Alguém foi enganado
A
história que vou contar ouvi-a também assim. Para ser mais exato, ouvi-a mais
ou menos assim, pois se quem conta um conto não lhe acrescenta um ponto o
melhor é ficar sossegadinho, já que não faz jus ao provérbio. E é por vezes
neste ponto que se acrescenta, que se dá ou se retira o dramatismo de uma situação,
ora conferindo-lhe uma nota de humor, ora adicionando-lhe um não-sei-o-quê de
pesar. E neste conto não vos irei defraudar, resta saber se o que vos narrar
vos fará rir ou, quiçá, chorar.
Feito
que foi o introito, ou quase, também eu irei meter a foice nesta seara,
opinando que o conto encerra qualquer coisa de trágico. Mais tarde mo dirão se
assim é ou não e isto se assim vos aprouver. Tragédia mundana que é como alguns
sábios a classificam, mas que é cá um dramalhão, lá isso é inegável. Vamos
então contar o nosso conto que foi para isso que fui convidado.
Estava
a internet, ou melhor, o seu uso, ainda em plena aurora e já a máquina de
construir enganos começava a ser oleada. Estudava o Francisco em Lisboa, rapaz
pacato e de boas famílias, se bem que de não muitas posses mas, ainda assim,
havia entrado na Universidade. Cursava Direito, dizia que apesar do seu curso
não iria enveredar por qualquer carreira política, não tinha vocação, o que era
verdade, rapaz de perfil baixo, já que o conto é em português e escusa-se o
anglicismo, ficará para outra ocasião, pronto, era low-profile, seria tão somente um advogado competente, honesto e
trabalhador. Para ajudar a enfrentar a dureza do curso, como qualquer jovem
classe média de hoje, o Francisco tinha computador em casa e, como praticamente
se pode dizer, ter computador é o principal caminho para se estar ligado com o
mundo, então o Francisco tinha também internet. Mas era Francisco um rapaz
normal, o computador era um instrumento de trabalho, consultava códigos, lia
pareceres, revia legislação, aperfeiçoava-se na ética enfim, tudo o que um
jovem estudante de Direito, mas não só, pode ter ao alcance de algumas teclas.
Os seus tempos livres eram semelhantes aos tempos livres de quase todos os outros
estudantes, sextas-feiras de algumas liberdades, por vezes também os sábados, uma
cerveja ou um shot, desculpem, mas
aqui só mesmo o anglicismo transcreve fidedignamente a coisa, de vodka ou
bagaço, mas tirando isso não se lhe conheciam noites de bebedeiras ou outras
más vidas, regressava sempre a casa cedo, os pais não tinham de que se
preocupar.
Mas
alto e para o baile! E se isto que se acaba de ler, apesar da fluência, não é
um corridinho, pode ser um baile mandado pois se quem dita as voltas é o
mandador, aqui o dito chama-se computador, refúgio diário do Francisco, mais ainda
aos fins-de-semana, está agora explicado porque é que o rapaz, apesar de gostar
da farra, regressava sempre cedo para casa e ninguém o podia acusar de vir já
com um grãozinho na asa, se disse antes e se confirma, uma cerveja ou um shot e era tudo. Atinado era ele e
pronto, está o Francisco caraterizado, vamos à ação que até agora foi pouca.
Ora
não se pode dizer que os trabalhos escolares fossem assim tantos ou que o rapaz
se empenhava exacerbadamente no seu curso, porque consulta aqui, leitura acolá,
o que o Francisco mais gostava era de conversar com aquela brasileira simpática
de quem um dia recebeu por e-mail a
sua fotografia de rosto, tipo-passe e, mais tarde, passeando-se como uma
verdadeira garota de Ipanema, olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, pelas
praias do Rio de Janeiro, Ipanema, Copacabana, Angra dos Reis, num corpo
escultural, dentro (?) de um reduzidíssimo biquíni, coisa pouco vista nas
praias portuguesas, apesar do maravilhoso sol do nosso Algarve. Além dos
predicados físicos era culta, educada, meiga e autónoma financeiramente. Dizia-se
moça de posses, órfã de pai, que fora morto acidentalmente num fogo cruzado em
plena avenida Brasil entre gangues rivais. E o mais importante: apaixonada! E
eram tantas as palavras doces, escritas naqueles cibernéticos bate-papos que o Francisco
começara a ver telenovelas apenas para poder sentir o sotaque da doçura e a sensualidade
das palavras batidas naquelas teclas no outro lado do Atlântico. E eis senão
quando, um belo dia que se não sabe se de chuva se de sol, recebe o nosso
Francisco uma passagem de avião só de ida, Lisboa-Rio de Janeiro, oferta da sua
amada, com todo o amor e carinho. Adeus meu pai, abraço minha mãe, adeus também
Faculdade de Direito, adeus Lisboa, ah táxi para que te quero, aí vai o
Francisco rumo à Portela, adeus Portugal, tchau
a todos que o meu destino está marcado, esta é a hora.
Foi
só quando viu, aquela velhinha simpática à espera dele nas saídas
internacionais do Galeão, com um pequeno cartaz que dizia "Francisco,
Portugal! Estou aqui!" que lhe caiu a ficha e lhe vieram à memória as
palavras do pai "Estás aqui, estás a voltar". A bruxa boa, neste
caso, coitadinha e apaixonada, era a vovó. A neta estava a leste. E foi aqui,
com a mesma determinação do mandador que ele terá pensado: palminhas acabou,
mas houve alguém que se enganou.
PS.
Este texto obteve uma menção honrosa na modalidade de Conto nos jogos florais de
2017 da UATI – Universidade do Algarve para a Terceira Idade, sob o pseudónimo de
Padre António Vidigueira.
PPS.
Este é um texto de ficção e totalmente criado pelo autor. Qualquer semelhança com
pessoas, factos e locais cruzados é pura coincidência
Vítor
Fernandes aka Constantino
Palminhas ao ar, que aqui está quem do conto gostou! :)
ResponderEliminarObrigado luisa. :)
EliminarAh, Constantino, a este 'baile' tão bem mandado, qual corridinho do Algarve, lhe atribuiria eu, o Prémio Nobel da Literatura!
ResponderEliminarJá li, reli, ri, voltei atrás, tornei a ler e a minha alma encheu-se daquela velha alegria de outros tempos.
Que bom teres vindo até cá, Constantino!!
Volta sempre e não demores muito.
Um grande beijinho e Obrigada por escreveres assim. :)
Pois é eu bem gostava de mandar mais bailes por aqui mas ando sempre a mil... Tenho escrito pouquíssimo. Vou tentar mais assiduidade mas não prometo :)
EliminarNão publicas os comentários ou eles perdem-se pelo caminho, Vitor?
ResponderEliminarDeixei aqui um no dia desta publicação e até agora ainda não o vi.
Beijinhos.
É estranho. Não só publiquei como respondi. Não sei o que se passou. Um beijinho.
EliminarGostei do texto, da história e de como está escrito
ResponderEliminarMuito obrigado.
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