O meu velho amigo Ismael nunca teve um blog. Quando este
fenómeno apareceu e conversamos sobre ele, apenas me disse que já estava velho
para estas coisas de computador. Para vos falar a verdade, o meu amigo Ismael
nem uma máquina de calcular usava. Pegava num molhe de folhas A4, de papel
pardo cortava-as em quatro pedaços iguais, fazia-lhes um furo, passava um
cordel pelo furo e atava-o. Ali estava o bloco dele, que pendurava num prego
por baixo de uma prateleira atrás do balcão, que tanto servia para fazer as
contas dos clientes que eram servidos ao balcão como para apontar os fiados. Eu
disse ao balcão porque nas mesas ele fazia-as mesmo em cima da tolha de papel.
Quando apareceu a moda dos clientes pedirem fatura, ele pegava num bloco de
faturas numeradas, para controlo das finanças e escrevia, 2 almoços, um traço
longo à frente e na coluna dos valores 87$50. Lê-se oitenta e sete e quinhentos
e estou a falar eme escudos, que era
quanto custavam dois almoços na sua tasca em mil novecentos e setenta e cinco,
quando a comecei a frequentar, com direito a sopa, prato, um jarrinho de meio
litro, sobremesa e café e, se o cliente gostasse, ele oferecia um bagacinho da
casa. Às vezes havia um ou outro que pedia um pastel de bacalhau para fazer
boca antes da chegada da comida e então o almoço acabava por ficar um pouco
mais caro, mas não muito. E porque é que comecei a contar esta história falando
em blog, estão com certeza os leitores deste livro a perguntar. Se isto é,
primeiro, uma espécie de livro de contos, segundo, uma espécie de livro
policial, terceiro, uma espécie de meio para divulgar os contos da Francisca,
que morreu em dois mil e três, com oitenta e nove anos, á beira dos noventa,
sem nunca ter visto publicado nenhuma das suas criações, mormente o “Conto das
ilhas de lá”, obra na qual ela depositava uma grande esperança de vir a
tornar-se um best-seller. O narrador destes contos, que é também o escritor
desta espécie de livro está em condições de divulgar que Francisca, numa noite
de fados num restaurante muito próximo da Quinta do Conde, onde morou quase a
vida inteira, recitou três dos seus mais bonitos poemas, um deles intitulado “Se
eu fosse uma folha de nenúfar” que um músico famoso lá da terra acabou por musicar
e que, sem espanto do narrador, veio a ser canção do genérico de uma série
televisiva num canal de cabo.
Na nossa conversa sobre o blog, perguntava-me Ismael Gusmán,
se havia alguma coisa que me preocupasse no blog, enquanto provávamos uma
pomada de uma produção particular que ele tinha descoberto através dum caixeiro
viajante, familiar de um velho frequentador da tasca, que se não falha a
memória ao narrador se chama Rogério e comíamos uma posta de bacalhau desfiado
numa das mais saborosas punhetas que se comem em tascas portuguesas, cuja
receita é simples, a posta de bacalhau desfiada em cru deve ter sido previamente
bem demolhada e ser temperada com um tempero simples de alho picado, cebola
cortada em meias luas muito finas, azeite virgem extra, de preferência de boa
qualidade, vinagre e pimenta branca em pó e depois de bem remexida a mistura, a
punheta fica de se lhe tirar o chapéu e, se a pomada for igual àquele tinto que
bebemos, não sei se vale a pena continuar a narrativa ou ficar a degustar os
derradeiros sabores que ainda resistem nas papilas gustativas. Acompanhamos o
nosso petisco com um casqueiro de Mafra, que lhe chegava todos os dias, ainda
quentinho pela manhã, numa carrinha branca Ford Transit a bater ponteiras, mas
que o Jaquim Saloio cuidava como se fosse a menina dos seus olhos. Ao que eu
lhe respondi que efetivamente um blog deve ter leitores para atingir os seus
objetivos e que, se os não tiver acaba quase por ser um diário, mas que, em vez
do caráter reservado que é apanágio dos diários, permite alguma devassa.
Esperto como Ismael era, não concordou em absoluto comigo, dissertou sobre a
escrita pública e a escrita privada, deu mesmo o exemplo de um jornal que se
publicava numa Freguesia minhota onde morava uma prima dele em terceiro grau e
que ele só sabe disso porque foi lá uma vez visitá-la e viu que era com aquele
jornal que ela forrava as gavetas e os armários da cozinha. Acrescentou que ela
lhe disse, mas que me transmitiu sob reserva pois ele não ficou muito
convencido, que às vezes também era lido no barbeiro enquanto os homens
esperavam a sua vez para cortar o cabelo. Depois confidenciou-me que isso tinha
sido antes de na última página eles terem passado a inserir uma fotografia de
mulher em trajes mínimos e além das palavras cruzadas terem também uma secção
de anedotas. Essa conversa com ele veio-me à cabeça um dia destes quando fui
ver o contador de visita deste blog. E fiquei a pensar se vocês gostam ou não
das minhas fotos ou se devo começar a investir em lingerie, pois que para
contar anedotas eu não tenho jeitinho nenhum.