sexta-feira, 15 de julho de 2011

53. auf Wiedersehen, au revoir, goodbye*



Vou contar-lhes tal como me contaram. Se acreditarem…, pois todos sabemos que quem conta um conto lhe acrescenta um ponto. É fatal como o destino. E a história que lhes vou contar não me contou certa velhinha, apenas ma contaram e pronto, espero que tenha ficado esclarecido.

Era um casal quase sem mácula. Namoraram como era costume naquele tempo, ele pediu autorização ao pai dela para namorar com a filha e passar a ir lá a casa nessa condição, a de namorado da filha e foi assim que durante mais de seis anos assistiram juntos à Visita da Cornélia, à Gabriela, ao Casarão e à Escrava Isaura, foi assim que ele descobriu o jeito dela para fazer camisolas de lã e casaquinhos de bebé e para rematar naperons. Trocaram impressões sobre as lições de economia do Francisco Pereira de Moura, deram uma vista de olhos nos livros do Mário Murteira, analisaram juntos a demonstração da derivada de logaritmo neperiano de xis, estudaram séries de Taylor e de Fourier, embrenharam-se na moeda e crédito e na econometria, reviram os trabalhos de grupo de regimes transitórios II e preparam o exame de hidráulica. Neste intervalo, não perderam uma manif do 1º de Maio, cantaram juntos porque a cantiga era uma arma, analisaram Marx e Marta Harnecker, não perderam de vista o Plano Marshall, estudaram sobre a tática e a estratégia, estiveram sempre presentes com Engels e com Lenine e ainda hoje Alexander Rüstow é objeto de estudo conjunto e, segundo me contaram, conhecem de fio a pavio cada parágrafo do acordo entre os socialistas pró-banqueiros, os democratas cristãos e os neoliberais com a troika FMI-UE-BCE.  A sintonia no casal é perfeita, têm dois filhos e um neto maravilhosos e até me contaram que ambos costumam ir a casas de fado e à missa mas já não assistem aos comícios do Bloco de Esquerda. Quando discutem, não pelejam mais de 30 segundos e é por coisas tão banais como a comida tem um pouco de sal a mais, ou esqueceste-te das meias no meio do quarto, que nem vale a pena dar relevo a isso. De antagónico mesmo, apenas a cor das camisolas. Ele usa uma vermelha que nos campos a vibrar é uma papoila saltitante, uma camisa que é toda ela Luz. Ela veste de riscas verdes e brancas a lembrar um lagarto rastejante da Citânia de Briteiros.

Naquele dia, quando ela regressou da cozinha, trazia na mão um copo um sumo de laranja. Não lhe dirigiu palavra. Em cima da cama, ainda por fazer, uma mala já estava cheia. A outra com o fecho de correr aberto de uma ponta a outra, ia recebendo calças e calções, camisas e camisetas, cuecas e meias. Ela não lhe fez um único reparo. Apenas o observava enquanto segurava no copo de sumo de laranja. Colocou um livro de Luís Sepúlveda e outro de Vargas Llosa na bagagem. Cofiou o bigode e foi buscar um Saramago. Viu se o moleskine ainda tinha páginas em branco e dirigiu-se à casa de banho. Tomou o comprimido para a tensão arterial e lavou os dentes. Guardou a escova numa bolsinha, atirou a bolsa para a mala, correu o fecho. Aceitou o sumo de laranja. Fez uma festa na cabeça de cada gato. Tirou a carteira do bolso, confirmou os documentos, os bilhetes estavam em ordem. Deu quatro voltas à chave e, cada um com a sua mala, partiram para férias.

Texto e foto do autor. Todos os direitos reservados.

*digam lá se não estou tão troika…

quarta-feira, 13 de julho de 2011

52. Injeção



Chamávamos-lhe doutor, embora a bordo daquele navio não existisse nenhum médico. O enfermeiro assumia assim o cargo do médico e o seu estatuto. Passava a frequentar a messe dos oficiais, a sala de estar dos oficiais e o convívio entre oficiais, numa das áreas profissionais que era à data (hoje não sei, estou afastado) das mais corporativistas e gregárias que conheci em toda a minha atividade profissional. Foi assim, dada esta abertura que lhe foi concedida e a uma gripe que durante uma semana não me quis abandonar que conheci o doutor.

Entrar naquela cabine de enfermagem era ter a certeza de algumas coisas. Que o doutor dava uns toques no xadrez que jogava amiúde com o terceiro piloto. Que o frigorífico do doutor também fez as suas promoções, sendo que uma garrafa de whisky tinha o mesmo estatuto de uma caixa de supositórios ou que uma dúzia de cervejas ombreava em galões com as anti-tetânicas e as vacinas da gripe. Que o doutor às vezes estava sóbrio.  Que o doutor era uma pessoa de trato simpático e de quem toda a tripulação tinha uma excelente imagem pessoal.

Quando desembarcamos num porto de nuestros hermanos e colocamos a nossa bagagem no espaço do autocarro concebido para o efeito, esta foi arrumada de tal maneira que as caixas de garrafas das mais diversas bebidas, whiskies, runs, vodkas, gins e outras que naqueles tempos eram um luxo no nosso país, pertencentes ao doutor, pois claro, não pudessem ser detetadas na alfândega da fronteira. Ainda assim havia algum risco mas que não se consumou. O doutor vinha acompanhado daquilo que mais gostava e durante algumas semanas nem se lembraria mais do que era uma seringa.

Foi assim, sem grande admiração e fazendo jus à simpatia que granjeou junto de todos nós que, a uma observação minha sobre o facto de não ter encontrado (à hora em que os nossos irmãos aqui do lado faziam a sesta) uma única tienda aberta onde comprar uma garrafa de brandy para oferecer ao meu pai, o doutor só não se transformou em garrafa porque não pode. Abriu um saco com meia dúzia delas, para ele não havia siesta que resistisse a uma boa pinga, e logo ali, perante a turba, ofereceu-me uma das suas recem adquiridas garrafas. Foi já com algum espanto que umas semanas depois recebi uma carta do doutor a relembrar-me que “ lhe devia oitenta e quatro escudos de uma garrafa que ele  gentilmente me tinha dispensado, para que eu pudesse ter um gesto simpático para com o senhor meu pai”.

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segunda-feira, 11 de julho de 2011

51. Bolas


O Miguel foi meu professor e meu amigo. Eu era ainda um jovem pós-adolecescente e Miguel um adulto com comportamentos etariamente dúbios. Ora parecia uma criança pequena na sua ingenuidade e espírito de partilha, ora um velho macambúzio e embirrante. Mas esta segunda personalidade só aprecia depois de uma noite de jogo mal passada. Miguel apostava forte e sofria as consequências. Durante a semana, entre uma aula de Química, que ele explanava com mestria e com o ar mais einsteiniano que se possa imaginar e uma partida de bilhar, tomávamos café, discutíamos futebol e política e um dia, sem que nada de absolutamente extraordinário tivesse acontecido, passamos mais de seis horas a discutir religião. Miguel dizia-se ateu convicto e praticante, o que mais admiração me causou, dada a sua bagagem no conhecimento das divinas matérias. Aos fins de semana eu nunca via o Miguel. Partia à sexta-feira à noite para uma fazenda no Alentejo e passava quarenta e oito horas a jogar póquer. Umas vezes aparecia, à segunda-feira, alegre, conduzindo ora um Porsche 411, ora um Mercedes classe E. Outras vezes telefonava-me para que eu o fosse buscar ao Alentejo porque, além de já ter perdido o carro, nem dinheiro para o autocarro de regresso a Lisboa ele tinha. Nunca soube onde ficava a tal herdade, pois Miguel sempre estava num local diferente quando, às vezes ainda perdido de bêbado da última garrafa de whisky, se me aparecia desfraldado e em adiantado estado de deixa-me estar não me digas nada. Um dos momentos negros desta cumplicidade foi eu ter de penhorar quase metade da minha herança para lhe resgatar a namorada que ele tinha apostado num lance sem qualquer hipótese. Pagou-me tudo até ao último tostão mas não voltou para Florbela. Eu não perdi nada. Não só, como disse, recuperei o dinheiro como fiquei com Florbela por mais de seis meses. Florbela deixou-me, não tenho vergonha de o dizer, porque eu não lhe acrescentava adrenalina como Miguel. Nunca a tinha apostado e, isso, ela achava que não era de homem.

Do meu convívio durante tanto tempo com Miguel, ficou-me o maldito costume de apostar. Durante muito tempo eu não saía de nenhum impasse, não dava um único passo em frente que não tivesse de fazer uma aposta antes de avançar. No dia em que eu e o meu amigo Zé Manel passeávamos junto ao lago Zurique, em mais um intervalo de uma chatérrima viagem de serviço, ao avistarmos uma geladaria, sem exagero a mais de cem metros, virei-me para o Zé e disse-lhe que apostava com ele que a miúda do balcão era portuguesa. Ele deu uma gargalhada e disse-me que comigo não arriscaria apostar a namorada. Eu propus-lhe que desta vez ficassemos em que quem perdesse pagaria os sorvetes. O Zé Manel só teria de chegar perto da moça e pedir em português, os dois gelados. O Zé ainda barafustou comigo porque ia ficar com cara de parvo quando ao pedir os gelados a rapariga não entendesse patavina e propôs-me que fizesse o pedido em inglês. Eu perguntei-lhe, sabes alemão Zé Manel? Não? Pois a aposta é em português e está feita. O Zé Manel pediu, em vicentino português e educado, um gelado, se faz favor e a menina no balcão perguntou-lhe, quantas bolas?

Texto e foto do autor. Todos os direitos reservados.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

50. Central Park



O Sol debitava azul sobre o verde do parque. Ao longe um frondoso arvoredo encimava um extenso lago que irradiava, entre reflexos de altos edifícios e círculos ondulantes, que a queda do repuxo construía, os fios maravilha que da grande estrela emanavam. Uma jovem negra fazia malabarismos com arcos, bolas e massas preparando as suas próprias olimpíadas e uma banda de saxofones e trompetes ensaiava uns acordes de R&B. Uma mãe corria empurrando com uma mão o carro de bebé, com os phones bem colados ao ouvido, talvez ao som de Michael  Jackson ou de Shakira, enquanto na outra mão empunhava um romance de Malcom Gladwell numa edição de capa dura, talvez da Time Inc,  enquanto, no outro lado da rua e por debaixo da Greyshot Arch Bridge , outras mamãs se dedicavam ao seu pilatos, step ou simplesmente posture também elas munidas de carrinhos de bebé e devidamente instruídas, por um group e competente trainer. Indiferentes, os esquilos comiam nozes. Num moderno museu ali ao pé, equilibristas da modernidade caminhavam entre teias de canas ou varapaus num desequilíbrio compensado. Num banco de jardim, um casal esperava outro e seguiam os quatro como se naquela imensidão o acaso os tivesse feito encontrar. O parque enchia-se de jovens e outros menos jovens, transportando sacos de papel da Food & Co., picnicando e aproveitando os sons dos últimos arco-íris daquele final de verão. Indiferentes às teias que o subway tece, ao ruído dos carris fustigados pelo ferro dos rodados, rodavam bicicletas de crianças e passeavam os shorts mulheres atreladas a cães. Um grupo de saudosistas dos bons velhos tempos imaginavam John Lenon como se estivessem num campo de morangos ou como se Lucy tivesse subido ao céu coberta de diamantes. E enquanto o homem do contrabaixo e o jazzbandista acompanhavam o sax e uma guitarra no som do velho Pat Matheney, recordando passados junto a um obelisco de outros tempos, o tempo corria para frente e um homem corria para trás.

Texto e foto (Central Park – Imagine) do autor. Todos os direitos reservados.

terça-feira, 5 de julho de 2011

49. Cabeça ao vento


Ercília foi talvez, a par com o engenheiro Monteiro e o arquiteto Marques Ramires, a pessoa mais distraída que conheci. O engenheiro Monteiro, uma ocasião em que me fez um exame oral de uma das disciplinas no quarto ano do meu curso, achou que eu merecia ser penalizado com perguntas de grau mais elevado por não me conhecer e achar que eu nunca tinha ido às aulas dele. O engenheiro Monteiro, que chegou a dar aulas com um sapato de atacadores num pé e um moucassin no outro (vá lá, eram ambos castanhos), tomava comigo a bica quase todas as manhãs no bar do pavilhão e entravamos a par na sala de aula, não bastas as vezes conversando sobre futebol de que somos ambos apaixonados. O arquiteto Marques Ramires, quinze minutos depois da aula ter começado, reparava que estava a dar a matéria de geometria do décimo segundo aos alunos do décimo primeiro. E não fez isto só uma vez.

Ercília estudava à noite no Instituto Superior de Psicologia Aplicada. Não poucas vezes saiu de casa para o emprego, de gabardine ou casaco comprido em dias de canícula quando pela manhã já o ar era irrespirável de tão quente. Claro que chegava ao trabalho com eles debaixo do braço e afogueada. Pudera! Usava amiúde uma meia às riscas e outra lisa e nem sempre da mesma cor. Ercília esquecia-se da carteira ao balcão do bar onde tomava café e só dava por isso quando, ao final da tarde, entrava no elétrico a caminho da faculdade e não tinha o passe para mostrar ao revisor. Todos nos riamos ao vê-la procurar os óculos com eles na cara e isto era frequente. E a chave do carro, um belo fim de semana em que quis sair com o namorado, foi encontrá-la no frigorífico, após mais de uma hora de árdua procura. Contavam-se pelos dedos das mãos as vezes que Ercília saía na paragem certa quando andava de elétrico ou de autocarro ou até de metropolitano.

Naquele dia tudo correu certinho. Ercília chegou ao trabalho com os sapatos e as meias certas, uma blusa branca de folhos, impecavelmente passada a ferro, o que não era costume,  uma saia azul escuro, plissada, a bater-lhe no joelho, que lhe ficava absolutamente à medida, com o fecho traseiro fechado e no local, sentou-se na sua secretária, deixou a pasta com os livros à mão de semear para quando tivesse de ir para a faculdade. Naquele dia não deixou a carteira, nem na hora do café, nem na hora de almoço, no balcão da pastelaria. Naquele dia, Ercília nem se esqueceu de fazer dois telefonemas importantes. Um para uma repartição de Finanças e outro para uma empresa de camionagem. Não pediu transporte de uns caixotes de mudanças ao funcionário do fisco, nem tratou do IRS com a atendente da transportadora. No fim do dia, quando se sentou na mesa da sala de aula, puxou da pasta com os livros e abriu as Páginas Amarelas.

Texto e foto do autor. Todos os direitos reservados.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

48. Vocações



A Mariana era a sua namorada e ele um incorrigível brincalhão. Uma das suas brincadeiras preferidas era inventar mentiras das que se desfazem ao fim de cinco minutos ou que, quando se não se desmoronavam por elas, ele próprio se encarregava de o fazer. Qualquer situação servia para que ele inventasse uma mentira. Na santa ingenuidade da adolescência e até mesmo quando já era um pouco mais crescido achava que não fariam mossa, pelo que por vezes perdia a noção do alcance ou de como, com isso, poderia estar a magoar alguém. Até a ele mesmo. Naquele dia, disse a Mariana que não poderia ir buscá-la ao emprego porque iria para a piscina. Depois de uma troca de palavras mais ou menos inquisitórias de um lado e explicativas do outro, Mariana ficou a saber que no Instituto onde ele estudava havia uma piscina. Ficou a saber mas não acreditou.

Desciam com frequência dos Anjos ao Terreiro do Paço, a Almirante Reis, a Rua da Palma, viravam à Barros Queiroz, entravam no Largo de S. Domingos, acediam à Praça da Figueira pela rua do Brás e Brás, passavam pela esplanada da Suíça, desciam a rua da Prata, davam uma olhada ao Martinho e apanhavam o vapor no Terreiro do Paço. Era bom o passeio, tanto poderiam beber (ele, ela não gostava de álcool) uma ginjinha do Espinheira, comer uns passarinhos fritos no Petiscabebe, um bolo na Lua de Mel ou um café no Martinho da Arcada e, o que era melhor ainda, namoravam mais tempo do que se optassem pelos transportes públicos. Mas não naquele dia. Naquele dia, ele entrou na Igreja de S. Domingos, deu esmola aos três pobres que pediam à porta, rezou alguns minutos e, quando saiu, informou-a que o namoro teria de acabar ali. Ele seguiria a sua vocação, iria entrar no Seminário e esperava, um dia, vir a ser frade dominicano. Naquela tarde, ele em meditação de cabeça baixa, ela num mar de lágrimas, não viram o pôr-do-sol que dourava as águas do Tejo e transformava o mar da palha num mar de fios de ovos.

Nem quando começou a namorar com Mariana ele deixou de ir aos bailes do clube. Mariana não se importava e sugeriu-lhe, em tom de brincadeira, que ele tentasse um casting no Bolshoi. Ele contrapôs com o bailado da Gulbenkian onde, aliás, lhe contou que já estava inscrito. Não foi a gota de água. Outras se seguiram e Mariana desistiu. Não antes de o ter visto descer as escadarias do Instituto, com os longos cabelos, que ele usava naquela época, completamente molhados de mais uns mergulhos na piscina. Virou-lhe as costas e nem reparou que o pas-de-deux estava ser dançado pela esguia bailarina que o acompanhava. Mas uma coisa ela teve a certeza de ter reparado. Ele não vestia o hábito dominicano.

Texto e foto (Malta, La Valleta) do autor. Todos os direitos reservados.

sábado, 2 de julho de 2011

47. Salvo pelo gong



Ele estava à beira de desistir de tudo. De tudo o que era material, para ser mais preciso. As encomendas de quadros, desde que expôs em Santarém, começaram a aparecer-lhe no seu correio eletrónico num ritmo nunca antes acontecido ou sequer, cogitado. Tinha decidido não pintar mais. Ter pintado aquela pega de caras fora apenas uma inspiração de momento e, a festa brava não era, irónica e contraditoriamente, uma paixão sua. Também já não escrevia. O último romance seu fora editado há mais de dez anos, apesar da insistência da editora, que tinha gostado muito da aceitação pública dos seus trabalhos, nomeadamente de ele ter tido um título no lugar mais alto dos escaparates durante quase meio ano. Há muitos anos, muitos mais do que os livros, que tinha pendurado a guitarra e fechado o piano. Gostava de tocar os clássicos e, aos serões, atacava com tanto fervor as teclas para executar a Dança do Fogo do grande Manuel de Falla como dedilhava com mestria o Concerto para Aranjuez de Joaquin Rodrigo. Aliás, a este gosto pelos mestres espanhóis não lhe era alheia a costela castelhana herdade de D. Pilar Jurado de Navarra, sua avó paterna e de quem ouviu imensas histórias. A mim pessoalmente, contou-me muitas da guerra civil espanhola quando eu lhes visitava a casa, mormente para tomar um Pedro Domecq, na companhia do neto e de um outro amigo, tertulianos do verbo, amantes de Pessoa e de Cervantes e da arte de Velasquez. Talvez um dia eu aqui traga alguma dessas histórias. Ele tinha nascido para as artes, cursado na faculdade de Belas Artes da Universidade de Madrid e não desperdiçou nenhum dos seus conhecimentos. Um dia caímos de exaustão, uma noite inteira a discutir Brasília e Niemeyer sendo que de antemão sabia que ele, tal como eu, fazia da arquitetura uma das suas paixões. Quando olhamos para o relógio, responsabilizamos de imediato o Pedro Domecq do qual, diga-se de passagem, nunca lhe faltava na garrafeira uma solera reserva.  De todas as suas atividades criativas não se lhe viam sinais de vontade de continuar e isso, para quem conhecia a sua garra, era motivo de grande preocupação. Só fiquei descansado acerca da sua saúde mental quando, na semana passada, o encontrei a passear no paredão da praia, de mão dada com Elisabete, com quem está casado há mais de trinta anos. À mesa do café, onde desenvolvemos mais do que dois dedos de conversa desta vez sem brandy, ele, virando-se para Elisabete, afirmou, quase solenemente e com um ar tão sério como o de quando tocava Miguel Llobet ou Regino Sains de La Maza, que ainda não desistiu de fazer amor. E enquanto eu dava uma sonora gargalhada, Elisabete não conseguiu evitar o rubor nas suas, sempre jovens, maçãs do rosto.

Texto e foto do autor. Todos os direitos reservados.