segunda-feira, 16 de junho de 2014

214. Micá retoma-se mais de um ano depois



Liguei-lhe. Afinal de contas sempre fomos dois bons amigos e eu, homem de palavra, tenho dito e insistido que um dia ainda contarei a sua história. Ou pelo menos tanto quanto sei da sua história. E se ainda não o fiz temos apenas que lamentar o facto de um dia ter somente vinte e quatro horas e não as necessárias e suficientes para que tudo o que engendramos o façamos. Liguei-lhe mais de uma vez. A primeira foi ter ao voice mail. Aliás, não foi. O cliente não tinha voice mail ativo, dizia uma gravação da operadora em entoação radiofónica. À segunda pareceu-me ter ouvido um clique de desligar. Talvez fosse impressão minha, mas fiz um compasso de espera. À terceira atendeu. Já sei que já estão a pensar no cliché que diz que à terceira é de vez. Pois bem. Foi mesmo à terceira e lá estava ele, com voz de quem tinha acabado de acordar. Convidei-o a irmos tomar café à Costa. Verdade seja dita que na Costa mora ele. Desde que se enrolou com uma sexagenária viúva que foi morar em concubinagem com a dita, se bem que ele se não é sexagenário para lá caminha, não lhe falta muito, cabelos brancos já os tem e nem sequer os disfarça, diz que dá charme. Eu moro um bom bocado mais longe mas como quando lhe liguei já estava escanhoado e de banho tomado, lesto me aprontei e ao caminho me pus, percorrendo os, não muitos verdade seja dita, quilómetros nos separavam. Escusado será dizer que Eduardo demoraria mais de meia hora a se me juntar. Deu-me um abraço como se não nos víssemos há anos, o que não me espantou já que estes gestos eram caraterísticos deste meu extravagante amigo de quem um dia contarei a história de vida. E como não podia deixar de ser falamos dos estragos que o temporal e as marés vivas fizeram na Costa, cujo degradado espólio desacorçoadamente contemplávamos, falamos um pouco de política que era uma das paixões de Eduardo, a seguir às mulheres e aos bons whisky de malte escoceses, não pude deixar de ouvir, quiçá pela trigésima vez a história, se bem que desta vez resumida da sua viagem às Highlands, onde terá visitado destilarias e jura ter adormecido por baixo de um alambique. Inevitável mesmo foi falarmos dos serões em casa de D. Micá. Ele não está certo do que terá levado D. Micá a fechar as portas do salão, mas isso um dia esclarecer-se-á. A verdade, verdadinha e aqui não há como duvidar, é que Eduardo, a quem eu pensei que o convidaria para um café no intuito de o apanhar de surpresa, sabia perfeitamente, pois que a via regressar bastas vezes dos pontões de pedra na costa, montada na sua bicicleta, canas de pesca amarradas ao quadro, as galochas enfiadas no cesto das traseiras. Não há dúvidas nenhumas. D. Micá tinha-se dedicado, efetivamente à pesca.