domingo, 14 de julho de 2013

211. 14 de Julho



Não. Não havia outra hipótese. Ele sairia, vestiria umas calças de ganga e uma t-shirt, de preferência estampada com o rosto de Che Guevara, já tinha comprado uma cartolina na papelaria do senhor Hipólito, pintado as palavras de ordem, ou melhor, a palavra de ordem, um estrondoso RUA! com maiúsculas e ponto de exclamação e pregado um pau para ostentar o seu cartaz bem alto. Haveria de aparecer nas fotografias dos jornais e nas imagens da televisão. Até porque aquele RUA! não era um RUA! qualquer. Estava escrita, ou melhor, pintada com uma trincha grossa, com tinta de cor vermelha escorrendo, como se tivesse sido pinchada a sangue.

Foi com o trabalho de casa completo que se foi deitar. A manifestação seria só amanhã da parte da tarde e, embora o tempo ameaçasse chuva, talvez lá pelas três da tarde, a hora em que estava prevista começar, houvesse uma aberta. Vestiu o pijama de verão, calça e casaco de seda que a esposa, uma francesa de sociedade, que tinha conhecido numa sessão cultural na Alliance Française, não o queria ver de menos, o quebra-luz preparado para cobrir os olhos, o que lhe garantiria um sono descansado. Sophie que aproveitava o sossego da noite para escrever os seus poemas de cariz erótico, uma vez que outros não se lhe discorriam, pois mesmo que começassem de ingénuo modo, a luxúria, mais verso, menos verso, tomaria conta do poema, ainda não tinha apagado a luz da escrivaninha e isso incomodava-o. Puxou o fino lençol, ajeitou o quebra-luz aos olhos, tossiu apenas para se fazer notado ou seja para fazer notar a Sophie que se estava a deitar, cobriu-se, colocou-se de lado, como que costas para o lugar onde Sophie se deitaria e adormeceu, não sem antes fazer uma antevisão mental do que os colegas, no dia seguinte lhe diriam do seu fervor revolucionário. Sophie deitou-se logo a seguir.

A manhã acordou chuvosa. Da cozinha inundava-se-lhe o quarto com o cheiro a torradas e a café acabado de passar. Um aroma a doce de tomate misturava-se com o dos ovos fritos havia pouco. Sophie apareceu-lhe à porta do quarto envolta num roupão de seda vermelho, branco e azul. Sorriu-lhe e deixou cair o roupão sob o qual se descobria uma nudez alva e jovem. Trauteou a Marselhesa e aconchegou-se ao marido. Passaram o dia a comemorar a tomada da Bastilha. 

5 comentários:

  1. Muito lindo este texto numa homenagem à tomada da Bastilha, mas eu já estou como a nossa Amália cantava:

    "Não namores os franceses
    Menina, Lisboa,
    Portugal é meigo às vezes
    Mas certas coisas não perdoa
    Vê-te bem no espelho
    Desse honrado e velho
    Que o seu belo exemplo atrai
    Vai, segue o seu leal conselho
    Não dês desgostos ao teu pai

    Lisboa não sejas francesa
    Com toda a certeza
    Não vais ser feliz
    Lisboa, que ideia daninha
    Vaidosa, alfacinha,
    Casar com Paris
    Lisboa, tens cá namorados
    Que dizem, coitados,
    Com as almas na voz
    Lisboa, não sejas francesa
    Tu és portuguesa
    Tu és só pra nós

    Tens amor às lindas fardas
    Menina, Lisboa,
    Vê lá bem pra quem te guardas
    Donzela sem recato, enjoa
    Tens aí tenentes,
    Bravos e valentes,
    Nados e criados cá,
    Vá, tenha modos mais decentes
    Menina caprichosa e má"

    Por estas e por outras, vai até Mértola no Alentejo, que é impossível não amar,e delicia-te com as imagens! Como não sei colocar links nos comentários, ou vais à minha página do FB, ou aqui:

    https://www.facebook.com/video/video.php?v=323563257777369

    Agora, países aparte, aplaudo a tua iniciativa de numa de "Europa Unida", dia 14 de Julho, fizeste muito bem em lembrar - numa estória tão linda - essa data histórica! :)

    Beijocas, Constantino!

    PS. Tens o meu livro guardado? Ainda bem!

    Janita

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  2. Pus ontem consegui pôr a leitura em dia...uns capito gostei e este está magnífico.

    Estás de "vacances" ou numa de "SOS Avós"?

    Beijos extensíveis à família

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  3. Adorei a narrativa deste texto/homenagem.
    Gostei até do nome do proprietário da papelaria (Hipólito, é também o nome do meu pai) :)

    Beijo

    Sónia

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  4. Caro Vítor,
    Vi consiglio di leggere la mia lezione di scrittura creativa "COMO ESCREVER POESIA ERÓTICA".
    Saluti,
    Architteto Dolce Filiberto di Savoya, PhD

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