O Sol já se
punha e Marina estava preocupada. Àquela hora o seu homem já costumava estar a
dar a saudação de santas noites no umbral da porta, algumas vezes, diga-se em
abono de Marina e não tanto de Eliseu, com um grãozinho na asa, pois que na antiga
carvoaria do senhor Bartolomeu, hoje um moderno café de aldeia, mas que ainda é
conhecido pela carvoaria, pinga da boa era o que não faltava. De Pias vinham, e
eram despachados, quase todas as semanas um duzentos litros de tinto, hoje já
não em pipas mas sim em garrafões devidamente selados e certificados. Não era
parvo nenhum o carvoeiro, que sempre colocava na mesa ou no balcão um pires de
azeitonas, com orégãos e uma boa pitada de sal, temperadas na hora, que deixavam
as bocas do Eliseu, do Gamito, do ti
João da Burra e mesmo do Dr. Sesinando, numa sequeira de repetir a dose. Por
vezes não eram só dois nem três copos que o Eliseu já levava a mais no bandulho,
mas àquela hora já Eliseu trespassava o portão, com «santas noites, minha
esposa».
Desligou da tomada
o ferro elétrico, pousou-o no descanso para que arrefecesse e debruçou-se no
fogão para cuidar do jantarinho de feijões que já fumegava. Cheirava a carnes
cozidas, mas os melhores aromas vinham de um chouriço de porco preto, de uma
morcela de sangue e de uma moira de Barrancos, já para não falar do perfume da
hortelã da ribeira que inundava toda a cozinha e que, trespassando as cortinas
de fitas, mergulhava agora no alpendre. Se o seu Eliseu não vinha ao isco de
tão eloquente aroma, então era porque alguma coisa lhe haveria de ter
acontecido. Ter-se-ia ele esquecido que hoje era o seu aniversário? Ou então desta
vez abusou, ficou pelo café do carvoeiro, teria já bebido para além da conta,
não se daria por levantado da cadeira, o Dr. Sesinando ou o Gamito,
principalmente este, a contarem anedotas brejeiras, o ti João da Burra a abanar a cabeça e a chamar-lhes pantomineiros, o
senhor Bartolomeu a encher mais um canjirão de barro decorado de S. Pedro do
Corval. Já lá iria ver, era só acabar de arrumar os lençóis no gavetão da
cómoda, tirar o avental, passar água pelo rosto, alisar os cabelos, abaixar o
lume no fogão e seguir para o centro da aldeia. Haveria de dizer-lhe das boas.
Ai diria, diria.
Eliseu não
estava no café do senhor Bartolomeu. Nem lá dentro, onde o calor começava a
ficar incomodativo, nem na esplanada onde uma brisa, vinda do lado da barragem,
convidava a mais um copo e a dois dedos de conversa. Mas não. Hoje nem o Gamito
tinha passado por lá, nem o Dr. Sesinando que fora chamado de urgência ao casal
do agricultor Romão para assistir ao parto de uma bezerra que estava em vias de
correr mal, nem o ti João da Burra o
tinha visto, isso confirmou-o ele mesmo, abanando a cabeça e dizendo para Marina
que o Eliseu ainda não tinha parecido
por lá hoje. O mesmo o confirmaram outros fregueses que, com ou sem azeitonas
retalhadas, bebiam o seu copito, uns ainda encostados ao balcão, outros cá
fora, em roda, entoando modas alentejanas em local onde o cante nunca se
extinguiu. Despediram-se de Marina levando a mão ao chapéu, num ritual que
parecia ensaiado, dado a simultaneidade do ato e ficaram a comentar entre eles,
coisas que já se ouviam dizer, que não há fumo sem fogo, que era fim do mês,
que o moço tinha recebido a féria, aquilo tinha apanhado comboio para Beja,
onde de certeza se fora juntar com uma outra, para uns mulher perdida, para
outros vadia, outros falando numa antiga namorada nunca esquecida, para os
demais a amante. Pelo menos da fama e das bocas do mundo não se livrava, assim se
calhandrava no intervalo entre dois Pias tintos ou brancos frescos, próprio dos
fins de tarde no café do carvoeiro.
Chegou a casa já a noite se cerrava e só tanto
não se notava porque o quarto crescente alumiava com as suas sombras os caniços
do valado, prateava as ramagens do pequeno ulmeiro prantado quase à porta do
quintal e projetava limões a preto e branco na alva parede da casa. Marina, ao
ver o seu homem já chegado, encostado na ombreira olhando o portão por onde era
agora ela que entrava, não conseguiu evitar que lhe escorresse uma lágrima pelo
rosto. Primeiro ficou especada, sem saber o que fazer. Mas alguma fração de
segundo depois correu para ele e abraçou-o pela cintura. Ela não podia crer que
logo hoje, no dia do seu aniversário, o seu homem a fosse abandonar sem água
vai, nem água vem. E ela que nunca tinha acreditado nos rumores e nas
más-línguas estava quase a sucumbir ao teor dos mesmos. Um milhão de
pensamentos lhe percorreram o corpo durante todo aquele tempo de espera mas
agora só a intrigava aquele tarrasso
que o marido trazia pendurado ao pescoço. «Oh homem, onde é que foste descobrir
essa coisa que trazes aí pendurada ao pescoço, valha-me Deus», e benzeu-se. «É
uma máquina fotográfica, novinha em folha. Encomendei-a para hoje, já que
recebia a féria e que tinha de a trazer para te oferecer no teu aniversário. Só
que o Gamito foi buscá-la a Beja e atrasou-se um pouco. Mas até há males que vêm
por bem, como se costuma dizer», rematou. E para se explicar melhor ficaram os
dois a contemplar o bonito pôr-do-sol que poucas horas antes Eliseu captara com
a sua máquina nova.