terça-feira, 15 de março de 2016

224. Vinte de março de um ano bissexto ou a primavera dentro de nós



Naquele dia, Jorge não acordou muito católico... a festa da véspera caíra-lhe na fraqueza pois que, por mor de um trabalho urgente e demasiado exigente, passara o dia inteiro apenas com uma hamburguesa de tofu no estômago. Saíra do escritório diretamente para casa do Pedro, onde os quatro da vida airada, companheiros de muitas peripécias e aventuras enquanto estudantes, o Pedro, o Aires, o Timóteo e ele iriam comemorar qualquer coisa que a sua cabeça, hoje demasiado confusa, não se conseguia lembrar. Bebeu álcoois das mais diversas origens e proveniências, destilados misturados com fermentados, umas tapas de requeijão e outras com trufas francesas em molho de gengibre e nozes, jogou uma partida de bridge até que Madalena, a namorada de Pedro, chegara com umas amigas, oh-lá-lá de aspeto e ousadia, e mais não se poderá contar desta noite de todos os pecados, terá de ser o próprio leitor a imaginar, se é que não está já a congeminar luxuriosos desfechos. Jorge apenas jurava que não podia ser por causa de uma noite mal passada, ou bem, conforme a perspetiva, pois dessas, iguais ou semelhantes na forma e nos conteúdos, tinha ele conta que chegasse, ultrapassando em muito as tabelas da tabuada convencional. O que o martirizava era que na cabeça dele lhe não ocorria às quantas andava, que é como quem diz, não sabia nem de data nem de hora, pois que se vivesse no campo, em vez de num arranha-céus nas Laranjeiras, isso lhe não escaparia. O galo da tia Anastácia se encarregaria de o avisar. Que raio de coisa haveria agora de lhe ter vindo á ideia... o galo da tia Anastácia há muito tinha sido consumido numa cabidela deliciosa. E quanto mais no seu cérebro se discorria em desfile, numa confusão de sambódromo, pratos, ementas e petiscos, maiores eram as voltas que se lhe dava no estômago como se fossem de bêbado as suas sensações. Abriu a janela para tomar ar e a luz radiosa de um dia azul, embora fresco de Março, feriu-lhe de imediato o olhar. Lá fora, onde a jornada ia a meio, um misto de odores a gasóleos queimados do intenso tráfego que povoa o eixo norte-sul e o cheiro enjoativo a jasmim que desponta em canteiros e beirais, preparava-se para ser o detonador. Sem mais delongas, correu desesperado para  a casa de banho, colocou a cabeça quase dentro da sanita e, num impulso convulsivo, expeliu de dentro dele, do mais profundo das suas entranhas, um ramo de malmequeres viçosos, de um branco natureza puro, pontuado no centro a amarelo-gema, como se cada cálice de malmequer fosse uma chávena de leite com vapores de neblina. Todos os anos isto lhe acontecia e o sonho, nesta noite de transição, embora de caraterísticas muito variadas, era recorrente. A primavera despertava sempre de dentro dele onde apenas o bouquet floral variava, mas este ano viera um dia mais cedo por ser um ano bissexto. E lembrou-se, escondido num sorriso dissimulado pelos olhos entreabertos e feridos de primavera, de que no passado regurgitara um ramo de rosmaninho.

6 comentários:

  1. Olá, Vitor/Constantino!!

    Será que o Jorge, para além de nos querer avisar da chegada da Primavera, está a enviar uma mensagem para aqueles que como eu se ausentaram do "livro das caras" e não têm quem os avise dos aniversários, mormente, dos amigos fujões?

    Não tenho bem a certeza, mas acho que tu aniversarias lá mais para os dias quentes...quem será então?

    O ramo de malmequeres, regurgitado, é do mais lindo que já vi...Abençoado!

    Um beijinho meu Amigo, já sentia muitas saudades! :)

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    1. Olá Janita :) É apenas um prenúncio de primavera. Eu lá continuo no livro de caritas, faço daquilo a minha casa da fotografia e da escrita, para além de algumas outras banalidades. Pois é verdade o meu aniversário é em Agosto, quando o calor aperta. Beijinho, gostei de te "ver".

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  2. Gosto sempre de ler estas tuas histórias... sempre muito imaginativas! :)

    Beijocas

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    1. Obrigado Teté. Eu tenho andado um bocado fugidio. O FB também me "roubou" um pouco este espaço.

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  3. veio mais cedo mas este ano haverá, igualmente, um aroma a rosmaninho...
    na certa...

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    1. Chegou ontem num dia muito bonito por estas bandas. Hoje trouxe poesia e granizo :)

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