terça-feira, 21 de agosto de 2012

163. Enganar guarda-redes





Eugénio. Ainda me lembro dele como se fosse hoje. A malta chamava-lhe quase sempre Ogénio. Aliás, ele próprio, quando lhe perguntavam o nome, dizia chamar-se Ogénio. No meu bairro habitava muita gente com pouca formação escolar, como aliás era comum no país inteiro, por isso não era de estranhar que tivesse como vizinhas a Ofrásia, a Estrudes e até a Esprança. E cada um deles, independente do seu nome, cada um deles tinha o seu sonho. A Ofrásia sempre sonhou ser cançonetista mas, coitada, quando abria a boca as palavras articulavam-se menos do que as de Hermínia Silva quando caricaturava, nas suas populares entradas em cena, no Maria Vitória ou nos filmes do Lopes Vieira. Acabou sendo a melhor cerzideira lá da rua, apanhava malhas em meias como nenhuma outra e, com o seu pé-de-meia, abriu uma oficina de arranjos, ela era fazer bainhas, ela era apertar saias ou alargar outras e até arranjar mangas de camisas ou casear braguilhas de calças. Já a Estrudes, que ainda andou no segundo ano da Escola Comercial, mas teve que desistir quando o velho Sarafim, seu pai, viúvo e trolha de profissão, um dia desapareceu sem deixar rasto, deixando a miúda de 12 anos aos seus próprios cuidados. Começou a lavar escadas mas, felizmente, ao crescer, tornou-se uma bela moça e cobiçada, até que um senhor bem-posto na vida, já ela ia bem nos seus dezoito anos, fez caso dela, saiu do bairro, um dia apareceu lá a conduzir um belo espada e quando a cumprimentaram, as velhas amigas, «ó Estrudinhas isto, ó Estrudinhas aquilo», ela ripostava, «Estrudes não, Gertrudes, que eu agora sou uma gaja fina» e acabavam todas à gargalhada. Da Esprança fala-se pouco, até porque nunca foi rapariga de muitas confianças, quando conversava com as vizinhas era apenas no lugar de frutas do ti Toino, falavam do belo olho das couves, da frescura do feijão verde, das batatas que se desfaziam ao cozer e finalmente bom dia, boa tarde, que a Esprança não era de muitas falas. Quem nunca mais apareceu foi o velho Sarafim.

Mas eu comecei esta história para falar do Ogénio e não das minhas vizinhas, isso é conversa para calhandreiras, eu sou um mero contador de histórias, chamo-me Constantino e estou aqui para vos deixar testemunhos. O sonho do Ogénio era ser jogador de futebol e habilidade não lhe faltava. Quando, entre a rapaziada, se tratava de escolher equipas o Ogénio era sempre o primeiro a ser escolhido, dado o seu jeito inato para o pontapé na bola. E, para que conste, o Ogénio jogava descalço. Naquele tempo, a miudagem não tinha as condições que hoje os jovens têm, pavilhões, ringues de tartan ou de outros sintéticos e outras modernices e, diga-se de passagem, aqui o vosso contador de histórias acha muito bem. Jogávamos nos pátios, no intervalo entre prédios, pracetas e quintas onde não era pouco frequente termos de pisar os cardos para podermos fazer rolar a bola. E, de entre todos os que davam o pontapé na chincha, era o Ogénio quem se destacava. É claro que os putos de doze anos cresceram, cada um seguiu a sua vida, nem todos conseguiram ir ao encontro dos seus sonhos, como não o foi a Ofrásia, como não teve tempo de os ter a Estrudes e como nunca se soube se alguma vez os teve ou não a Esprança porque só falava da textura dos nabos, do viço das nabiças, da flor dos grelos, dos alhos chochos e da cebola grelada e bom dia ou boa tarde, conforme a hora do dia. Mas o Ogénio conseguiu o seu desiderato, veio a ser jogador de futebol, o problema dele não era a bola, o problema dele não era o pelado ou o relvado, o problema dele não era o elástico dos calções, pois acostumado a andar de calções atados com um baraço ou apertados com uma fita de nastro ou com um elástico de cuecas enfiado, comprado na capelista da dona Júlia do quarente e sete, por acaso uma boa senhora que até tinha uma filha bem engraçadinha, estava ele. O problema do Ogénio eram as chuteiras, para ele autênticos OVNIs, coisa que nunca tinha visto na vida e que nem sabia se saberia jogar com elas, resumindo, um suplício. Quem teve o privilégio de contar com o Ogénio nas suas fileiras foi o Atlético do Pragal, mas teve de haver condições e compromissos, parte a parte. O Ogénio podia treinar descalço mas nos jogos era obrigado a jogar com chuteiras, assim o exigiam os regulamentos e sem isso, nada feito. Ogénio anuiu e no primeiro dia que calçou as botas, um colega da equipa, para não o magoar, já que Ogénio fazia mesmo falta à equipa e não era conveniente que amuasse disse-lhe, baixinho e com cuidado, que ele tinha calçado as botas ao contrário. Ogénio, colocou o dedo em frente ao nariz e aos lábios e ripostou «chiu, isto é só para enganar guarda-redes».

25 comentários:

  1. Pelos vistos não fazia juz ao nome... Não sou desse tempo, mas também jogava à bola na rua, sendo que a nossa única preocupação era perto das 18:00, quando começava a chegar um ou outro carro. A mesma rua onde hoje é preciso matar para arranjar um lugar para estacionar. Abraço!

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    1. Quando jogávamos na estrada ou nalguma praceta alcatroada, era um olho na bola outro na GNR.

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  2. Continuo a adorar e a delirar com as tuas calhandrices, contadas com tanto detalhe e minúcia que quase consigo visualizar o Ogénio de botas ao contrário:))))

    Beijos
    Manu

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  3. Ou muito me engano, ou o guarda-redes da foto é o nosso contador de histórias. Acertei?

    Será que o Ogénio com toda a genialidade de trocar as botas só para trocar as voltas aos defensores da baliza, não seria mesmo um génio?
    Só não fiquei a perceber bem, porque razão a Esprança só falava da textura dos nabos, no viço das nabiças e na flor dos grelos. Frustrações, ou quê?

    Gostei muito do retrato.

    Beijocas.

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    1. Na foto é o meu irmão Carlos :)
      Há mulheres que só pensam em hortaliça :)
      Beijocas

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  4. Coitado do Ogénio, que me fez lembrar a Gabriela de Jorge Amado, com o seu "Sapato não, seu Nacib!"...

    Realmente, para quem não está habituado, deve custar calçar. Eu que o diga, após as férias quase sempre a chinelar, voltar a enfiar o pé num sapato, em dias de calor, custa! :)))

    Quadrilhice ou não, gosto destas histórias com gente dentro... :D

    Beijocas!

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  5. Grande Ogénio!
    Como sempre, gostei muito do retrato, mas saio daqui a pensar na Esprança de que ninguém nunca mais soube. Gostaria de saber como tinha sido o seu futuro(presente). Provavelmente, o problema é mesmo do nome, porque Esprança também não se vislumbra no nosso futuro neste país.

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    1. Ela ainda não deve ter morrido. Dizem os antigos que será a última.
      Abraço.

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  6. Como estava um pouco afastada estou tentando voltar aos poucos
    novamente tentando digerir o desconforto que estou passando no momento.
    Eu não posso parar muito menos desistir de lutar como sempre fiz.
    E a amizade nos da força sempre para continuar nossa jornada.
    Nessa rapida visite convido você a ler minha postagem
    também dizer se gostou do novo visual da nossa Viagem.
    Linda noite beijos no coração,Evanir.

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  7. Fartei-me de rir e na foto deves ser tu, talvez a tentar imitar o "Ogénio":) mas estavas calçado e à rasca dos pés não?:)

    És genial.

    Beijos

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  8. De regresso das férias vejo que continuas em forma com o Ogénio desta vez, a quem trocaste as chuteiras para enganar o guarda redes!!
    E o nosso Benfica... são uns empatas!!

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    1. Ai as contratações...as dispensas... o treinador... bom o melhor é eu dedicar-me aos contos que de bola não sei nada. Um grande abraço Manuel.

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    1. Obrigado Catarina. Continue a contemplar que eu gosto dos seus olhares.

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  10. Uma prosa de se ler e "chorar por mais".

    Lídia

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  11. As suas narrativas, não nos trazem apenas as suas vivências, ou força criativa, mas trazem também toda uma cultura, uma época e jeitos. Por isso estar aqui é mesmo muito bom, porque vou me apropriando de informações que em nenhum outro lugar eu as obteria, com esse humor e pitada de ficção, Vítor Fernandes, obrigada por isso, amigo!

    Beijo!

    ;)

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    1. Muito obrigado, minha querida. Você é uma gentileza com os seus comentários. Um grande beijo.

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  12. Essa foto faz-me lembrar alguem que eu conhececi em puto, o gajo tinha jeito para jogar à baliza, parece que passou ao lado de uma grande carreira, foi pena, podia ter sido outro Vitor Damas quem sabe? mas na altura um emprego na Lisnave acabou com o sonho e o gajo lá passou o resto da vida agarrado a uma secretária.

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