quinta-feira, 17 de novembro de 2016

228. Aquário (*)



o aquário: Chamavam-lhe chavalo. Era um misto de calão e de gíria em portunhol que se falava naquela povoação fronteiriça. O seu grande sonho era ver o mar. Não admira que fosse desejo de família. Quando nasceu nem hesitaram, pais e padrinhos estiveram sempre de acordo. Haveria de chamar-se Mário. Marinho para os mais íntimos. Chavalo para a rapaziada. Chavalo Marinho como que uma premonição. A vida para ele era uma festa. Todos os dias eram de carnaval. Juntavam-se caretos, fazia-se teatro. O teatro da vida. Veneziano, pois então, que as máscaras não tinham sido desenhadas para menos. Ele era sempre o protagonista. Montou o seu espaço. Chamava-lhe, sentimentalmente, o seu aquário. A comédia da vida, junto ao mar. Ou junto a um sucedâneo, por falta daquele. O seu aquário. Dele brotavam bolhas oxigenadas como que balões de festa ou respiração de peixes. E nem os dragões escondidos nos mentideiros como se de uma tourada sem touros se tratasse conseguiam arrefecer as águas. Eram dragões de fogo fátuo, efémeras lavaredas cuja água do seu oceano, o aquário de Chavalo Marinho facilmente extinguiam.

ele e os outros: Chavalo Marinho valia por toda a companhia - era o encenador e o ator principal - travestia peixes-macho em peixes-fêmea , fazia anémonas parecerem medusas e cantava em falsete quando a baleia branca faltava aos ensaios. Os outros eram peixes, dragões e ervas subaquáticas. Tudo para ele era mar.

o drama: Tudo aconteceu de repente. Serafim, o pai,  bêbado que nem um cacho estava possesso.  A taberna estava fechada. O delirium tremens apoderava-se-lhe dos músculos. Tinha de beber. Invadiu o teatro, introduziu a cabeça no aquário e sorveu-o de um só gole. Engasgou-se com a cabeça de um robalo errante, uma medusa cobriu-lhe a cabeça. Continuaria bêbado mas não seria careca.

epílogo: Marinho acordou. Lá fora relinchou Pégaso o seu amigo equídeo, mas não alado, era real e não marinho e o pai não estava bêbado, nem careca. Tomou o pequeno almoço e foram à pesca. No rio. O mar ficaria para mais tarde. Perguntou-lhe doce e desconfiadamente:
- Papá, os dragões existem?



(*) Não encontrei na net o quadro de Agostinho Santos de onde fiz a leitura supra. Fica outro da sua interessante obra.

1 comentário: