segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

193. O chilique de D. Micá



“Confessou-se D. Bonifácio d’Assunção a Frei Bento mas do que ele falou nada se sabe. Apesar de estarmos a falar de um fantasma, padre é padre e o segredo da confissão faz parte das leis eclesiásticas. Caso contrário, nem nos fantasmas as pessoas poderiam confiar. O que se sabe é que D. Bonifácio não pareceu vir nem mais nem menos tranquilo da capela da mansão, já que todos que têm estado a escutar a minha história, também perceberam que D. Bonifácio não se perturba por “dá cá aquela palha”. Nem com pouco nem com muito pois não se podem considerar desprezíveis e não credores do mais alto respeito, a tremenda trovoada que nessa noite se fez sentir, as músicas provenientes não se sabe de onde, entre as quais samba brasileiro, a presença da falecida Antonieta e a confissão ao fantasma que era, e ainda o é, Frei Bento Patinho. Foi com uma cara que não demonstrava emoção que D. Bonifácio transpôs as portas da capela. Apenas Aristides detetou algo de diferente no patrão, pessoa com quem privava diariamente, desde que tomou a seu cargo a direção da luxuosa viatura do nobre. Acabou então D. Bonifácio submetido a um inquérito quase policial, o que é bom para a nossa história pois que com Aristides ele vai abrir-se. Era a única pessoa com quem ele confidenciava, desde há vários anos, antes de ter entrado na sua vida a presença quase invisível, diria mesmo translúcida e alva, de Frei Bento que, por ser isso mesmo, um fantasma, nada revelará que o possa por em questão. A não ser que outro, ou outros fantasmas, o façam cair em tentação.

- Bonifácio – começou por dizer Aristides numa intimidade de tratamento só usada quando se encontram a sós – há alguma coisa em que eu te possa ajudar? – questionou-o logo de seguida.

- Infelizmente, não – respondeu resignado D. Bonifácio e continuou com o mesmo ar impassível que todos conhecemos – coisas comigo e com Antonieta que ficaram mal resolvidas.

- Desconfianças antigas, amigo? – tentou tirar alguns nabos da púcara, Aristides, não que fosse curioso, apenas para que a conversa não esmorecesse.

- Na verdade meu caro Aristides sinto-me desconfortável – respondeu-lhe, com ar de alguma consternação, D. Bonifácio. – Hoje, quando recebi aquela pequena caixa, tinha a certeza que a noite iria ser de muito desconforto. E não me refiro à tempestade. – Frisou o nobre D. Bonifácio de Assunção, para que o seu bom amigo Aristides ficasse ciente de que o desconforto a que se referia não era de caráter físico.

- Por isso te perguntei se te podia ajudar. – Insistiu Aristides.

- Vou então dizer-te meu velho Aristides – adjetivou-o D. Bonifácio como se não fossem ambos homens já com alguma idade e, provavelmente, quase a mesma. E continuou. – O que mais me deixa com alguma urticária – pigarreou e deu um leve sorriso, um pálido sorriso, acrescento – é a matraca.

Aristides, aqui sim, ficou desconcertado. Esperava tudo menos enigmas. Ele que já tinha de aturar conversas que sempre achou fruto da imaginação do seu patrão e amigo, com fantasmas, não esperava que o seu velho amigo viesse, num momento destes, com enigmas. Por isso, perguntou, usando um tom de admiração:

- Matraca???!!!!

- Exatamente, a matraca – confirmou Bonifácio. E acrescentou, com um sotaque bem britânico – in the flesh.

Foi o suficiente para que Aristides não tivesse dúvidas de que o patrão estava passado. Saiu de repente, apenas dizendo «um momentinho» e voltou logo de seguida com um copo de água com açúcar. E novamente, depois de quase obrigar Bonifácio a beber o que o velho nobre achou perfeitamente inusitado, já que não dava sinal de nenhum nervosismo, antes pelo contrário, quem estava nervoso era Aristides, o que aliás fez com que Bonifácio lhe ripostasse, «ouve cá, Aristides, quem está nervoso és tu, este copo de água com açúcar não seria para ti?» e ele lhe tivesse respondido «é verdade, tens toda a razão» e pedindo de novo que aguardasse um momentinho saiu e voltou com um copo de água com açúcar para ele próprio, contava eu, novamente Aristides voltou à carga:

- Uma matraca de carne e osso???!!!

- Exatamente – voltou a dizer D. Bonifácio que parece até que gostava de começar as frases com exatamente, – essa D. Micá, uma matraca a contar histórias. E o pior de tudo – acrescentou – é que, se calhar, é capaz de estar a contar a minha história à frente desse mais do que inqualificável, Eduardo Aragão”.

Neste momento, D. Micá parou de contar a história que ela própria havia iniciado há alguns serões atrás e levou uma mão ao peito, cambaleando ligeiramente. Olhou para todos os lados e deu de caras com Eduardo Aragão. Eduardo, o amante de Antonieta, história de um amor proibido que ainda vos contarei, retomando a lebre que levantei há algum tempo, escutava impávido e sereno, acariciando o seu inseparável copo de whisky, enquanto os outros ouvintes ficavam baralhados com aquela mistura entre os personagens, quiçá fictícios, pois de D. Micá, que é uma exímia contadoras de contos cor-de-rosa tudo é de esperar, e as pessoas reais, de carne e osso como ela mesmo, com sangue a correm-lhe nas veias em vez do tão desconhecido quanto incontornável vento que faz esvoaçar os véus dos fantasmas. Ao fundo da sala, porque ninguém estava em condições de balbuciar uma palavra que fosse, estupefactos que ficaram, sem saber como reagir ao epíteto de “matraca” com que D. Bonifácio classificou a D. Micá, presidente de uma Fundação, a contadora da sua própria história, estava Eduardinha com uma bandeja na mão, com várias canecas de leite magro com chocolate, quentinho como a época o exigia, que ela própria, D. Micá, num grito estridente já a rondar o histérico, chamou:

- Eduardinha, traz-me um copo de água com açúcar, que ainda me vai dar um chilique.

E ato contínuo caiu para o lado. Tinha-lhe dado um chilique.



3 comentários:

  1. Meu bom amigo, não estou zangado consigo... mas apenas esmagado pela espuma dos dias, pelas vagas de más circunstâncias e tsunamis de ameaças...

    Um dia retomarei as suas saborosas escritas

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  2. Olá, Vitor!

    Coitada da pobre senhora Micá, com uma Edurdinha criada tão lenta...

    Um abraço
    Vitor Chuva

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  3. Confissões entre os pecadores do Clero aparte, mais chilique menos chilique, o da D.Gaja Micá é que me deixou vingada!
    Até os padres já lhe conhecem a manhosice da matraquice!

    Bem feito!! lol


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