Frágil
mocidade
Outros tempos, outros usos. No entanto, pouco
deverá ter mudado na mentalidade do ser humano. Nada, diria mesmo, no que
respeita a sentimentos, a paixões, a inocências perdidas. A avó, crítica feroz
de toda a modernidade, casara grávida sem ninguém saber, a não ser os seus
próprios pais. Mais tarde ameaçava esbofetear o primeiro ou a primeira que lhe
jogasse isso em cara. Severa no porte, era a última a sentar-se na cabeceira da
mesa, desde que enviuvara e, mal chegava, logo a família se punha em pé para a
receber. Depois sentava-se, sentavam-se os outros e agradeciam a Deus mais uma
refeição. Não se comia antes de se rezar, nem ninguém se levantava da mesa sem,
divinamente, agradecer a refeição.
Dona Maria Amélia, Melita na intimidade, nasceu
numa família remediada da serra algarvia. Os pais eram rendeiros abastados, em
abono da verdade, o pai. A mãe, senhora de muitos dotes, era mulher de casa,
tocava piano, instruía a criadagem,
fazia as contas da casa, coisa rara naquele tempo e bordava, dedicando a
maior parte do seu tempo ao enxoval das filhas. Os lençóis de linho, bordados
por ela, brilhavam no meio do mais fino bragal. Todo o dia metida em casa mas,
mesmo assim, não menos atenta, as
ausências de Melita nunca lhe passaram despercebidas. Ir ao poço ao cair do
dia, não ficaria bem, se não fosse acompanhada de Genoveva a fidelíssima criada
e na carroça do Manuel Penteado, o cocheiro que já fora dos seus pais. Nada poderia acontecer à sua filha.
Dona Maria Amélia, tinha os olhos rasos de
lágrimas. Uma mulher de sessenta anos chorava com o daguerreótipo de sua mãe
encostada ao peito. Lembrava-se dos seus vinte anos, da sua mais pura ingenuidade,
da fragilidade da mocidade de então. Tinha ido na conversa bonita, quase
poética, do seu amor de uma vida. Ildefonso tudo lhe prometera, mas a promessa
de que ela seria a mãe dos seus filhos caiu-lhe no mais fundo do seu íntimo. E
nem Genoveva, nem o cocheiro, que se entretinham um com o outro, evitaram o
inevitável. Depois, Ildefonso partiria, emigrando sem dar água vai, nem água vem.
Apenas um telegrama quando já se albergara por terras de França. Os pais de
Maria Amélia, socorreram-se de um primo afastado, um tipo que embora fosse um
pouco "poucochinho" e fraco de tino, tinha algo de seu por generosa
herança, que garantiria qualquer coisa
que se visse a Maria Amélia. Ninguém saberia, nem soube, que o pequeno Afonso
não era filho do primo Manuel do Ó. Dona Maria Amélia chorava agora agarrada à
imagem emoldurada da senhora sua mãe. Não. Sandra não sofreria a mesma
humilhação que ela. Se a sua neta quisesse ter o bebé que o tivesse. Afinal as
fragilidades da mocidade eram iguais às do seu tempo, mas ela, apesar de toda a
sua austeridade, não tinha já nada a ver com aquela bonita bordadora que um dia,
para salvar a honra do se sua casa e a reputação do seu remediado e prestigiado
marido, que cofiava o bigode em salões dançantes e em bordeis de espanholas a
fizera casar com o já falecido Manuel do Ó, seu primo e pai de seis dos seus
sete filhos. Que Deus lhe tenha alma em
descanso.
©Vítor Fernandes
30/4/2015
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