
que esta boca, que uma vez se lembrou de dizer um impropério, foi ameaçada de
levar com pimenta na língua e, por isso, nunca mais se atreveu, praticamente
até ser adulto, a utilizar vernáculo nas suas alocuções. E era também o nosso
campo de futebol, onde as balizas eram feitas com duas pedras em cada um dos topos,
onde não havia linhas laterais nem linhas de fundo, o centro e as marcas de
penalti não se marcavam ou não se viam e que, para chutar um castigo máximo, como hoje se diz em futebolês, ou pénalte como se dizia na gíria da
miudagem, contavam-se onze passos a partir do meio da baliza e nem era preciso
haver árbitros. Mudava aos seis, acabava aos doze desde que o último golo
entrasse bem rasteiro e no centro da baliza.
Foi neste terreiro que iniciei a
minha arte de pontapear a bola para a frente, mas o futuro foi aquilo que se
viu. É como se tivesse sido substituído antes do jogo começar.
Nota: Este é o primeiro texto de uma série 21 pequenos contos sobre um jogador de futebol que nunca o chegou verdadeiramente a ser. Ou então não.
Ora Viva, Constantino!
ResponderEliminarDe cada vez que te vejo cá pelo bairro, apetece-me largar um foguete de lágrimas, daqueles que estrelejam mil luzinhas de todas as cores.
Gostei deste recordar o tempo da tua meninice. Podes recomeçar com os teus escritos sempre interessantes, será um grande prazer voltar a ler-te.
E a fotografia? Continua a ser o teu hobby de eleição, Vitor? Ou já chegaram mais netos e vives só para o prazer de os ver crescer? :-)
Beijinhos, cá fico à espera de mais.
Olá Janita,
Eliminarque bom que entraste de novo na "minha casa" :)
De facto continuo a dedicar muito do meu tempo a fotografar e a transmitir conhecimentos sobre este "terrível" hobby nas Univ. Seniores com que colabora. E já são 3 as instituições, daí que o tempo tenha de ser bem gerido.
Quanto aos netos é verdade. Tenho dois meninos e uma menina. Um já passou para o 2º ano (como o tempo passa), o outro tem 4 anos e agora tenho uma menina com 16 meses que estará conosco até setembro do ano que vem, altura em que principio se juntará aos irmãos no colégio.
E vou escrevendo, com um livro de contos a sair em outubro e com várias participações em coletãneas e tertúlias de poesia.
Um grande beijinho. Gostei de te ver.
Janita, onde escrevi 16 meses é 15 :)
ResponderEliminarGostei.São textos muito bem escritos e que reflectem um pouco de nossas vidas.Um abraço!
ResponderEliminarObrigado. Siga-me também em www.predatado.blogspot.com
Eliminaracho que vai gostar.
Um abraço.
Já tinha lido um ou outro artigo isolado.Vou seguir e se for de seu acordo mantenha o alerta de publicações no facebook para uma leitura atualizada. Obrigado e bom fim de semana.Um abraço.
Eliminar