domingo, 29 de abril de 2012

132. Ismael (48) - O fotógrafo



Ismael Pião tinha um sonho de menino. Não um sonho como o do Tony Carreira mas, de qualquer maneira, um sonho. Talvez se ele sonhasse em voz alta a mãe o tivesse levado a sério. Mas ele sonhava calado, silencioso mesmo e quase sempre a preto e branco. Eu diria mais, Ismael Pião sonhava a preto e branco, 200 ASA. E quando ele, antes de ir para a cama, apagava a luz e o quarto mergulhava na escuridão, entrava direto na câmara escura e não fosse uma pequena luz de presença vermelha, muito sumida, que lhe aliviava os receios, dir-se-ia que os químicos começavam a penetrar-lhe a mente, chegando até a ter flashes que o faziam saltar arrepiado. Mas não era muito negativo o nosso Ismael Pião embora, nem por isso, deixasse de acordar inundado em suores, como se algo lhe escorresse corpo abaixo. Nessas alturas sentia-se como que pendurado numa corda com duas molas da roupa. Foi numa dessas ocasiões em que, apesar da escuridão do quarto, Ismael Pião passou a noite em branco graças a dois refletores que a vizinha do prédio em frente improvisou, ao ter estendido um par de lençóis brancos, numa quinta-feira, dia da barrela em sua modesta habitação, que ele decide revelar a sua mãe, que vestia sempre vestidos de chita, um pouco desbotados como uma cor acabada de inventar por um qualquer Ismael Gevaert ou talvez, muito provavelmente, por Ism Aemoto Fuji (estão aqui ao lado a soprar-me ao ouvido que poderá ter sido Ismael Smith Kodak), o seu desejo, a sua vontade, a sua obsessão, o seu fetiche, a sua queda, a sua inclinação, o seu desarrumo mental pela fotografia. A mãe, coitada, que vivia entre satisfazer todas as vontades ao filho e a realidade nua e crua do dia-a-dia, mormente a hipótese de fazer do seu filhinho um homem, decidiu que ele iria trabalhara para os TLP, que era uma empresa de futuro e bem ligada, se é que isso queria dizer alguma coisa.

O nosso Ismael Pião, temos aqui que lhe chamar nosso, ou melhor, porque já o fizemos antes, continuar a chamar nosso, pois de hoje em diante, quando se falar de fotografia neste livro de histórias sem imagens, nunca mais nos poderá sair da cabeça Ismael Pião, depois de se ter visto enredado em aparelhos telefónicos de todos os modelos, abri-los para ver se por dentro havia espelhos que refletissem a voz dos seus utilizadores, até ter percebido por fim que o som e a luz tinham formas de se propagar de maneiras muito diversas e que se não fossem as perturbações eletromagnéticas em fitas nunca a voz poderia ser registada, ao contrário da imagem que impressionava, isso sim, sais cristalinos de prata bastando que os comprimentos de onda, cala-te que isto não é nenhum livro de física, disse às tantas o narrador ao escritor e este calou-se porque isto não é um livro de física. Finalmente, depois de ter visto que os telefones de disco não tocavam discos, não se assemelhando sequer a uma grafonola, mas sim usavam um discador em forma de disco onde se enfiava o dedo indicador para o fazer rodar, largou postes, fios, troncas, cavilhas, discadores não sem antes ter telefonado para casa e gritado a plenos pulmões para o bocal «mamã vou ser fotógrafo!»

Free-lancer em várias revistas e jornais, viu-se confrontado com os custos do equipamento fotográfico, com a dificuldade que um rookie tem em se impor num espetro que já está ocupado por tubarões e acabou por cair nas garras da Judiciária. Não, não cometeu nenhum crime. O nosso Ismael Pião acabou por arranjar emprego na Polícia Judiciária como fotógrafo de cenas de crime. Mas aquele dia foi fatídico. Ismael Sacadura Flores, o já nosso conhecido inspetor de polícia, acabara de receber um telefonema, que a menina das troncas encavilhou direta para o gabinete policial, antes de continuar o seu crochet, demasiado perturbador para o seu dia de trabalho que acabava de se iniciar. Tinha havido um horrível crime no número 43 da Rua dos Correeiros, num sexto andar onde morava uma menina, cria o chefe de brigada Ismaelix, que usava um bigode à Chalana, porém branco e uma trança até ao meio das costas, que seria italiana. Com passo apertado, bate na porta do gabinete de fotografia, Ismael Pião ainda estava deitar duas colheres de açúcar na caneca de café de cevada que D. Gina, a empregada que vendia cafés de cevada lhe tinha levado, teve de o engolir à pressa, o que foi mau, muito mau, porque queimou o céu-da-boca e a ponta da língua, pegou na máquina fotográfica, colocou-a ao ombro, abriu a gaveta dos rolos, pelo sim pelo não enfiou no bolso dois rolos virgens de vinte e quatro fotografias cada e saiu com um passo tão apressado como o do inspetor Sacadura, tendo até tido dificuldade em o apanhar já que o dito Ismael Flores lhe levava quase um corredor de avanço. Subiram apressadamente a escada do 43, dois em dois e até três em três degraus, quando o patamar entre pisos lhes dava balanço para tal e, com a porta já aberta por outros polícias, mormente pelo chefe Ismaelix, o que tem um bigode à Chalana, deparam com o corpo de Isabella Vicentini, deitada no chão, com marcas visíveis de facadas, que hoje sabemos terem sido sete, por debaixo de uma blusa branca de cambraia de algodão. Ismael Pião olhou para o corpo da jovem bailarina e ficou estarrecido. De repente dá-se-lhe uma volta ao estômago de tal maneira que uma mão na boca quase foi impotente para segurar um vómito. Mas não era apenas o estômago que lhe andava às voltas pois a cabeça de Pião não parava de girar e não sabemos com que guita puxaram Ismael Pião já que ele girou três vezes e saiu porta fora girando ainda escada a baixo. Diz quem o viu pela janela do sexto andar, que tão depressa vomitava como rodopiava direito ao Terreiro do Paço. Pensa-se que terá ido assim até à Quinta do Conde onde morava, ora vomitando, ora girando.

Ninguém mais soube dele. Hoje, à hora do almoço encontrei-o num restaurante no Gradil. Já com os cabelos brancos, senta-se sempre perto da bancada das sobremesas. Quando acaba de almoçar gira na cadeira para pegar o seu pratinho de arroz doce. 


sexta-feira, 27 de abril de 2012

131. Ismael (47) - Biografias



Se alguma vez este livro, cujo nome provisório já o conhecem e que, vá lá, repitam comigo, é “Pasteis há muitos, Senhor Ismael”… Não? Não era este? Está bem, mas por hoje fica este, vier a ser publicado, vou entrar em consenso com o editor para que a capa tenha badanas. Se há coisa que eu adoro num livro são as badanas. Numa delas vem a biografia do autor, na outra um pequeno resumo para que os críticos literários badanistas se pronunciem sobre o livro fazendo um grande brilharete e deixando os que os leem, (leem?) a pensarem que eles é que são mesmo os presidentes da junta. E para que é que eu disse que servia a outra badana, para quê? Ora muito bem, estavam com atenção, é para a biografia sim, senhoras e sim, senhores. Portanto senhores editores fiquem aí com uma pequena nota biográfica do escritor. Se não couber na badana, apertem a letra, por favor.

Nascido em Lisboa, depressa emigrou para Almada, tinha apenas quatro dias de idade. Não esperou, portanto, pelos conselhos de sua excelência o Primeiro-Ministro. Em Almada se fixou até aos 25 anos, tendo transitado para o Seixal, no início dos anos 80 do século passado, porque o preço da habitação era mais baixo. Hoje diz com naturalidade ter tripla naturalidade, naturalmente, sendo um alfacinha almadense que não se “qu(s)eixa” de morar no Seixal. Já passou por 56 primaveras e no verão, se Deus lhe permitir, somará mais uma (isto de fazer primaveras no verão, só mesmo para os eleitos). É casado, tem uma filha e um filho, que são maravilhosos e um não menos maravilhoso neto. Quando for grande quer ser bisavô, vamos lá a ver quantas primaveras demorará. Formou-se em engenharia e andou pelos computadores até se tornar doméstico, mas sempre com os impostos em dia. Mesmo que não o quisesse o Gaspar está à espreita e portanto não tem hipóteses. Gosta de fotografar, como amador, porque de facto ama a luz e o seu registo. Escreve essencialmente para a gaveta e não na gaveta porque se o fizesse já teria as mãozinhas todas tortas de tanto escrever. Há mais de oito anos que começou a escrever em blogues, sempre é mais confortável do que em gavetas, sendo que o seu antigo blogue, O PreDatado, chegou mesmo a ter sete leitores por dia. Hoje dedica-se mais a contar histórias no Constantino Guardador de Vacas, de onde acabou de sair do armário, quer dizer, da gaveta, para o prelo. Contos do Nosso Tempo será o primeiro livro que tem as suas palavras impressas. Tentou antes fazê-lo a partir de uma encadernação caseira, mas a cola usada era de má qualidade, sendo que o livro nunca se chegou a consumar. A sua biografia foi escrita com uma mão e um braço completamente ligados devido a um ataque do seu gato Schubert, seu coprotagonista numa série blogosférica. Tem ainda duas gatas, duas tartarugas e vários peluches, além de uma bola de futebol e um calendário com uma gaja nua. Nua não, em biquine.

Coitada da Fernandinha, se lesse o título provisório que acabei de dar ao livro. Ela que foi a melhor cozinheira de pastéis de bacalhau de Lisboa. Hoje está reformada com pouco mais de trezentos e sessenta euros por mês mas, mesmo assim, muito agradecida ao doutor Passos Coelho por ele não lhe roubar o subsídio de férias. É que, coitadinha, todos os anos tira umas fériazitas, da sua vida rotineira na Quinta do Conde, onde ainda mora, para passar quinze dias na Cova do Vapor, onde apenas a troco da estadia, faz uns salgadinhos para o dono de uma mercearia todo o terreno, que até vende bilhas de gás e fechos éclair, que tem um chalé com terraço e tudo. Mas olhem que mesmo assim a Fernandinha está gordinha, continua roliça e coradinha e, se não fosse a Isaura Bate-Sola, que Deus tem, poder levar a mal lá no Céu e rogar-lhe alguma praga, dir-se-ia que ainda era mulher para romper meias solas. O Rogério é que deve ficar satisfeito de o saber. Um dia destes ainda o vamos ver, numa esplanada na Cova do Vapor a escrever a biografia não autorizada de Fernandinha, a beber uma imperial e a lambuzar-se de pastéis de bacalhau e rissóis de berbigão. E depois digam cá se ele não e muito melhor a escrever biografias do que o Constantino.


quarta-feira, 25 de abril de 2012

130. 25 de Abril, Sempre!



Hoje não há post. Enquanto não me roubarem o feriado do dia 25 de Abril, eu comemoro-o. Se mo roubarem, comemorá-lo-ei na mesma, clandestinamente.

VIVA O 25 de ABRIL!

segunda-feira, 23 de abril de 2012

129. Ismael (46) Reencontro na esplanada


Voltei a encontrar a jovem da pastelaria. Desta vez estava mesmo numa esplanada e não fumava. Em Sesimbra o céu estava azul e ela também estava de azul. Um polo fino e curto, de algodão azul, que lhe deixava ver um piercing no umbigo. Uma perna estava cruzada sobre a outra e, embora ainda não estejamos no verão, já apresentavam uma cor a rondar o que, provavelmente com alguma falta de rigor cromático, chamaremos bronzeado. Como a saia branca que vestia era curta, podia-se admirar um bonito par de pernas, bem acima da curva do joelho. Ao pescoço, um pequeno lenço azul com um nó e um brinco pendente de uma só orelha. Escusado será dizer que o brinco condizia com as vestes, a roupa com o mar e o mar com a cor dos seus olhos.  E como o texto está a ficar muito azul tenho de referir para que nos libertemos da cor e nos centremos no essencial, que apesar de ela não estar a comer uma sandes de fiambre com manteiga e a lamber os dedos, nem desta vez estar a ler Luís Sepúlveda e nos termos encontrado apenas uma vez há já alguns meses atrás, reconheci-a. Ela nem por isso, o que me deixou um pouco com a autoestima em baixo. Ainda assim atrevi-me a cumprimenta-la.

Não seria repetir mas, como já se deu a entender, a receção ao escritor não foi nada efusiva, antes mesmo pelo contrário. O que consolou quem aqui relata os factos foi que a jovem da pastelaria não achou, nem por um momento que o tipo, ou seja, o escritor, fosse um penetra ou um engatador, estilo zezé camarinha, sesimbrense na circunstância. Mas quando olhou para um personagem daqueles, em tempo mais primaveril que invernoso, vestido de gabardina, com uns óculos de massa com uma haste partida e unida com adesivo medicinal, de botas rurais ensebadas, o cabelo comprido e meio despenteado que se não atribui à brisa vespertina que se fazia sentir, com uma macheia de folhas A4 impressas debaixo do braço, mais parecendo um cromo saído do maio de 68, na margem esquerda do Senna antes de molhar o croissant na chávena de café, à espera da hora de repetir pela terceira vez o exame de filosofia na Sorbonne, raciocínio a que muito a teria ajudado um livro de Edgar Morin que ele carregava junto às folhas A4, de que apenas se reparava em metade do título (“Amour, Poésie, Sagesse”, pode o narrador adiantar) e que, com a atrapalhação de cumprimentar a jovem, ainda deixou cair “A náusea” do Jean-Paul Sartre mesmo aos seus pés, não tendo sido propositado para lhe ver as pernas, pois disso ela tinha a certeza já que tinha uma cruzada por cima da outra, bem apertadas, que reconheceu naquela figura o escritor do livro sem tema, do livro sem nome ou quiçá do que nunca venha a a tomar a forma de um livro, pois se o escritor não o sabe, muito menos ela, que é apenas uma jovem que, por acaso, um dia, se encontraram numa pastelaria, quando ela comia uma sandes de fiambre com manteiga.

E num mar de azul e atrapalhação o diálogo não foi muito profícuo embora em vez de falarem do tempo, dos signos do zodíaco ou do estado a que este país está a chegar e, muito menos, de futebol ou da prestação da Luciana Abreu num programa da TVI, falaram efetivamente do livro que o, aqui, narrador e, fora daqui, escritor, anda a escrever, do tema que concretamente ela aprovou, da evolução do crime da Rua dos Correeiros que mereceu dela uma expressão muito em voga, mais propriamente, «ganda maluco». Depois ele ofereceu-lhe uma bebida, ela aceitou uma água do luso natural, ele pediu para ele um descafeinado que bebeu sem açúcar e, depois de ter engolido um pastel de nata, mas antes de se despedirem, ela ainda lhe perguntou «mas afinal aquela ideia de não ter sido Isabella a assassinada mas sim uma irmã gémea, deixou-a cair?», ao que o narrador respondeu «não me obrigue a escrever hoje o fim do livro porque já tenho muitos episódios na gaveta e seria um desperdício jogá-los no lixo». Finalmente, apesar do escritor ter feito um gesto de aproximação de como quem vai dar dois chochos, um em quem bochecha, a ação acabou abortada a meio, seguindo-se um aperto de mão e cada um foi para seu lado. Para ser mais rigoroso, ele foi para a paragem dos autocarros para a Quinta do Conde e ela ficou sentada no mesmo lugar.

Já sentado num dos bancos do autocarro, do lado da janela, que hoje em dia se não pode abrir a não ser em caso de emergência, assim o obriga o ar condicionado, viu a viatura afastar-se, não sem um último sorriso para a garota que gosta de sandes de fiambre e viu-a ainda abrir o fecho de correr e tirar da mala um batôn azul claro. Porque tudo isto é muito rápido, o escritor não o viu, mas o narrador está apto a afirmar que ela deu um retoque nos lábios.


domingo, 22 de abril de 2012

128. O Caracol




Em tempos que já lá vão, havia no meu bairro um grupo de rapazes que rondavam pela mesma idade mais ano menos ano.  Entre os quinze e os doze anos ou depois, já mais velhos, entre os dezanove e os dezasseis, sendo que, quando chegamos aos vinte e cinco, os de vinte e dois já fazem pouca diferença. Um grupo que jogava à bola ou ao pião, um grupo que ia ao baile ou ao cinema, um grupo que namorava ou que entretanto juntava os trapinhos, quase todos fazendo igual, quase todos ao mesmo tempo, mais ano, menos ano. Neste limitado leque de idades havia o Madeirense e o Pintarroxo, o Terrível e o Marado, que também era madeirense, o Zé Tangas e o irmão, o Meia-Lua,  os manos Vianas, o Quim, o Manecas,  o Grilo, o Augusto, o Chico e o Capote, o Nico e o Manivelas, o Carapinha e o Carlos, que é meu irmão, o Mesquita, o Caracol e o Tóninho, para nomear apenas os que de repente me vêm à cabeça. Com uns eu tinha uma relação mais próxima e ainda hoje somos amigos. Com outros eu mantinha distância por não me inspirarem confiança ou simpatia. O Pintarroxo, que é pintor e que não deve a sua alcunha à profissão, já que o seu pai também era assim conhecido e também o seu avô, ainda é meu amigo e sempre que preciso algum trabalho de pinturas é a ele que recorro. Quando posso vou ao café do Terrível, a quem sempre trato pelo nome próprio. O Capote era meu cunhado e infelizmente já faleceu, como também faleceu o meu amigo Marado. O Zé tangas, o irmão, os manos Vianas, o Nico vejo-os a espaços. O Manivelas morava na mesma praceta mas não fazia parte do grupo. Não nutria por ele a mínima simpatia e nem sei o que é feito dele. Pelo Caracol não só não tinha qualquer simpatia como não me inspirava confiança nenhuma. Era de quem eu me afastava mais. Não gostava dele, nunca simpatizei com o personagem, era desasseado, intriguista e ruim de lidar. Chegou a tentar roubar-me um projeto de namorada. Dava-se com o Manivelas, mas com a nossa malta só convivia com o Nico pois morava porta com porta. O Chico era o melhor a pescar, o Carapinha era o melhor a correr e até tinha uma camisola de atleta do Benfica, o Capote era o melhor de todos pois estava sempre de bem com cada um e pregava o amor de Cristo, o Quim era o que cantava melhor o fado, o Madeirense era o mais brincalhão e dos mais duros a jogar à bola, o Manecas era o que mais percebia de música pop, o Meia-Lua convivia pouco com a gente, fez-se homem cedo de mais, não acompanhava com crianças, apesar de ser da nossa idade. O Carlos era o melhor guarda-redes, o Zé tangas era o mais descarado pois, naquele tempo, já andava com o braço por cima do pescoço da namorada, o que era um escândalo para a época e era também o mais mentiroso. Aliás, era o tangas de serviço. O Caracol não pertencia a este grupo e até tremíamos quando ele se tentava aproximar. Normalmente dispersávamos para não lhe dar cunfias. O Marado não perdia um baile na Sociedade, o Grilo era o mais desconfiado, o Augusto o que mais prendia o machinho, o Tóninho era maricas pelo que apenas morava lá na praceta mas o grupo de amigos dele era outro. O Pintarroxo jogava bem à bola, até jogou no Piedade, os Vianas eram os meus companheiros na catequese, o Mesquita só aparecia para jogar futebol. O Manecas e Quim gostavam da mesma miúda que eu, as mães deles queriam por força ser comadres da minha sogra, mas a namorada era minha. Do Quim nada sei e o Manecas apesar de o ver com pouca frequência ainda é um bom amigo. O Caracol, diziam, metia a mão onde não devia e também por isso não pertencia ao nosso grupo. Na vida uns têm mais sorte, outros têm menos, outros fecham-lhe a porta. Os mais atraiçoados foram o Marado e o Capote que morreram cedo. Demasiado cedo. Do Tóninho, a quem arranjei emprego pois acabou por ocupar a vaga que deixei numa loja de pronto a vestir quando eu tinha catorze anos, nunca mais lhe soube do rasto. O Nico vi-o no funeral do pai dele. O Caracol andou pelos caminhos da droga e do alheio e passou vários anos à sombra. Nunca gostei do Caracol. Hoje, quando me viu, pediu-me 50 cêntimos para uma bica. É claro que lhe dei e darei sempre que mo pedir. E mesmo que mo não peça. Alguns não tiveram sorte. Outros fecharam-lhe a porta. 

sábado, 21 de abril de 2012

127. Coisas minhas



Somos 21 contistas. Talvez para alguns dos meus amigos seja novidade. Em Maio, a editora Esfera do Caos publicará "CONTOS DO NOSSO TEMPO" . Aqui o vosso amigo é um dos autores. Ainda não está definido o local do lançamento que divulgarei oportunamente. Fiquem com a capa e espero que venham a gostar.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

126. Ismael (45) - Ligações perigosas



Quando Jürgen Grass jurou sob sua honra e da dos Grass, família proeminente da Renania –Westfália  e amicíssima da  família Schneider, uma abastada família de banqueiros, artesãos e alfaiates judaica, seus vizinhos e ainda aparentados devido ao casamento de uma prima afastada de Jürgen com Ismael Schneider o principal alfaiate de Remscheid que, se algo lhes acontecesse durante a guerra, ele próprio se encarregaria de converter em ouro todos os bens antes que as SS o conseguisse e que depositá-lo-ia numa conta na Suíça cujo número estaria suficientemente camuflado para que ninguém o descobrisse e também que, ainda sob compromisso de honra, custasse o que custasse, passe a atualidade da expressão, percorreria Seca e Meca, passe aqui  a ironia da expressão, até que encontrasse um familiar dos Schneider  a quem confiar tão presumível fortuna, estava longe, muito longe de imaginar que numa viagem que não parecia ser de risco, dada a conhecida neutralidade suíça,  que entre Chur e Lugano, viesse a ser vítima de um traiçoeiro assalto que entre uma mala com um acordeão, uma pequena bolsa com duas sandes de frankfurter-würstchen e uma weiss bier, uma par de militärstiefel, ainda haveria de ficar sem um cordão fino de ouro com uma medalhinha, onde fora colocada uma fotografia em ponto pequeno de Nossa Senhora. E porque é que se diz aqui que o assalto fora traiçoeiro? Será apenas intenção do escritor e por vezes narrador de contos adjetivar o assalto? Não nos parece e para que não restem dúvidas que nesta novela e tampouco nos contos que fazem parte desta coletânea de coisas que ora são contos, ora não são, não se gastam adjetivos em vão, cá vai a explicação de porque é que esse assalto foi traiçoeiro.

Faz o narrador aqui um parêntesis para lamentar que a cronologia tenha obrigado Fernandinha a viajar até ao futuro, a saltar vinte anos para a frente, deixando para trás tudo quanto de bom trouxe a esta novela, nomeadamente os pasteis ou bolinhos de bacalhau como são chamados no norte do país e também nomeadamente a sua permanente coscuvilhice, a querer sempre saber o que se passa com o desenvolvimento do crime e ainda nomeadamente com o seu pseudoflirt com Sebastião, o marinheiro, pois que como é bom de ver nunca poderia ter acontecido e, finalmente, nomeadamente um avental novo que ao escritor tanto trabalho deu em encontrar a condizer com a decoração das paredes da tasca do meu amigo e seu patrão Ismael Gusmán. Mas isto são contingências de um não-livro, de um quase não-blog e definitivamente um não-pastel de bacalhau, o que nos obrigará a falar provavelmente de moqueca de camarão, de pita shwarma ou de polvo em molho vinagrete o que também não é petisco de se jogar fora. Feito que está o lamento, retomemos o que da viagem de Jürgen Grass da Alemanha a Israel , com passagem pela Suíça, Itália, Grécia, Turquia e Chipre, nos interessa e diga-se, em abono da verdade, algo efetivamente nos irá interessar.

Viajava então Jürgen numa confortável carruagem proporcionada pela Wagon-Lits quando conheceu no bar-restaurante um simpático italiano que, apesar de vestir uma camisa negra, não lhe motivou nenhuma desconfiança. A guerra já tinha acabado e apesar de ainda não ter sido inventada a minissaia nem o biquíni pequenino às bolinhas amarelas, cada qual veste aquilo que muito bem lhe apetecesse e ninguém tem nada a ver com isso. Eu por exemplo, estou a escrever este texto em roupão, com os chinelos de quarto enfiados. Mas se estivesse descalço, o que é que alguém tinha a ver com isso? Conversa para aqui, conversa para acolá, às tantas já estava o nosso Jürgen com três canecas de cerveja no bucho, daquelas canecas de litro e o nosso vígaro italiano a pedir-lhe vinte paus emprestados que lhe pagaria no sábado, quando recebesse a semanada lá da fábrica, etecetera e tal. E é aqui que se dá a traição. Depois de se ver com os vinte paus no bolso, que naquele tempo eram em francos suíços, vinte paus de franco já estão a ver o balúrdio que era,  e depois do Jürgen ter pago do seu bolso, coitado, a despesa que fizeram no bar e que, pode o narrador garantir, ainda custou uma nota, porque nos restaurantes dos comboios a coisa não é barata, principalmente nas carreiras internacionais, mais ou menos ao preço que pagamos, hoje em dia, nas nossas áreas de serviço, não é que o italiano gama o que acima foi descrito e ainda um relógio de pulso que tinha sido comprado horas antes na gare de Berna, ao pobre do alemão, enquanto este dito cujo alemão estava a tirar uma soneca, a ressonar e tudo, à conta das bejecas bebidas e depois desaparece mesmo com o comboio em andamento? Por sorte ou coincidência, apesar da Margarida Rebelo Pinto dizer que as não há, uma senhora que costumava fazer as limpezas das carruagens e que por acaso estava a gozar um dia de feriado, quando viu o alemão a blasfemar em alemão, praticamente a grunhir e a dizer uma montanha de asneiras tais como «f.…-se, uma destas é que eu não estava à espera, car…», mas isto tudo em alemão, o que nem dá para traduzir completamente porque parece mal, ter exclamado em voz alta para quem a quis ouvir, «isto só pode ter sido obra do senhor Vicentini», mas em suíço-alemão que é ainda mais complicado de traduzir.

Ora, Francisca que não perde pitada destas coscuvilhices, aproveitou logo a deixa para insinuar no seu manuscrito que, apesar das vicissitudes da viagem, Jürgen seguiu até Israel, não antes de ter passado por Atenas, para ver, segundo a própria Francisca que é pouco dada a estas coisas da História e dos fenómenos da Natureza, os estragos que a guerra fez nos monumentos, pois parece que aquilo estaria tudo em ruinas, com o objetivo de reunir com a Mossad. «Ora a verdade, segundo Francisca, e ela é uma mulher muito bem informada nestas coisas, se calhar sabe muito mais do que diz», dizia o jovem Espinheira sentado num banco ao balcão da tasca e conversando informalmente com o meu amigo Ismael Gusmán, «é que consta por aí que nem Ishmail Baruchi é tio de Ismael ben-Avraham, nem este é sobrinho do primeiro, bem entendido. E se assim for, talvez sejam agentes secretos à procura da medalha. Só não sabemos bem, porque está difícil de descodificar no manuscrito, porque é que ele só falava numa sobrinha chamada Raquel, que há muitos anos vivia em Portugal e era especialista em peixe de assar na brasa».

«Com peixe na brasa ou com ervilha e ovos escalfados quem pagou as favas foi a Isabella, essa é que é essa. E logo com sete facadas», rematou o meu amigo Ismael, limpando as mãos ao avental azul preso à cintura e desviando-se para ir aviar mais um copo a um freguês que tinha acabado de entrar na taberna. «E um piresinho de torresmos, faxavôr», pediu o cliente.


segunda-feira, 16 de abril de 2012

125. Ismael (44) - A apreensão da Francisca


Quem anda um bocado aborrecida com o escritor é a Francisca. Eu entendo-a, se estivesse no lugar dela talvez estivesse com o mesmo estado de espírito. Dizia Francisca, um dia destes, que apesar do interesse de Ismael Sacadura Flores no seu conto, as atenções andavam todas viradas para as anotações no manuscrito que podiam dar pistas para esclarecer o crime que vitimou, blá, blá blá, Isabella Vicentini, blá blá blá, sete facadas, blá, blá, blá, Rua dos Correeiros e que o escritor está a ceder à pressão que lhe fazem para desvendar, logo, o mistério, isto é, o nome ou os nomes dos assassinos, pois apesar dos protagonistas já saberem o resultado, desde o capítulo vinte oito, a verdade, verdadinha, e quando a verdade é nua e crua, dói, a verdade, dizia o narrador desta novela, é que os leitores do projeto de livro, atualmente apenas posts em blog, ainda não o sabem. Francisca, apesar de tudo, não está contra a que o escritor dedique mais tempo a escrever histórias, relatando factos que eventualmente possam ter ocorrido ou ficcionando outros que eventualmente possam não ter ocorrido, ou até mesmo misturando realidade e ficção e onde, os protagonistas, tal como já foi dito em disclaimer exclusivo, possam apenas ser uma mera coincidência com personagens reais, vivos ou mortos. Ou, então, escrever um livro de suspense que mete crimes e espionagem e muitos tipos de nomes estrangeiros, como um tal Freitag que só apareceu uma vez. Na realidade o blog é dele, ele escreve o que bem quer e bem lhe apetece, se um dia algum livro dele vier a ser publicado, a singelo ou em coletânea, que tenha êxito é o que ela lhe deseja, mas o escritor podia ter sido um pouco menos parcimonioso na forma como tem divulgado o seu, dela, “Conto da ilha de lá”, como já lhe chamou, provisoriamente, o jovem Espinheira.

Estava a Francisca a desabafar com o senhor Ismael Rodrigues, dono da mercearia no seu quarteirão lá na Quinta do Conde, toda esta preocupação com o que se estava a passar com o seu “Conto da ilha de lá”, nomeadamente a apreensão que lhe estava a causar o facto de que se a divulgação do ou dos criminosos vier a ser feita um dia destes, tudo o resto de ” Ismael, a série” ou dos “Relatos dentro de uma lata de atum”, nome provisório e alternativo a “Histórias à sombra de um carapau de escabeche”, deixará de ter interesse e o seu “Conto da ilha de lá” ficará no texto como um conto inacabado, que na posteridade poderá vir a ser publicado ou não, tudo dependendo do grau de notoriedade com que ela mesma venha a ficar no mundo literário, quando de repente, como que vindo do nada, lhe entra mercearia dentro um pombo-correio com uma mensagem agarrada à anilha, o que lhe fez soltar uma grande exclamação: “Ora esta, este é o pombo-correio do senhor Ismael Gusmán, o amigo galego do escritor, que tem uma tasca na Rua dos Correeiros!”. Esta exclamação já não pode ser ouvida pelo senhor Ismael Rodrigues, o dono da mercearia pois, ao mesmo tempo, a estridente campainha do seu telefone de mesa já tocava e se ouvia lá de dentro qualquer coisa como, Quem fala?...  Ah o senhor Espinheira… como está?…Urgente? Pois sim senhor, faça o favor de dizer… ah é para a D. Francisca? Por acaso ela está ali mesmo, vou já chamá-la… enquanto no aparelho de telefonia se ouvia, com muito ruído, uma interrupção do programa de fados e guitarradas, para comunicar a D. Francisca que grrrrr… conto….grrrrrrr…capítulo seis… grrrr… E quando Francisca percebeu que não estava no Pátio das Cantigas e que não tinha nenhuma filha no Brasil e que muito menos se chamava Rosa, entra porta dentro, passe o pleonasmo, o Filipinho, de calções e suspensórios sobre uma camisa branca e de cabelo com brilhantina e risco ao lado, gaguejando e quase sem poder falar com a emoção, D. Francisca, D. Francisca, o seu conto… Ao que ela respondeu, apertando o garoto contra o seu vestido de chita da tabela, às flores pretas e brancas, dada a sua condição de viúva, já sei meu filho, já sei, o sexto capítulo do meu conto vai hoje ser publicado pelo narrador.

Capítulo 6
“Apesar da minha fraqueza física, motivada pela fome e quiçá pela situação inusitada, não quis parecer um qualquer jagodes. Levemente acariciei-lhe os seios. Primeiro um, depois outro. Tive uma surpresa. Não posso jactar-me de ter tido muitas mulheres na minha vida. Ainda sou relativamente jovem, falta um bom par de anos para atingir os quarenta. Nunca tive nenhuma mulher insensível ao toque nos mamilos. Pensei que a minha inabilidade ou a minha retração fossem as responsáveis. Toquei-lhes com a ponta da língua numa tentativa de os bolinar. Nenhuma reação da jovem, nem um tremor, nem uma expressão de prazer. Completamente insensível. Num instante, o chefe da “tribo” levantou-se e começou a jacular. Tal a velocidade com que emitia os sons, uma evidente forma primitiva de fala, que o joco se instalou entre os assistentes. Arrepiei no meu jogo amoroso e ato contínuo a jovem começou a jeremiar. Fez-se silêncio, só não absoluto porque, do goto da rapariga, se escutava um ténue choro. Alguns dias mais tarde, entendi essa insensibilidade dos seios das mulheres da aldeia”. 

Francisca saiu a correr da loja do senhor Ismael Rodrigues e foi direita a casa. E enquanto comia uma chamuça e um croquete de atum que o inspetor Flores lhe tinha trazido na véspera, diretamente da tasca de Ismael Gusmán, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto. Tinha sido muita emoção e ela iria anotar isso num outro manuscrito que se propôs escrever. E deu um leve sorriso como se agora fosse ela própria a mestra do suspense.



sexta-feira, 13 de abril de 2012

124. Ismael (43) - Ismael ben-Avraham passa à segunda volta



Ora diga lá Espinheira o que é que consta a páginas setenta e dois e seguintes do manuscrito que nos serviu para consolidar o que vamos de seguida dizer sobre o senhor doutor Ismael ben-Avraham. Depois, antes que Espinheira abrisse a boca, virando-se para Francisca, disse-lhe, com a sua licença minha senhora. Já não teve tempo de ver a cara com que Francisca recebeu este ‘minha senhora’ assim lançado pelo inspetor e, tal como sabemos, também amante, pois que tinha ainda solicitado ao Espinheira um momentinho se faz favor, já que teve necessidade de, primeiro, ir verter águas. Ouviu-se o correr do autoclismo, a torneira da água de lavar as mãos a correr, o que mostra que o nosso inspetor tinha hábitos higiénicos muito avançados para a época. No entanto, quando saiu dos lavabos, vinha a assobiar e a apertar os botões da braguilha. E dirigindo-se ao nosso Ismael Gusmán, o inspetor Ismael Sacadura Flores perguntou-lhe, o que Ismael entendeu como uma ordem, se não podia servir uns copos de água às senhoras ou mais uma rodada de gasosa espanhola que para ele se contentaria com um copo de tinto. Nenhum dos presentes se admirou de, mesmo em serviço, o inspetor Ismael Sacadura Flores beber o seu copinho e comer uns torresmos ou uma conserva de atum pois foi coisa que sempre o viram fazer. Agora que sabemos que a nossa Fernandinha não era moça que ali pudesse estar, conforme relatado em capítulo próprio, os pastelinhos de bacalhau estavam fora de questão. E posta que foi a introdução, vamos lá ouvir o jovem Espinheira que está ali danadinho para intervir, se bem que o inspetor o pudesse ter feito ele mesmo.

Senhor inspetor Ismael Sacadura Flores, senhores chefes de brigada, Dr. Ismael de Almeida e Monsieur Ismaelix, senhor Ismael Gusmán, nosso digníssimo anfitrião e não disse mais nada pois o inspetor, enfastiado com tanta cerimónia, repreendeu-o com veemência, tanto que há testemunhas de que o jovem Espinheira terá ficado corado que nem um tomate e deveras acabrunhado. Oh homem, leia-nos o que escreveu a senhora dona Francisca nas páginas que lhe indiquei, caramba! Esta interjeição foi, para um homem tão educado como sabemos que o inspetor o é, e agora também que tem hábitos higiénicos, foi, dizia, um pouco a despropósito mas teve de ser narrada pois foi assim mesmo que o inspetor Flores interjecionou. O pobre, que é como quem diz em tom paternalista, o jovem, com o manuscrito na página setenta e dois aberto de par em par, começou então a ler as considerações que Francisca fez sobre a localização de Ismael ben-Avraham em anotações que apontavam o médico para as bancadas do Estádio da Luz, inaugurado dois anos antes, a assistir a uma daquelas maravilhosas noites de futebol que vieram a afamar aquele estádio como o Inferno da Luz, para o que, diz quem assistiu, muito contribuiu a fantástica vitória sobre o grande Barcelona daqueles tempos por quatro bolas a zero. Tudo isto está aqui escrito no manuscrito, faz tenção de informar o jovem estudante, que todos sabem gostar muito mais de ciclismo do que de futebol, o que ato contínuo provocou uma reação ao sobrinho de Francisca, o marinheiro Sebastião que, sendo ele sportinguista, não hesitou em deitar a língua de fora à sua própria tia. Mal-educado foi a única coisa que veio ao pensamento de Francisca mas que não lhe saiu sequer boca e, por isso, o escritor não colocou em discurso direto. Entretanto, é rigoroso dizer que nem com esta provocação, Francisca tirou os olhos e os ouvidos do jovem Espinheira que continuava a ler o seu manuscrito. O doutor Ismael ben-Avraham, que não conseguiu disfarçar um sorriso, imitava Francisca e fulminava com os olhos, quer o jovem Espinheira, quer a capa do manuscrito.

Teve então que interromper a leitura do manuscrito o inspetor Ismael Sacadura Flores, mediante alguma estupefação dos presentes e até perante um protesto lavrado oralmente pelo nosso amigo galego, pois como ele fez questão de afirmar, as noites gloriosas do seu Benfica não podiam ser assim tão abruptamente interrompidas, nem que em causa estivessem outros interesses superiores da Nação, como fosse o caso de se desvendar o assassino de Isabella Vicentini, disse, num misto de português e galego que a maioria não percebeu patavina. E perguntam nesta altura os leitores desta pseudonovela dramática, com ares de conto policial trafulha, misturado com histórias do autor, passadas numa tasca da Rua dos Correeiros, pertença de um seu amigo, galego como todos o sabem, porque é que o inspetor que estava tão ávido de que o jovem Espinheira lesse o manuscrito o viria assim, de um modo tão abrupto como se disse e nunca é demais repetir o adjetivo, a interromper. E aqui é a vez de o inspetor confrontar os presentes que essa tinha também sido a desculpa ou, na opinião do próprio Ismael ben-Avraham, o álibi que o ilibaria de qualquer suspeição sobre o crime da Rua dos Correeiros número 43, sexto andar. Mas Isabella tinha sido morte com sete facadas e um crime tão horrendo não poderia ser tratado de ânimo leve. Até porque o inspetor Ismael Sacadura Flores andava há algum tempo a sofrer algumas pressões superiores para que fechasse rapidamente o caso, uma vez que dada a falta de bons inspetores criminais, já estava a ser preciso para investigar o estranho desaparecimento dos animais de estimação da esposa de um detentor de um alto cargo governativo, falava-se até de um boi almiscarado. Não, não era o ministro o boi almiscarado, mas adiante, pois acho que já entenderam. E para que todos os presentes soubessem porque é que ele interrompeu o jovem Espinheira, esclareceu detalhadamente que foi pela grande contradição encontrada quando o Doutor, em depoimento escrito, dado nas instalações da própria Polícia Judiciária, declarações essas datadas e assinadas, afirmou perentoriamente que tinha estado a trabalhar nas urgências do Hospital dos Capuchos, num turno de vinte e quatro horas, só tendo saído ao meio dia do dia do crime que, segundo a perícia legal teria ocorrido cerca das sete horas da manhã, mas cuja uma ausência suspeita, a horas ainda não definidas neste fascículo, teria sido testemunhada por uma enfermeira feia. E é aqui que um dos presentes, mais concretamente Isaurinha Bate-Sola se levanta, se vira para Francisca e diz do alto dos seus saltos, oh minha senhora, então a senhora, que até parece ser uma fervorosa adepta de futebol, não sabe que um jogo só dura hora e meia, vá lá com o intervalo e com as compensações mais uns vinte e poucos minutos e que às sete da manhã, o doutor Ismael ben-Avraham ou lá como é que se pronuncia este nome estrangeiro, podia muito bem ter dado as facadas à rapariga? E neste momento, a enfermeira feia que tinha acabado de entrar, a pedido do inspetor, deu uma gargalhada, o que obrigou o inspetor a pôr ordem na sala.

Foi neste ambiente que já tendia para a peixeirada que o inspetor abriu as goelas, mandou parar a discussão que já se iniciava entre a Francisca e a Isaurinha Bate-Sola, decidiu que iria fazer mais revelações sobre os outros presentes que, como já sabemos desde o episódio vinte e oito, acabou por revelar quem foi o autor do hediondo, sanguinário e até mesmo incompreensível crime e anunciou que o doutor Ismael ben-Avraham passaria à segunda volta.


quarta-feira, 11 de abril de 2012

123. A estrela vai alta...



Quando eu era garoto lançávamos estrelas e papagaios. Eu era muito pequeno para construí-los pois comecei a dar conta do lançamento das estrelas por volta dos meus quatro anos. E ficava a admirar o quão alto elas subiam. Os papagaios eram feitos com uma cruzeta de canas. Os brasileiros chamam-lhe pipas e creio, em alguns lugares de Portugal, chamam-lhe bacalhau, dada a sua semelhança a um bacalhau seco da Noruega. Fazia-se então uma cruz, não centrada, em que a cana que ficaria na vertical era substancialmente maior do que a horizontal e uniam-se os vértices das canas com um fio de modo a fazer um losango irregular. Depois cobria-se com papel de seda, colocava-se uma cauda e era lançado. A estrela era mais bonita, muito mais bonita, no meu ver de criança pequena e voava alto como a puta que a pariu. A estrela era feita com três meias canas iguais, cruzadas e centradas como se fossem as diagonais de um hexágono. As canas deveriam ser verdes para poderem ser flexíveis. As canas secas partiam não só com a força do vento, mas também quando, em remoinho, as estrelas se estatelavam no chão. Nas pontas das canas eram abertas ranhuras em bisel por onde passava o fio que ia formar o hexágono. Depois sobre papel de seda, media-se o papel a cortar que se dobrava sobre o fio e se colava. Havia quem fizesse estrelas tão grandes que tinham de levar mais do que uma folha de papel de seda. Alguns faziam com vermelho e verde e colocavam Portugal bem lá no alto. Alto como a puta que o pariu. De dois dos vértices saiam outros tantos fios que se uniam a um outro que saía do centro da estrela. Com a base formava-se uma pirâmide triangular de cujo vértice depois sairia a guita que a ajudaria a subir. De dois vértices opostos saiam dois fios que se uniam ao início da cauda. Depois quanto mais comprida e pesada fosse a cauda, que normalmente era feita de trapo, mais estável era a estrela. E era vê-la subir. Bastava ir dando fio, que se desenrolava devagar à medida que a estrela ia subindo. Os rapazes de oito e dez anos e até de catorze, chegavam a ser mais de cinco ou seis ao mesmo tempo, concorriam para ver quem lançava a estrela mais alto. E eu ficava ali, pequenino, sentado numa pedra, cabeça levantada a olhar para as estrelas. E o Zé da Laura, um bom amigo, casado com a Maria Celeste, ficava ali também, junto aos garotos, olhando, contemplando e incentivando este e aquele para que a estrela subisse mais e mais. Eram lindas em todas as suas cores. E os fios não se embaraçavam uns nos outros. E o Zé da Laura, olhou para mim, ali quietinho, sentado na pedra, encolhido porque a brisa da tarde, aquela que fazia as estrelas irem até lá tão alto, já me mordia os bracitos, olhando boquiaberto para uma que já quase se não via de tão alto ter subido, e exclamou «Constantino, a estrela vai alta como a puta que a pariu!». E eu que não percebia o que ele queria dizer com aquilo, ainda hoje, sempre que oiço alguém dizer a puta que a pariu, lembro-me do Zé da Laura e olho para o céu para contemplar as estrelas.


segunda-feira, 9 de abril de 2012

122. Ismael (42) Fernandinha não matou Isabella

(ou a santa paciência para ler textos de duas páginas A4 num blog)




Quando o inspetor Ismael Sacadura Flores começou a dissecar, um a um, os personagens e o seu possível envolvimento no crime que vitimou Isabella Vicentini, fê-lo na tasca do meu amigo Ismael Gusmán, como todos já sabem e nem noutro local poderia ser, já que esta narrativa se passa fundamentalmente à volta da taberna, à volta de Ismael e à volta da minha cabeça, deixando-me por vezes com a dita às voltas. E a primeira referência que o Inspetor fez foi à nossa bem conhecida Fernandinha, autora dos melhores pastéis de bacalhau que já alguma vez alguém presente neste conjunto de contos saboreou. Disse-me Fernandinha uma vez, que o segredo não estava apenas no bacalhau nem no modo como se confecionam, mas essencialmente na qualidade da batata, sem nunca me ter dito qual era a espécie de tubérculos que usava na sua (deles, pastéis) elaboração. Todos sabemos que há pessoas que só passam segredos de pais para filhos, por mania ou por tradição, vá-se lá saber porquê, mas que, para já, não vem ao caso. Tudo o que agora vai ser escrito, não é imaginação do narrador, antes porém fora argumentado por Ismael Sacadura Flores, que até ousou acender um charuto que deixou roído de inveja o Dr. Ismael ben-Avraham, a quem teve o descaramento de pedir lume. Com o seu porte altivo, o ar superior de quem desvenda mistérios, nem que para isso lhe tenha servido de inspiração a alcova da melhor escritora de manuscritos confusos de que há memória na história dos romancistas e, diria mesmo, superiormente ajudado pelo cheiro do arroz de grelos com pataniscas de pescada, que tão bem era servido naquela tasca do meu amigo Ismael Gusmán, falou sem ser interrompido e, quando alguém fazia tenção de o fazer, lá estava ele a esticar o braço, autoritário, com um só gesto mandando-o (ou a) sentar ou calar, conforme a amplitude, direção, raio de ação e verticalidade do movimento e a graciosidade do gesto, ouvindo-se então apenas um abafado balbuciar. E continuava, altaneiro, com o seu discurso direto. Vamos então, que já é tempo, ler o que ele, naquele dia, disse sobre Fernandinha.

Fernandinha foi-nos apresentada pelo nosso escritor do romance policial e narrador dos contos à volta de um carapau de escabeche já os anos setenta estavam nos seus meados. Nessa altura, Fernandinha era ainda uma jovem e roliça beirã que, enganada por um conde francês na região de Marselha, de quem foi criada de servir e a quem destruiu uma boa meia dúzia de garrafas de vinho tinto, caríssimas por sinal e pertencentes à sua coleção particular, se viu impelida a regressar a Portugal. Quis o destino que depois de acolhida por uma amiga da família, moradora na Rua da Madalena, paredes meias com o Largo do Caldas, também ela ex-emigrante e regressada a Portugal logo depois do 25 de Abril de 1974, cheia de esperanças num outro Portugal mas de que não vou esmiuçar nesta análise, tivesse vindo a habitar, um anexo da moradia de uns senhores que eram comerciantes de móveis, em plena Quinta do Conde, onde, todos sabem, moram ou moraram muitos de vós aqui presentes e outros que não chamei, mormente alguns amigos do narrador e um carpinteiro que lhe costuma fazer as molduras para as suas telas a acrílico, já para não falar de primos, da veterinária, de alguns amigos da infância e da adolescência, pois não fazem parte desta história.

E continuou Ismael Sacadura Flores, o nosso inspetor, empolgado com o seu discurso e deixando rostos de admiração à sua volta e algumas vontades de interrupção de quantos o escutavam com suprema atenção e sem perder o mínimo detalhe.

Por outro lado, Fernandinha dorme numa pensão de um tradicional bairro de Lisboa, não só conhecido pelo fado, canção que virá a ser daqui a muitos anos património imaterial da humanidade, que aí se canta, mas também pelas costumeiras cenas de faca e alguidar, com um tipo rico da alta finança, que como quase nenhum de vós imagina, viria, mais tarde, a ser envolvido num escândalo de vidas depravadas e pedofilia, conhecido por ballet rose, prontamente abafado pelas autoridades, exatamente na noite em que se veio a consomar o crime que, como é do vosso conhecimento e também do conhecimento futuro de quem comprar este livro ao nosso putativamente ilustre narrador, aqui nos trouxe, já que não é minha intenção repetir que foi perpetrado na pessoa da malograda corista que apanhou, sete facadas, quase sem saber ler nem escrever, pois eventualmente, dir-nos-ão os relatórios da Medicina Legal, só terá sentido a primeira.

Neste momento o narrador abana a cabeça num gesto de desagrado pois se não queria repetir, repetiu, o que, sabe o narrador de fonte segura, maça de sobremaneira os seus leitores, enquanto Ismael Flores já se via com ar triunfal a sentenciar e Fernandinha, de cabeça baixa, roía as unhas.

Pois minhas senhoras e meus senhores, deu uma gargalhada quando disse isto, vá-se lá saber porque é que as pessoas quando se sentem triunfantes, quiçá até de costas quentes, dão gargalhadas e, virando-se para Francisca, exclamou, isto é tudo falso! Ou, se quiserem, sem tantas considerações de permeio, com vírgulas e tudo, o que o inspetor Ismael S. Flores disse foi o seguinte: «Pois minhas senhoras e meus senhores, isto é tudo falso!». E então aqui que ele dá a tal gargalhada enquanto se voltava para Francisca.

Ouviu-se um longo bruá na sala. Durante a pausa que concedeu ao seu discurso, Ismael Sacadura Flores com o evidente intuito de saborear esta sua pequena vitória, já que ao longo da tarde-noite outras estariam para vir, foi intenso o burburinho e o sussurrar entre os presentes. Ismael Gusmán serviu uma rodada de tintos aos homens e abriu uma garrafa de gasosa espanhola de litro para servir às senhoras. Depois da pausa, continuou o nosso polícia mor, o grande inspetor Ismael Sacadura Flores.

E a falsidade está na cronologia, que é como vocês também sabem a sequência ordenada no tempo dos vários acontecimentos. Pois bem, já perceberam que se em meados dos anos setenta Fernandinha era uma jovem e roliça beirã, filha de emigrantes e também ela emigrante que cresceu em França para onde foi levada em pequenina e a quem o narrador, também ele jovem universitário, batia os olhos nos finais de tarde, quando passava para apanhar o barco no Terreiro do Paço e que, por paixão de quem, ainda apanhou uma ou outra piela, não acostumado que estava a beber e quando só o cheirinho do tinto do Cartaxo já bastava para o inebriar, não poderia ser, ao mesmo tempo, vinte anos antes, quando se deu o crime da Rua dos Correeiros, a bela jovem que se encontrava enrolada em lençóis com um velho ricaço e porco fascista como se veio a provar, a dormir ou a fingir que dormia numa pensão do Bairro Alto. E é por isso que ilibo Fernandinha de ser autora ou coautora deste horrendo crime, por aparentemente não passar de uma personagem de ficção, fruto não só da confusa cabeça do narrador mas também das confusões temporais que surgem a quem escreve para um blog, dia a dia, sem saber como é que isto poderá acabar. Mas há que reconhecer, disse num aparte o inspetor, que assim, o autor encerra uma carga dramática ao texto e testa também a atenção dos seus leitores. Posta que foi a verdade sobre Fernandinha, ordeno-lhe que saia de imediato desta sala, que regresse ao futuro, de novo aos anos setenta ma que, antes que saia, também lhe ordeno que nos traga uma travessa dos seus deliciosos pastéis de bacalhau.

Confusos ficaram os presentes se o nosso inspetor gostava mais de dar ordens em nome da lei ou de pastéis de bacalhau.

E no silêncio em que esta revelação os deixou só se ouviu na sala o leve mastigar dos presentes e um estalo com a língua, que o inspetor deu, depois de virar em jeito de penalti, o seu copo de três de vinho tinto.




quinta-feira, 5 de abril de 2012

121. Um conto de Páscoa


Alcibíades Procópio viveu praticamente toda a sua vida sob o estigma do seu nome. Apesar de se apresentar a toda a gente como Martins da Silva, os seus apelidos, Martins da parte da mãe e Silva de seu pai, era quase impossível de assim vir a ser chamado. Quer nas escolas, desde a instrução primária, quer nos empregos por onde passou, o que não faltavam eram Silvas, conhecidos por Silva ou por José Silva, Joaquim Silva, Manuel Silva, Pedro Silva, João Silva, Alfredo Silva, Eduardo Silva, Carlos Silva ou Franklim Silva sem esquecer os da Silva e os e Silva pelo que, pelo menos de Alcibíades não escapava, ainda que lhe fizessem a fineza de o tratar por Silva. Mas com Procópio ali mesmo à mão de semear, raramente deu jeito a algum colega tratá-lo por Silva. E até mesmo por Martins a coisa não era fácil, pois embora não tão comum como Silva, o Augusto, o Ramiro, o Santana, o Cardoso, o Edgar, o Filipe eram Martins e chamá-lo a ele, Alcibíades Procópio, como Martins da Silva, pouca a gente ousou fazer e quase que asseguro, ninguém o fazia.

A sua mãe, D. Felismina Martins da Silva que adotou o apelido do marido por via do casamento, sempre tratou o filho carinhosamente por Bi ou por Bizinho o que, apesar de tudo, o reconfortava. O pai, que era um militar à antiga, que calçava botas de cano alto e usava bigode enrolado em caracol nas pontas, não era muito apologista desse tipo de mimos chegando ao extremo de tratar o próprio filho por senhor Alcibíades ou quando o caso era grave por senhor Alcibíades Procópio, com ponto de exclamação e tudo. Aliás, quem conheceu o austero senhor Januário Santana da Silva, seu pai, sabia que no seu vocabulário não existiam diminutivos, chegando mesmo ao cúmulo de tratar um cabo do seu pelotão por cabo Agosto quando o homem se chamava, efetivamente, Agostinho. É então com naturalidade que, neste ambiente dual, de um lado o mimo, o carinho, a ternura, do outro a seriedade, a austeridade, o rigor, que um homem de nome tão pouco vulgar, que chegou, inclusivamente, a sofrer, embora não assim conhecida na altura a expressão, algumas tentativas de bullying apenas por causa do nome, se tenha aproximado se sua mãe para inquirir e posteriormente indagar quem, autores de tão estranha Graça, teriam sido os seus padrinhos.

D Felismina Martins da Silva explicou então a Bi que Alcibíades Procópio tinha tido duas madrinhas. Uma, fora Nossa Senhora das Dores, como divina testemunha e protetora e a outra, filha de uma amizade antiga, fora a adolescente Zeza, uma testemunha viva, de carne e osso e pessoa bem-educada, que por ser muitos anos mais nova que D. Felismina Martins da Silva, funcionaria assim como seguro de vida para o inocente Bi. Zeza, era na época uma menina nos seus tenros dezasseis anos de idade, ainda virgem, filha de boas famílias, que para além de ser amiga da família, era neta por parte de sua mãe, uma beata de muita fé e devoção, do respeitável senhor Alcibíades, o dono da capelista, onde as mulheres mais prendadas e impolutas se encontravam a comprar rendas e botões e a falar bem da vida umas das outras e também neta do doutor Antero Procópio, veterinário e pescador de achegãs como outro não havia na vila, embora um pouco boémio para os gostos tradicionais, seu avô paterno. Está, portanto, visto que a Zeza não lhe faltou inspiração para encontrar nome para o rebento de D. Felismina Martins da Silva. E se assim se inspirou, assim o batizou, pois não consta que Nossa Senhora das Dores a isso se tenha oposto.

A mudança da vila para a grande cidade, longe muitos quilómetros do local de nascimento e batismo, o desenraizamento cultural e tradicional, a quase ignorância geográfica que o impedia de localizar o lugar onde nasceu num mapa ou num planisfério, fez com que Alcibíades Procópio nunca tenha tido, desde que se lhe conhecia tino, contacto com a sua madrinha Zeza, agora, com certeza, D. Zeza, já que com Nossa Senhora das Dores nunca o houvera perdido, pois nunca abandonou a sua religiosidade praticamente inata e a devoção à sua divina madrinha. E agora que a sua mãe, D. Felismina Martins da Silva já estava morta e enterrada e o seu pai residia num lar para antigos militares de cavalaria, nada mais natural do que tentar aproximar-se de D. Zeza e reivindicar a sua posição de afilhado. Afinal, estávamos na Páscoa e ela, por ser sua madrinha, tinha por obrigação oferecer-lhe um pacote de amêndoas.




terça-feira, 3 de abril de 2012

120. Rostos


“Este é o tipo de desafios blogosféricos que me agradam”
                                               Constantino, in frases marcantes da minha vida

E como este tipo de desafios agradam ao Constantino e ele não tem muito tempo para escrever novos contos, já que anda com as mãos na Isabella Vicentini e a bisbilhotar o manuscrito da Francisca, pediu ao Filipinho que lhe escrevesse algo sob os auspícios da



que tivesse como tema “Rostos” . Eu já o li e confesso que fiquei comovido pois não esperava tanto do Filipinho e agora só desejo que na Fábrica de Letras, eles também se comovam. Mas não precisam de lacrimejar muito pois, se as letras caem nas lágrimas, ainda vamos ter uma sopinha de letras. É só juntar Knorr e levar ao lume durante 10 minutos. 




Cinderela.


Já não vejo a Fátima há muitos anos. Quando eramos miúdos brincávamos no pátio das nossas casas, que eram quase porta com porta. A diferença de idades, eu, garotinho de pouco mais de sete anos e ela, mocinha já a caminhar para os onze, tornava sem sentido qualquer outra aproximação que não fosse a inocente brincadeira das crianças. No entanto, lembro-me do senhor Josué, o pai da Fátima, conversar com o meu e dizer-lhe, «senhor Marques, cá para mim ainda vamos ser compadres». Ao que o meu pai, uma pessoa muito respeitadora, muito religiosa e homem de poucas confianças e até de poucas falas, que saía de manhã para o escritório e chegava, quase sempre, tarde a casa e ainda se sentava à máquina de escrever para acabar os mapas para o Santana, que era o chefe da contabilidade lá da firma, respondia, «vamos a ver, o futuro pertence a Deus». Cá para mim, quando a gente ia à missa ao domingo, o meu pai rezava e pedia ao Senhor para que eu nunca me embeiçasse pela Fátima. Eu bem ouvia as conversas entre ele e a minha mãe e não raro o ouvi sussurrar, «Genoveva, não gosto que o miúdo brinque com a filha do protestante». Nestas coisas da religião, o meu pai era muito preconceituoso. Mas só na religião porque o meu pai não era racista. O senhor Kalankou, que era preto, era o seu melhor amigo. Lá em casa todos gostávamos do senhor Kalankou e sempre que ele lá ia jantar levava-nos sempre um bolso cheio de rebuçados de mentol para me dar a mim e à minha mãe. Ainda me lembro de todos como se fosse hoje. O senhor Josué era gordo, usava suspensórios, só punha gravata aos domingos e usava uma barba quase branca na cara sob uma pele clara e sardenta. O cabelo dele era ruivo e tinha uns olhos azuis muito grandes e redondos. Se o senhor Josué não fosse já velho, diziam que ele tinha uns bons quarenta anos, eu diria que tinha uns olhos tão bonitos como os da Fátima. Só que os dela eram mais azuis. O senhor Josué tinha uma cicatriz no lado direito do rosto, que lhe fizeram na guerra, mas a barba disfarçava embora não crescesse muito bem ao longo daquele traço. Eu só sabia disso porque a Fátima me contou e ria-se quando dizia que o pai penteava a barba para disfarçar a cicatriz. E eu ria-me também. Mas nem o meu pai sabia, se não ainda era capaz de achar que o “protestante” era um malfeitor. O senhor Kalankou estava sempre a rir. Tinha os dentes muito brancos e cara de um preto mesmo escuro de onde sobressaiam dois olhos redondos de cor castanha entalhados em duas brancas elipses. Era mesmo simpático o senhor Kalankou, sempre a mostrar os alvos dentes. O senhor Kalankou não era castanho como alguns que a gente vê na televisão, não, era mesmo preto escuro numa cara muito redonda. O senhor Kalankou também era gordo ou então, por causa da minha tenra idade, todos me pareciam gordos. O senhor Kalankou não tinha o nariz como o do meu pai. O nariz do meu pai, era comprido e fininho. Às vezes à noite, quando a minha mãe me ia adormecer e contar histórias e me contava aquela do Pinóquio eu adormecia a rir, a pensar que o meu pai era mesmo o Pinóquio. E aquele seu ar sempre sério, sem pestanejar nem franzir as sobrancelhas, até parecia que era feito de pau. Ainda hoje solto uma gargalhada só de pensar nisso. O meu pai, um boneco de madeira, para o que me havia de dar para pensar! O do senhor Kalankou era um nariz largo e também era um nariz gordo como o próprio senhor Kalankou. O senhor Kalankou era baixinho, mais baixo do que o meu pai e quando a minha mãe me contava a história da Branca de Neve, eu ficava a pensar que o senhor Kalankou, se fosse branco, poderia ser o anão narigudo da história. Mas o senhor Josué com aquelas barbas brancas também podia ser um dos anões da história. Se calhar o Mestre. Mas não, o senhor Josué não podia. Ele era muito alto, não podia ser anão. Se calhar dava bem era para ser o Pai-Natal. Uma vez eu e a Fátima fizemos um jogo de dar alcunhas às pessoas e ela fartou-se de rir quando eu disse que o pai dela era o Pai-Natal. E ela, como que a ler os meus pensamentos, disse-me que o meu pai era parecido com o Pinóquio. E perguntou-me meio acanhada, «Pode ser o Pinóquio?». E no meio de tantas gargalhadas houve dois momentos de puro encantamento. O primeiro foi quando ela disse que a minha mãe usava sempre um penteado tão bonito, umas camiseiras tão rendadas, um colar tão elegante ao pescoço, que tinha uma cara tão branquinha, uns olhos verde-esmeralda, um queixo suave e até o nariz empinado, que parecia mesmo a fada madrinha. E como a fada madrinha era uma fada boa, eu assentei que sim, que a minha mãe podia ser a fada madrinha. O outro ficou só no meu pensamento e nunca lho disse. Mas quando apago a luz e fico sozinho na escuridão do meu quarto, ainda fico a pensar nos loiros cabelos compridos de Fátima, nos seus olhos azuis, muito azuis, nos seus lábios pequenos e vermelhos e, é como se ouvisse a voz da fada madrinha ao meu ouvido, a dizer «dorme, que a mãe conta-te a história da Cinderela». E eu fico a sonhar com a Fátima.

domingo, 1 de abril de 2012

119. Ismael (41) . As tortas de Azeitão e o capítulo 5



O Espinheira andava encantado. Não com a história de Isabella, nem com as dicas que Francisca tinha deixado no seu manuscrito e que tanto trabalho lhe davam a decifrar mas que, de facto, constituíram a chave para descobrir o crime, como talvez o narrador tenha vontade de um dia o mostrar aqui. No entanto, se isso for a sua vontade, soará mais adiante. Tomou Espinheira a decisão de ir até à Estação dos CTT mais próxima, naquela época em Vila Nogueira de Azeitão, a alguns quilómetros da Quinta do Conde, porque naquele tempo não havia posto de correios na dita Quinta e aproveitou para comer uma das famosas tortas de Azeitão num dos estabelecimentos mais caraterísticos da Vila, mais propriamente na pastelaria Cego, casa fundada em 1901, chás e cafés, passe a publicidade, sendo que na volta ainda trouxe uma quarta de “esses”, que também são uma delícia, para fazer uma ligação telefónica e quanto às tortas que o Espinheira comeu terei de ser mais preciso, não comeu uma, nem duas, mas sim três. À parte a contagem das tortas comidas pelo Espinheira, os meus leitores, ou perderam-se no parágrafo, ou estavam à espera que o escritor, que sou eu, Constantino, ao vosso dispor, se perdesse, tal foi a distância em que se disse que o Espinheira fora a Vila Nogueira de Azeitão e o objeto desta deslocação que foi, como se viu mais à frente, o de fazer uma chamada telefónica no posto dos CTT. Pois não me perdi e vou já continuar, embora, com isto, arrisque uma má crítica literária, uma vez não ter a certeza de que alguns dos críticos saibam ler parágrafos tão grandes. Mas isso agora não vem ao caso, já que o que eu vos quero mesmo contar é porque é que o Espinheira andava tão radiante.

À primeira vistas este telefonema parece encerrar uma desnecessária perda de tempo já que a Espinheira, também ele morador na Quinta do Conde, bastar-lhe-ia ter atravessado três ruas paralelas e depois virar à direita e na primeira transversal encontrar a casa onde habitava Francisca. Isto não lhe teria tomado mais do que catorze minutos a pé ou três de bicicleta, que era como ele gostava de se deslocar. Para atingir este seu desiderato, como dizem os treinadores de futebol nos seus discursos, tinha comprado uma pasteleira em segunda mão em Almada, na loja do Zé Menino, na Rua Capitão Leitão, estabelecimento infelizmente já desaparecido, que vendia, alugava e reparava bicicletas e motociclos e tinha-a levado ele próprio, pedalando na Nacional 10, que naquele tempo via passar um carro de tempo a tempo, um ou outro autocarro de carreira, uma ou outra motorizada, quiçá alugada no Zé Menino ou em outro estabelecimento congénere e de, isso sim, muitas carroças puxadas por machos ou por mulas, desde Almada até à Quinta do Conde. O receio de ser mal compreendido pela vizinhança, melhor dizendo o receio da má-língua do mundo, que especulasse que entre ele, um jovem universitário, enfim, bem apessoado, e Francisca, uma quarentona divorciada na sua, dela, grande pujança balzaquiana, houvesse uma relação mais intima, uma situação que não era muito bem vista naquele tempo. Apesar de que entre eles, pode vos garantir o narrador, nunca tenha havido nada, não é agora que o próprio narrador vai criar um, mais que provável, mal-entendido que estrague a reputação a ambos. Mas nunca fiar, porque este narrador gosta de arranjar caldinhos para dar mais sabor à novela. Tudo isto terá passado pela cabeça do Espinheira não fosse quem escreveu isto ter sabido de fonte segura que este não terá sido mais do que um pretexto do Espinheira, um tarado por tortas de Azeitão, para se deslocar à origem das mesmas para as desfrutar e poder, além disso, o escritor, adiantar que tal era o fétiche do Espinheira pelas ditas tortas que estas constituíam a oferta preferida dele quando dos seus encontros românticos, substituindo assim por um embrulhinho com meia dúzia das macias tortas, recheadas com doce de ovos e com o travo a canela, qualquer vaporoso ramo de rosas, mesmo que de vermelhas se tratassem. E se não parecesse coscuvilhice contaria aqui o narrador, ou melhor, narraria aqui o episódio de uma tarde em que ele chorou de raiva quando, já homem maduro, em vésperas de ser avô, se esqueceu de uma embalagem de tortas e de um guarda-chuva no assento de um autocarro. Todos sabemos que não foi por causa da perda de um guarda-chuva que o Espinheira chorou.

E neste momento da narrativa, desesperam com o narrador, os que aqui ainda tiveram a paciência de chegar, e suplicam-lhe para que este desembuche, de uma vez por todas, sobre o teor do telefonema e também, se não principalmente, o motivo pelo qual Espinheira andava de sorriso trinta e dois por tudo quanto era canto deste distrito de Setúbal e do Concelho de Lisboa, já que o homem não era de viajar muito. E assim vos digo de rajada pois, como já foi escrito em episódios anteriores, este escritor é homem que gosta de ir direto aos assuntos, sem rodeios nem floreados, que o telefonema era a pedir autorização a Francisca para atribuir ao seu conto o nome de “Conto das ilhas de lá”, ao que Francisca deixou no ar um enigmático, logo se vê. Quanto ao motivo do seu encantamento e satisfação era, nem mais nem menos, o quinto episódio do referido conto, que para quem o tem andado a seguir aqui fica a sua transcrição. E enquanto leem, o narrador vai ali até à tasca do seu amigo Ismael beber um branquinho de Pegões, porque já está com a garganta seca.

Capítulo V
«Os seios da jovem apresentavam-se hirtos. Os mamilos, de um castanho-escuro, pronunciado, destacavam-se da tez cor de mel do próprio peito. Olhando ao redor, nenhuma das fêmeas, diga-se em abono da verdade, bem mais idosas, tinha semelhanças com aquela. De resto, o homozigotismo não parecia ser a característica daquela variante da raça humana. Sem nunca deixar de se insinuar, pegou-me na mão e encaminhamo-nos para uma enxerga de vime, estrategicamente colocada, onde todos e cada um dos presentes poderiam observar-nos. Fiquei de joelhos em frente de um corpo estendido. Imotos. O jovem corpo feminino e eu próprio. O rapaz imberbe e nu, aproximou-se. Numa mão aportava uma folha de papiro que me apresentou e uma faca que mais parecia uma catana miniaturizada. Na outra, uma jaca. Passou-me a folha de papiro para as mãos e quase me obrigou a ler. A disposição dos caracteres, a fazerem-me lembrar línguas estranhas, códigos antigos, como que indecifráveis hieróglifos, tinha todo o aspeto de um hipocraz. Fez-me entalar a jaca entre os dentes, a qual, instintivamente, mordi, no momento em que um corte fino no meu dedo indicador era perpetrado pelo próprio jovem. A dor aguda fez-me trincar a jaca em duas metades. O dedo, sangrando, foi-me feito colocar, como que assinando um testamento. Depois, virou as costas e foi tomar um dos dois lugares mais altos da plateia, ao lado do chefe da tribo. O hipocraz que um dos, aparentemente, súbditos de menor estatuto, me fez ingerir, seria feito, não da maneira convencional, pois em vez do costumeiro vinho na sua constituição, teria uma espécie de aguardente pura de alto teor alcoólico. A partir desse momento, apenas os seios da jovem concentravam a minha atenção».