quinta-feira, 30 de junho de 2016

226. A história de um passarinho

A história que vos trago hoje foi escrita a partir de uma proposta feita pelo José Teixeira o nosso professor de Teatro no Centro Social e Paroquial Padre Ricardo Gameiro na Cova da Piedade, Almada. A ideia de ter utilizado uma paisagem russa e o nome dos personagens serem em russo, surgiu-me devido ao facto do meu neto Daniel ter começado, por conta própria, a aprender o alfabeto cirílico e ser capaz de ler palavras escritas em russo. Portanto dedico o conto ao Zé Teixeira e ofereço-o ao Daniel. Convosco, partilho-o.




птичка, o passarinho

Em tempos que já lá vão, na longínqua Rússia, junto ao mar Cáspio, havia um passarinho chamado птичка que era um passarinho rabilongo e que sempre habitou nos pomares do senhor Gervasio Gervasovich. Andava sempre de raminho em raminho, de figueira em figueira, nos ramos das oliveiras caspianas, tendo chegado mesmo, em tempos um pouco mais atrasados, a habitar um apartamento, a que ele chamava, orgulhoso, "мое гнездо", no quarto ramo a contar de cima do grande diospireiro no quintal das traseiras. Mas o senhor Gervasio Gervasovich modernizou-se muito. E um dia, quando a folha do limoeiro começou a encarquilhar e as ameixeiras e os pessegueiros se encheram de вшей que é com quem diz piolhos, o senhor Gervasio Gervasovich foi à drogaria da великая битва улица ou seja à Rua da Grande Batalha, comprou pesticidas para matar a moléstia e depois limpou muitos ramos e muitas folhas das árvores e, mesmo no meio do pomar, fez uma grande queimada. O rabilongo птичка, a quem muitos meninos também chamavam o ряби que como todos sabem quer dizer Ondinhas em russo, porque voava sempre como que fazendo ondas no ar, acabou por adoecer. Primeiro com o fumo que respirou da queimada que o ia intoxicando por completo e finalmente com o mal que lhe adveio dos químicos do senhor Gervasio Gervasovich. Até que, quase sem forças para voar, caiu desfalecido no meio do pomar do senhor Gervasio Gervasovich. Quando o homem viu o птичка ali caído, teve alguma pena pois que até tinha sido um neto que lhe ensinara o nome e pensou que ainda iria sentir saudades do seu belo canto. Mas já não havia nada a fazer... E pegando-lhe por uma asa jogou-o cerca fora para cima duma montureira. É então que a gaivota чайка, ao ver ali o птичка, a respirar tão mal, resolveu que hoje a sua refeição não seria de peixe mas sim de um belo bife de passarinho rabilongo. Prendendo-o no bico deu duas voltas no ar, e eis, senão quando, suprema das guloseimas, avistou, quase ao rebentar das ondas da praia das costas do Mar Cáspio, um grande cardume de arenques bebés. A babar do seu curvo bico e voando picado em direção ao cardume, deixou cair o passarinho птичка  no meio daquelas vagas de alva espuma. Logo ali se formou uma conferência de peixes que, ao avistarem птичка  e verificando que não se tratava nem da sua inimiga gaivota чайка, nem qualquer uma das suas irmãs, se reuniu à volta do rabilongo. Todos opinaram, pois todos achavam que eram importantes na conferência suprema de peixes já que todos eram conhecidos pelos seus nomes próprio, o carapau ставрида  e a sardinha  сардина, a lula кальмар  e o goraz лещ, a pescada хек  e o pargo порги. Mas foi o tubarão акула, de altivo porte, que fez com que todos os outros se afastassem à sua chegada, quem ditou a sentença: "Tal como vocês, seus peixes minúsculos, dizia ele que era tubarão, não gostam de ser comida das aves, também nós peixes não devemos devorar passarinhos. Assim determino que esse rabilongo moribundo, que nem sequer está morto e quem sabe ainda se venha a restabelecer, seja já enviado para terra". E foi assim que uma tainha,  de seu nome кефаль se propôs a fazer de prancha e, colocado que foi o passarinho птичка em cima da tainha кефаль pelo focinho inteligente do golfinho дельфин, lá foi o passarinho птичка  a surfar na tainha кефаль até acabar, ainda mais débil do que estava antes, nas areias da praia caspiana.  Mas o destino tem coisas que nos surpreendem e se isto que vos estou a contar não fosse verdade, até parecia mentira. Um menino russo de pele muito branquinha e cabelo loiro, que por ali estava com os seus progenitores, ele russo, ela ucraniana, a brincar no areal depois de mais um dia de aulas, em russo está de bom de ver, ao ver uma coisa estranha na areia, aproximou-se e ouviu um piar muito sumido; tão fraquinho, tão fraquinho era o piar do птичка que o menino nem acreditava que ele pudesse estar vivo. Aos gritos de Отец!, Мать!, pai, mãe, pai, mãe, por favor, Помогите! Socorro! acudam (os putos russos fazem tanta chinfrineira como os putos portugueses), conseguiram os três pegar no passarinho птичка, enfiá-lo num casaquinho de malha vermelho que a mãe tinha feito para o pai assistir no sofá aos jogos do Sport Mar Cáspio e Benfica e dar-lhe algum calor. Chegado a casa, o Aleksandr Alexandrov, assim se chamava o menino, ajudou os pais a secarem o птичка, deram-lhe água por um conta-gotas, tendo contado até dez em russo, один, два, три, четыре, etc, já que o pássaro apresentava sinais de desidratação evidentes e quando este pareceu querer retomar a respiração esmagaram alguns grãos de soja e esfarelaram um pouco de pão de trigo que tinha sobrado de véspera e estava ótimo para esfarelar. Horas depois, o nosso querido птичка já comia e já voava. Três dias depois de tanta preocupação, cuidados e afeto, quando tudo indicava que птичка  já seria o pássaro mascote da família, o passarinho rabilongo bateu asas e saiu janela fora. Todos os dias, o bom do Aleksandr Alexandrov vai ao cimo do morro perto de sua casa,  mal a campainha da escola toca para a saída, olhar para a praia para ver o seu птичка   a voar e a brincar com os tubarões.


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