terça-feira, 31 de maio de 2011

34. Brooklyn



Se havia algo que não o poderiam acusar era o de ser bota-de-elástico. Seria uma ofensa não muito grave, não sei mesmo se ele consideraria uma ofensa mas, como sói dizer-se, ia aos arames. Pode-se saber porquê e não me custa nada ser eu a dizê-lo, já que sou um dos seus melhores amigos e porque ele me confidencia certas coisas que sei, não o faz com outros. Daria aqui uma boa dezena de exemplos do seu vanguardismo, desde quando em casa punha os cabelos em pé dos pais e, diz-me ele a rir, os dos vizinhos também, a ouvir rock and roll em altos berros ao mesmo tempo que o pai sintonizava o Serão para Trabalhadores na velhinha Emissora Nacional, até à vez em que apareceu, em finais dos anos sessenta, para escândalo da família, lá em casa com uma namorada de mini-saia até às cuecas e lhe pespegou um ardoroso beijo na boca à frente de todos. A mãe obrigou-o a confessar-se no sábado ao senhor prior mas se ele o fez ou não, não mo contou.

No entanto o que hoje eu gostaria de vos contar era da sua relação com as tecnologias. Diz ele que a coisa principal que o impede de estar lá mais à frente é o dinheiro, mas eu sei que não é só isso mas que também não é por se ter degradado o seu interesse pela vanguarda. Ele é muito racional e, hoje em dia, as novas tecnologias, diz ele, devem estar ali à mão de semear para o servir e não para se servirem dele. É um ponto de vista respeitável o que fez com que ele tivesse investido numa das suas grandes paixões, a fotografia, apenas até à fronteira do profissionalismo, que utilize o “velho” notebook em vez do Ipad, que compre a playsation para os filhos e não tenha o menor interesse em utilizá-la, ou que use um telemóvel que não faz o jantar, não lava loiça e não passa a roupa a ferro, mas sim um simples aparelho para receber e fazer chamadas. E foi sempre a sua relação com o telemóvel é que não foi muito pacífica. Não manda SMS e raramente lê as que lhe enviam. De MMS acho que nunca ouviu falar, não sabe o que é 3G, nem como poderia usufruir de banda móvel nesse aparelhinho de bolso. Internet sim, é um grande utilizador, mas só em casa ou, se necessita em viagem, recorre a uma LAN house. No telemóvel é que não, por favor. O último, que o filho lhe ofereceu, tem até uma excelente máquina fotográfica incorporada e grava pequenos filmes em HD. Ele confessa que nem sabe onde estão os botões para tal função. E o toque, em vez da voz de Michael Jackson a cantar Thriller ou do Born This Way Out da Lady Gaga, tem o velho, estridente e convencional trim-trim.

Não me admirei nada de o ter visto atender o telemóvel em plena ponte de Brooklyn, quando passeamos em New York e, depois de desligar, me ter dito com o ar mais admirado deste mundo, como é que o meu cunhado sabia que eu estava aqui?

Texto e foto do autor. Todos os direitos reservados.

domingo, 29 de maio de 2011

33. Dezoito por vinte e quatro


Passamos longas horas a conversar. Antigamente éramos mais amigos de folia mas a idade já nos empurra mais para os braços de um sofá do que para uma discoteca às duas da manhã. E nestas conversas, além de discutirmos a atualidade, a situação do país, a cultura, o desporto, relembramos muitas das nossas vivências passadas. E foi a propósito de uma noite de fados, a que tínhamos assistido na véspera, que ele voltou a referir-me as suas maiores penas de nunca ter concretizado. Uma era de nunca ter sido um jogador de futebol, daqueles que todos conhecem e não só os seus amigos lá do bairro e a outra a de nunca ter sabido cantar.

Lá cantar ele cantou. Relembrou ainda com uma ponta de emoção que aos dez anos de idade num daqueles concursos para crianças tinha saltado para o palco. E pormenorizou. Aquilo era assim, a gente ficava ali perto das escadinhas que davam acesso ao palco, um senhor contava até três e os dez primeiros a chegarem eram selecionados. Ele já tinha tentado outras vezes mas nunca tinha sido escolhido. Aquele seria o seu dia de glória. Cantou o ratinho foi ao baile / de cartola e jaquetão / sapato de bico fino / e um par de luvas na mão… A ovação foi tremenda. O apresentador não parava de olhar para o relógio e cronometrou dois minutos e trinta e sete segundos de palmas sem parar. O segundo ficaria com apenas cinquenta e seis, a longa, a uma eterna distância. Ganhou um bolo-rei e uma fotografia dezoito por vinte e quatro num dos melhores estúdios da cidade. Os outros ganharam lápis-de-cor e sacos de rebuçados. O prémio que ele desejava. Mas não se podia ter tudo, ou seja, o primeiro lugar e o melhor prémio… no seu ver de petiz. Também jogou à bola. Na sua rua era o melhor avançado, na escola era um dos primeiros a ser escolhido para fazer parte do time e já na universidade chegou a ser o melhor marcador no inter-turmas. Um dia foi assistir ao treino do irmão numa grande equipa de Lisboa mas não o deixaram. Ou ele se equipava e também participava no treino de captação ou teria de ir embora. Equipou-se e foi vendo, um a um, os treinadores a rejeitarem os putativos futebolistas. Quando o treinador principal interrompeu uma jogada de que foi protagonista, pensou, é a minha vez de ir tomar banho. No entanto, o treinador apenas lhe corrigiu o movimento, deu-lhe uma palmada nas costas e incentivou-o. No final poderia vir a ser contratado. Bastaria voltar ao próximo treino de captação. Mas isso não aconteceu pois nunca iria suportar vir a ser futebolista do maior rival do seu clube de coração. O amor à camisola atirou-o para o anonimato e aos quarenta e dois anos, quando decidiu arrumar as chuteiras ainda era o ponta-de-lança na sua equipa do trabalho.

Hoje, quando se refere a estes factos diz por graça que mal abre a boca no chuveiro para tentar cantar uma melodia, falta a água. E no único dia em que isso não aconteceu, na hora de sair do banho, tinha uma multidão à sua porta, não para lhe apreciarem o físico, mas com um abaixo-assinado. Ou deixa de cantar ou será saneado do prédio onde mora. Diz isto com alguma graça mas a paixão é tanta que se inscreveu na claque organizada do seu clube. E nos dias em que não chega a casa com um olho negro ou com a cabeça partida chega rouco ou afónico. É que para ele, o futebol e a música ainda fazem parte da sua vida e não há jogo que ele perca ou cântico que não entoe.

(A foto, não executada pelo autor, é de sua propriedade exclusiva. Qualquer utilização abusiva está sujeita a penalizações nos termos da lei. Gostaram deste disclaimer?) 

quinta-feira, 26 de maio de 2011

32. Pequeno lapso




Sei que ele me perdoará a inconfidência por duas razões bem simples de enumerar. A primeira é a forte amizade que nos une e, a segunda, é porque eu acho que ele confidenciou isto a pelo menos mais uma dezena de pessoas. Dizia-me ele que em garoto comia tanto, mas tanto queijo, que chegava a acreditar no que os pais, outros familiares e pessoas circundantes lhe diziam, és esquecido porque comes muito queijo.

Quem o conhece bem gaba-lhe amiúde a sua excelente memória apelidando-a mesmo, talvez um pouco exageradamente, como uma memória de elefante. Apesar da sua bem documentada experiência em queijos, seja a falar de uma raclette que comeu em Thonon-les-Bains quando visitou pela primeira vez a Haute-Savoye em mil novecentos e setenta e oito ou a descrever-me como é que viu fazer, num chalet alpino, um enorme appenzeller, mesmo no finalzinho do verão de mil novecentos e noventa e dois, quando decidiu experimentar o esqui alpino, em que ele descrevia de tal maneira os pormenores que até a cor do avental das queijeiras eu fiquei a saber, a sua especialidade era mesmo recitar de cor as dez primeiras estrofes do canto I dos Lusíadas, e o primeiro ato do Frei Luís de Sousa. Mas se a sua memória fosse só para queijos ou obras-primas da poesia e do teatro, estaríamos em presença de um caso de memória seletiva, o que não confirmaria a sua fama de grande cabeça (grande carola, dizem-lhe os mais chegados). A verdade é que há dias ouvi-o nomear, um a um, a quase totalidade dos alunos da sua turma do sétimo ano do liceu, terminado em mil novecentos e setenta e três – peço perdão pela maçada que vos pode causar tanta data, mas parece-me inevitável - quando alguém lhe mostrou uma foto de grupo. O mais interessante foi ele depois de dizer os nomes, alguns dos quais completos, ter ainda dito que faltavam ali o Hélder, o outro Nobre que é alentejano, a Margarida e o Salvador. E quando alguém interrogou, o Hélder? Ele respondeu sim, sim aquele gordinho que andava sempre cheio de miúdas à volta. Naquele jantar ninguém reparou, mas enquanto ele identificava os colegas da foto, estava a debater-se com um pequeno prato rapsódia, como ele gosta de dizer, onde pontificavam uma fatia de queijo de Serpa a esparramar-se prato fora de tão amanteigado que era, um pedaço de Roquefort  e uma tirinha de Queijo da Ilha. Sei que ele tinha estado antes a provar o Camembert mas não lhe gostou da cura e tinha também chamado a atenção do empregado porque o Serra que lhe trouxera não teria sido acondicionado em lugar apropriado e por isso o devolvera. Deu uma dentadinha numa cream caker sem sal, bebeu um gole de Duas Quintas branco, frio e de uma colheita recente e piscou-me o olho.

Sei que mais tarde ou mais cedo isto iria acontecer comigo. Ele já me tinha advertido que em qualquer momento seria inevitável. Digo-vos sinceramente que me esqueci do resto do texto.

Texto e foto do autor. Todos os direitos reservados.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

31. Águas


Quando o encontrei estava encolhido, de cócoras, por baixo de uma varanda. Acocorei-me a seu lado. Chovia torrencialmente.

Nos arredores havia dois hospitais. Um hospital, chamemos-lhe assim, normal, que curava desde as pneumonias às doenças do foro oftalmológico. Já lá tinha estado antes a visitar um familiar e de passagem como transporte de outro. O outro é um hospital de tratamento de doenças para pessoas com problemas psíquicos e mentais. Conheço-o bem por ter lá sido consultado algumas vezes. Quando lhe olhei para o casaco que trazia vestido não tive nenhuma dúvida. Ele era interno deste último e, pela cor da dita veste, estava autorizado a ausentar-se durante o dia.

Falamos da chuva que caía, da azáfama das pessoas, do caos em que o trânsito se estava a tornar. Do carro que teve de travar bruscamente para não bater no da frente, que tinha travado bruscamente porque outro, mais à frente, também travou bruscamente. Da idosa que transportava dois sacos demasiado pesados para ela e um guarda-chuva debaixo do braço, curvada ao peso dos sacos e sem poder abrir o guarda-chuva, seguia por baixo daquela carga de água como se nem sequer pingasse. Duma grávida de quase sete meses que atravessava apressada a estrada e de uma outra meio esgrouviada que atravessava para o outro lado sem olhar que outros carros poderiam, ou não, bruscamente travar. Falamos do buzinão que se instalou e do taxista, já velho, que buzinava frenético e gritava parem já com o barulho! Do gato amarelo com uma cauda listrada que espreitava na janela do quarto andar e do barco à vela que passava no ribeiro da enxurrada. Do carapau que voava, do pargo que por ali nadava, da manhosa da gaivota que esvoaçava com um sapo na boca, da velha que levava dois sacos mais pesados do que ela e que atravessou a estrada com o guarda-chuva fechado e do taxista que parou de buzinar mas não parou de gritar e gritou com a velha e gritou com a grávida e gritou com a esgrouviada. E falamos da rabanada de vento que fez a velha estremecer e a grávida retroceder e a esgrouviada que, coitada, com um bolo sem creme na mão deu à grávida um bocado porque, para ela, aquele rebento precisava ser alimentado. Mas quando passou a traineira, saiu do táxi uma passageira, caiu-lhe uma lula no chão e armou-se tamanha confusão naquela rua que apenas se abafou a barulheira com um estrondoso trovão e outra rajada de vento. E o taxista, já velho, calou-se e os carros destravaram.

Quando a chuva passou, eu que ainda estava acocorado ao lado dele ouvi-o perguntar-me com uma voz lúcida e um olhar brilhante se eu queria que ele me levasse ao hospital. Ao dele.

Texto e foto do autor. Todos os direitos reservados.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

30. Noites



Ele é uma pessoa de princípios e de Fé. De muita Fé. Católico por nascimento, logo foi iniciado nas lides da ICAR tendo sido batizado, feito a primeira comunhão, os quatro livros da catequese e o crisma. Casou uns anos mais tarde na Igreja do Sagrado Coração de Jesus com Matilde que não tinha nem os mesmos princípios, nem a mesma Fé e, fazendo tábua rasa do que o sacerdote que lhes celebrou o matrimónio enunciou, fugiu poucos meses mais tarde com um cabo-verdiano bem constituído fisicamente e quiçá possuidor de outros dotes que ele talvez não tivesse. Nem isso lhe abalou a Fé, antes pelo contrário, fê-lo acreditar mais nos desígnios de Deus e estes eram inabaláveis. Por princípio e boa educação nunca recriminou Matilde nem o cabo-verdiano. Lembrava-se sempre, lá em casa, quando solteiro, da devoção à Virgem e aos Santos e da Fé que movia toda aquela família, pai, mãe, quatro filhas e três filhos dos quais era ele o mais novo. E se a superstição e a crença popular diz que o sétimo filho seria dotado de talentos especiais, na sua casa a porta estava fechada a todas essas crendices. Ele era uma pessoa absolutamente normal. A sorte e o azar não faziam parte da sua cultura, a superstição era inimiga da Fé, todo o destino está nas mãos do Senhor. E era por tudo isso que ele nunca tinha jogado na lotaria, nunca tinha preenchido um boletim do totoloto, nunca tinha raspado os trevos de uma raspadinha. Jogo não.

Mais de uma mão cheia de cafés por dia faziam com que ele se mantivesse desperto mais do que o corpo deveria resistir. Seria essa a razão, ele assim o achava, pela qual de vez em quando tinha noites difíceis de pregar olho. Numa dessa noites veio-lhe à cabeça sem mais nem menos e sem se saber de onde, o número cento e trinta e três. Por mais que tentasse retrospectar não encontrava a origem daquele pensamento e foi com ele que tentou adormecer. Dificilmente colou as sobrancelhas, mas as duas horas em que o sono lhe venceu a cafeína foram povoadas de sonhos em torno do número cento e trinta e três.

Abriu a caixa de correio. Uma carta da coletividade da sua área de residência, da qual se tinha tornado sócio havia mais de vinte anos, iria agora comemorar o seu centenário e, entre a pompa e a circunstância que o ato merece, seriam entregues os novos cartões de sócio, renumerados em cada dezena de anos. O seu novo número seria o cento e trinta e três. Tentou não dar importância ao fato, mas em vão. E porque tinha ainda que passar na repartição de Finanças para um esclarecimento sobre impostos, só desejou que a senha de atendimento não tivesse o número cento e trinta e três. Quis o acaso, que sim, que fora exatamente esse o número que lhe calhou em vez. (Neste preciso momento entra-lhe em cena Gabriel Garcia Marques e o seu Cem Anos de Solidão que tinha lido havia já um bom par de anos. Aureliano e seu pai José Arcádio Buéndia, viram voar a alcofa onde dormia Amaranta sem que ninguém lhe tocasse e numa caçarola de cobre a água fervia fora do lume. Entenderam isso como uma premonição, algo iria acontecer e, a verdade é que no dia seguinte, Úrsula que tinha desaparecido havia mais de cinco meses, sem ter deixado recado e de nunca mais se ter ouvido falar nela, regressou a casa). Juntou a informação obtida nas Finanças ao convite da coletividade e saiu à procura de um cauteleiro. Nem o primeiro, nem o segundo  tinham qualquer fração terminada em cento e trinta e três. Nem mesmo no quiosque da esquina. E logo hoje que “andaria à roda” e ele já estava tão atrasado para o emprego. Mas haveria de encontrar tão premonitório número. E assim, intrometendo-se no seu caminho um cauteleiro mulato, dir-se-ia que cabo-verdiano, o que lhe trouxe à memória outras datas e novas congeminações, comprou o primeiro número que da resma de cautelas na mão do cauteleiro sobressaía. A sua cautela ostentava o bonito número treze mil cento e trinta e três.

Não sabemos em que número saiu a lotaria mas ele não teve essa sorte.  Mas voltou a ter Fé. Compraria de novo na semana seguinte. Queria apenas dormir descansado.

Texto e foto (Mértola) do autor. Todos os direitos reservados.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

29. Suspensórios


Carlos Eduardo de Linhares Oliveira Rodrigues foi um colega que tive quando trabalhei numa companhia de seguros. Vestia impecavelmente e apresentava-se como se fosse o galã numa fita portuguesa de Leitão de Barros nos anos 50 do século passado. À calça sempre bem vincada juntava camisa quase sempre às riscas (tinha-as de várias cores) de colarinho e punhos brancos e indispensáveis suspensórios. Se o fato por vezes não era completo, o blaser teria de fazer pandan com a calça e principalmente com o colete que raramente dispensava. Tinha uma coleção de coletes comprados em Londres que faria inveja a Sherlock Holmes nos seus bons tempos. No inverno vestia sempre sobretudo. Nunca o vimos de chapéu pois gostava de exibir a cabeça com brilhantina e alguns anos depois, quando a moda pegou, era o wet gel que lhe dava forma à melena. E se identifiquei o Linhares pelo nome completo foi porque era assim que ele gostava de se apresentar e era assim que ele se referia aos colegas e até à família. Quando a mulher, Maria Margarida da Consolação de Jesus Costa Rodrigues deu à luz o primeiro rebento e lhe perguntamos qual era o nome do filho ele orgulhosamente recitou, João Carlos de Jesus Costa de Linhares Rodrigues.

Foi quando um dia o vimos entrar um pouco triste, sem nada que o caracterizasse na indumentária, calças jeans iguais a tantos outros colegas, com um pólo de contrafação Lacoste igualzinho aos que lá fora, em plena praça Marquês de Pombal, se vendiam a quinhentos escudos e, principalmente, com o pelo seco no alto da moleira, que desconfiamos que algo de errado se passava. Carlos Eduardo de Linhares Oliveira Rodrigues tinha sido mordido numa nádega por um poderoso inseto e não podia correr o risco de que furúnculo rebentasse e sujasse os seus tão cuidados aprontes. Era isto que todos pensamos daquele ar abatido ou então seria do mal-estar que tal situação lhe causaria.

Quando o Rui Jorge Diocleciano Pombinho, seu habitual companheiro de almoço e visita de casa, nos veio contar que afinal o “terrível furúnculo” não era mais do que uma simples baba provocada por uma picada de mosquito e que todo o abatimento de Carlos Eduardo de Linhares Oliveira Rodrigues não tinha a ver com dor nem com ardor mas que apenas se devia ao facto de o nome do bichinho ser tão simples como culex pippens, soou uma estridente gargalhada em toda a sala. Aliás, uma gargalhada sem nome, para ser mais preciso.

Texto e foto (Londres, Big Ben) do autor. Todos os direitos reservados.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

28. As focas



Parecia que nunca se passava nada naquele pequeno espaço. Na verdade não era tão pequeno assim como se possa pensar, pois o navio era um super-petroleiro e os super-petroleiros não são pequenos. Mas a dimensão é uma coisa relativa e, um navio daquele tamanho, diria mesmo, daquele super tamanho, não era mais de que uma gota, uma pequena gota, nessa imensidão oceânica. Pois, de onde vos retiro esta história, é ainda de um espaço mais pequeno. Tudo se passa entre o porão e o convés, no porão e no convés.

Como costumava, levantou-se poucos segundos depois de o seu despertador ter gritado a plenos pulmões, se assim se pode falar de uma campainha estridente, incomodativa e que toca sempre quando nos parece inoportuno e quando ainda achamos que estamos no primeiro sono. Mas se o hábito não faz o monge, ele não confirma o ditado. Acostumou-se a levantar-se de um salto aos primeiros acordes da campainha pois, para ele, não havia coisa mais sagrada do que a hora do almoço. E, assim, apesar de ter adormecido quando o Sol já rasgava o horizonte, levantou-se e espreitou pela vigia. O mar estava calmo e uma ligeira névoa cobria o horizonte. À parte o zumbido que se ouvia das turbinas, capaz de abafar alguma voz a pouco mais de dez metros de distância, passe a ironia da afirmação, quase se poderia dizer que o silêncio era ensurdecedor. Depois, escanhoou-se a preceito, demorou, como sempre se demorava num banho morno e revigorante, vestiu camisa aos quadrados e calças jeans (mais tarde haveria de regressar ao camarote para trocar de roupa, a fim de se apresentar no trabalho) e desceu ao refeitório. Naquele dia, uma quinta-feira a refeição iria ser melhorada, como era melhorada todas as quintas-feiras. E aos Domingos também.

Antes de começar a comer, pensou no quanto estava longe de casa, há quantos meses não via sequer os contornos da costa, saudades dos pais e dos irmãos, saudades da namorada. E agradeceu a Deus por a viagem estar a correr muito bem, pela saúde e bem-estar de que usufruía e, hoje particularmente, pelos camarões grelhados à la planche cujo aroma já tinha atravessado anteparas e excitado as suas bem treinadas células olfactivas. Depois seguir-se-ia uma bela posta de pescada cozida com brócolos e uma mousse de chocolate. Um café terminaria a refeição mas, como o trabalho estava a espera, hoje não beberia o delicioso licor de ginja, especialidade da terra do comandante. Comeu sozinho e em silêncio (àquela hora só almoçavam ele, o piloto e o Félix; o piloto estava como uma úlcera gástrica e o Félix ainda não tinha aparecido), como silenciosa era a manhã. Apenas o tal som do despertador que ainda não lhe tida abandonado a cabeça e o referido zumbido das turbinas. Talvez por isso, deu-lhe de repente uma sensação de sono. Pudera, com tão repimpada refeição outra coisa não era de esperar. E pensou que o que saberia bem agora, era um outro banho de água morna para ver se despertaria de uma vez por todas. Só que isso seria impossível. Não só porque começava a fazer a digestão, mas também porque não tinha mais tempo do que o de subir ao camarote, trocar de roupa e descer à casa da máquina para pegar ao serviço.

E neste corrupio de pensamentos (penso que terá sido Dostoievsky que terá dito que os pensamentos chegam-nos à velocidade de um comboio que por vezes descarrila e isso é perigoso,) lembrou-se que hoje era dia de entrarem no Mediterrâneo, iria ver de novo terra, iria passar o estreito de Gibraltar, quase poderia tocar na África e na Europa ao mesmo tempo e aí, aumentaram as saudades, tão perto e tão longe de casa. E haveria a praxe. Sim a praxe, pois seria a sua estreia de Mediterrâneo e os colegas não iriam, com certeza deixar passar o evento, sem o inevitável baptismo. E baptismo mete água, é secular, e água quer dizer banho. E ele seria praxado e levaria um banho de todo o tamanho e a preceito. Restava-lhe portanto fintar o destino ou deixar que isso acontecesse naturalmente.

O Félix era o seu camarada de quarto. Entraram simultaneamente ao serviço e, ao contrário do que era habitual, falarem sobre as condições de serviço, o Félix atirou:
- Já foste ver as focas?
Cheirou-lhe de imediato a esturro. Primeiro porque estávamos a atravessar o estreito de Gibraltar e, focas no Mar Mediterrâneo não lhe parecia verosímil. Em segundo lugar, o Félix, que não tinha ido almoçar, ainda vinha estremunhado a esfregar os olhos, como quem tivesse acabado de acordar, se tivesse vestido à pressa e corresse escada abaixo, sem sequer olhar para o lado para não perder tempo em chegar ao trabalho.
- Não, não fui, respondeu ele, não tive tempo.
- Então vai já, porque daqui a uma meia hora já não se verá nada.

Saiu respirando desconfianças. Pé ante pé, percorreu os caminhos onde não houvesse varandins superiores, de onde um balde água lhe pudesse fazer a surpresa. E não eram baldes pequenos. Menos de vinte litros não seriam com certeza. Seria um banho e peras. E quando chegou ao convés, olhou, saiu pela porta de bombordo e, nem sombra de focas se vislumbravam. Difícil seria agora chegar a estibordo. Não que pela ré não o pudesse fazer sem perder muito tempo. Mas o risco de ficar exposto ao tão esperado, como indesejado por inoportuno, banho, aumentaria exponencialmente e para isso ele não estava disponível. Voltou para trás, regressou à casa da máquina, reencontrou o Félix, que sem parecer sequer admirado por vê-lo tão enxuto, lhe perguntou se tinha gostado.
- Não vi nada. Se calhar já passou.
O Félix, pegou no telefone, discou o número piloto, perguntou-lhe se ainda se viam as focas.
- A estibordo? Obrigado. E desligou

Ele saiu de novo, do mesmo jeito que da primeira vez. Tomou caminhos simétricos mas não com menos cuidado. Saiu a porta de estibordo e lá estavam elas. As focas.

Durante alguns minutos usufruiu do espectáculo das focas a brincarem. Metade desses minutos completamente encharcado. Felizmente a água estava morna. E despertou para mais uma tarde de trabalho.

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segunda-feira, 16 de maio de 2011

27. Orelhas

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Às vezes fico de ouvido atento. Bem sei que é feio, se for notado, claro, ficar a ouvir as conversas dos outros mas há horas em que não resisto. Nunca reparei se os meus pavilhões tomam a configuração dos dos gatos, rodando e empinando-se, mas a verdade é que fico de alerta. Foi assim que, no outro dia, ouvi uma conversa bem interessante sobre a morte ou, para ser mais explicito, sobre algumas das suas consequências. O que estava de costas para mim (na realidade eu estava de lado para os dois mas a um deles quase só lhe via as costas) dizia para o outro, para o que eu conseguia ver o rosto, que tinha muito medo de morrer. O outro franziu o sobrolho e quis saber o que o apoquentava. Então ele desfiou um rol de coisas que me deixaram a pensar e que por vezes me faziam distrair do teor da conversa para eu próprio navegar no ambiente. E dizia ele que tinha medo que fosse levado por uma doença que o fizesse sofrer, um medo que também partilho, medo do silêncio sepulcral das noites no cemitério, medo este que já me levou à decisão de vir a ser cremado. Mas a estas consideráveis fobias juntava ele receios muito mais relacionados com a saudade (ai a saudade, a portuguesa saudade) que iria ter de tudo quanto cá deixaria. A família, os amigos, o Benfica e até algumas coisas banais das quais me lembro a referência a alguns prazeres da vida, como o queijo de ovelha amanteigado e o vinho tinto alentejano. E foi neste momento que comecei a viajar no tempo e a pensar naquilo porque trabalhei, naquilo que criei, naquilo porque lutei, naquilo que está a fazer o mundo mover-se. Verei crescer o meu neto? Haverá água potável daqui a 50 anos? Daqui a quanto tempo o lixo orbital será incontornável? Como será governado o país daqui a 180 anos? Será que os alemães provocarão uma terceira guerra mundial? E uma quarta? Eu irei ter trinetos? Quantas travessias do Tejo, de Vila Franca de Xira para juzante, se irão construir? Vamos continuar a pedir dinheiro ao estrangeiro todos os meses nos próximos 420 anos? A que juros? O Vitória de Guimarães ganhará o campeonato em 2143 com um presidente chamado Afonso? Daqui a quanto tempo não haverá petróleo? O Brasil festejará o seu undécimo campeonato mundial de futebol? No ano 2155, quando seria suposto eu comemorar os meus 200 anos de idade, a TVI ainda passará a série Morangos com Açúcar? Até quando alguém colocará cravos vermelhos na lapela? Para mandar um e-mail bastará ir à janela e soprar?

Quando eu morrer vou ter tantas saudades do futuro.

Texto e foto do autor. Todos os direitos reservados.

domingo, 15 de maio de 2011

26. Tempo


Olá
Olá
Estás bom?
Estou e tu?
Cá vamos.
Isso é que é preciso.
A família?
Vai bem e os teus?
Graças a Deus!
Quantos tens, dois, não é?
É e tu também?
Sim, fiquei-me por aqui.
Que idade têm?
A mais velha fez 27.
E os teus?
Ela 30 e ele 26.
Como o tempo passa.
E não havemos nós de ter cabelos brancos.
A quem o dizes.
E tens um rapaz também não é?
Tenho, é este aqui.
Está mais alto do que o pai! Adubaste-o?
Se calhar…
E o que fazes?
O mesmo… e tu?
Também.
A tua mulher é que era desportista não era?
Não. Onde é que foste buscar essa?
Já não me lembro quem é que me disse.
Não, eu é que pratico taiken-do.
Ah! Então não estive longe, afinal és tu.
Pois,
Bom, vou andando,
Eu também, já estou a ficar atrasado.
Então até á próxima.
Até. Um beijinho à tua mulher.
Outro para a tua.
Adeus.
Adeus.

Nem uma palavra sobre os tempos em que na esquina do prédio falávamos de miúdas, nem de quando jogávamos ao berlinde, ou ao pião ou ao espeta, nem de quando, de lancheira na mão, apanhávamos o autocarro para Cacilhas, o barco para o Terreiro do Paço e íamos trabalhar nos nossos treze anos de idade. Nem uma palavra de quando me tocava à campainha para irmos à doutrina. Nem nos lembrámos que ambos temos irmãos e que éramos todos amigos, se calhar todos irmãos. Não nos lembrámos de quando jogávamos à bola, das sarrafadas que dávamos um ao outro ou daqueles passes de morte para golo. Não combinámos ir almoçar juntos, tomar uma cerveja ou beber um café. Até á próxima foi o que dissemos. E fico assim a pensar em como o tempo nos vai trazendo novos desconhecidos.

Texto e foto do autor. Todos os direitos reservados.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

25. Felicidade



O seu bairro tem duas filas de prédios, uma delas mostrando as costas à outra. São os prédios de trás. Duas pequenas pracetas, uma à frente de cada fila de prédios, com lugar para estacionamento e para os carros circularem e manobrarem. À frente de uma delas há outra fila de prédios. Esta fila que dá as costas para a fila do meio tem frente para uma praceta arborizada e mais ampla. Frente a frente com esta uma nova fila de prédios dando agora costas com costas, uma quinta fila. A quarta fila e a quinta são rematadas em U por uma fila que lhe bate num topo. Ao todo, podemos contar até agora quinze prédios, acho que estão a entender como estão dispostos e quatro pracetas, sendo que uma delas, ainda não descrita, fica no interior do U. Esta é um parque infantil desativado, dizem os responsáveis, por questões de segurança. Tudo isto que vos falei fica de um lado da rua central, porque do outro lado temos também três filas de prédios, duas frente a frente debruando uma praceta com duas ruas para circulação e um parque de estacionamento de um lado e de outro de uma faixa central de frondosas árvores. A fila que dá costas com costas com a fila da frente encerra entre ambas um recinto vedado de jogos, onde alguns adultos soltam impropérios e alguns miúdos soltam alegrias, bastando para isso apenas uma bola de futebol. Na fila da frente mora um moço que foi magarefe no matadouro municipal. São vinte e seis prédios ao todo, todos eles de três andares. No seu bairro não há muito comércio. Só os prédios que formam um U têm lojas. A que já esteve muito tempo fechada por alugar, começou por ser o café do Cunha e depois uma loja de roupas. Há muito tempo que a Hermínia fechou as portas da loja de roupas e a loja continua, há esse mesmo tempo, por alugar. O lugar da tia Aurora foi passando de mão em mão. O Sr. Zé, tomou conta daquilo, dividiu a loja em duas e, se o lugar da fruta uns dias estava vazio, a taberna mesmo ao lado estava cheia. O Sr. Zé que ganhou bom dinheiro, dizem, com o lugar de frutas, teve um enfarte e deixou a loja que está fechada há muito tempo. O Sr. Rodrigues, entretanto já falecido, também já havia fechado a sua mercearia. Os grandes supermercados não perdoam e o rol, depois do fecho da Lisnave, tornou-se insustentável. O fiado agora não dá como antigamente. Mesmo assim o que foi o café da Glória (primeiramente um armazém de gasosas e laranjadas), agora é um minimercado que beneficiou do fecho do sr. Zé e do Sr. Rodrigues e também do Apaga-a-vela que era de outro bairro. O seu bairro já teve um talho, uma padaria, uma drogaria, um sapateiro e o café do Santos que ultimamente, antes de fechar era um café-restaurante. Ainda tem uma Igreja Evangélica. No seu bairro há 3 cafés, o da Rosa, o do Lourenço e o do Zé-do-pipo. No do Lourenço servem-se almoços. Ah! Que chatice! Este não é o seu bairro. Ele já lá mora lá há mais de 30 anos e a rua central que não tem saída também poderia chamar-se praceta. Mas dada a disposição dos prédios, nenhuma porta dá para ela e seria uma praceta sem números.

Hoje, foi ao café da Rosa pagar umas bejecas à velha guarda. Afinal não é todos os dias que se lhe nasce um neto.

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terça-feira, 10 de maio de 2011

23. Luas e sangue




Ele escrevia poemas. Diziam-lhe que tinha veia. Ele achava-se mais inclinado para a prosa mas encolhia os ombros, com ar (na verdade até era) humilde, quando lhe elogiavam as poesias. Soubemos, mais tarde, que ele tinha um compromisso com o amor. Nunca teve de fazer nenhuma profissão de fé, nem se declarar oficialmente objetor de consciência, nem tampouco inscrever-se nos pacifistas anónimos e ir aquelas reuniões, meio chatas, em que se apresentaria, eu sou fulano de tal, oi fulano de tal, olá fulano de tal, e sou tão pacífico, tão pacífico que enxoto as moscas janela fora sem as molestar e vou a manifestações anti-inseticida e, depois, receber uma grande salva de palmas. Pois o amor enchia-lhe o coração e, todas as terças-feiras, vá-se lá saber porquê, decidia escrever um poema. Escrevia (talvez ainda escreva) cinquenta e dois poemas por ano, porque para ele não há férias para o amor, não há carnaval para o amor, não há cinco de outubro ou vinte e cinco de abril sem amor. Como quem não quer a coisa, invadimos-lhe a privacidade quando, por um canto do olho, lhe “roubamos” uma estrofe de amor, Sou poeta e sem rancores / quando me olham de soslaio / fulmino-os com flores / seja em abril ou em maio. Esta nem foi a mais bonita que lhe conseguimos. Outras temos do seu espólio. Peço-lhe desculpa, porque hoje é terça-feira, de cometer a inconfidência (ousadia) de lhe publicar um poema. Tenho a certeza que ele não ficará furioso. Ele nunca fica furioso, excepto quando o vinho não combina com o queijo.

Que importa que hajam nuvens no céu
E a que a lua não tenha o brilho de ontem?

E também que importa que as estrelas não cintilem
Ofuscadas pelo véu cinza de cúmulos e de cirros?

Que interessa que o mar se despenteie contras as rochas
E os barcos se silenciem no ranger das amarras?

Que importa se o vento uiva nas frinchas das portas
E nos invadem as palmas de um par de janelas batendo?

Que importa se há névoa no rio
E a buzina do cacilheiro muge à travessia?

Que importa se ladram cães ao longe
E ouves junto à porta passos apressados?

Que importa se a chaleira apita de vapor fervente
Ou se se escuta a água do banho no andar de cima?

Que importa a ausência de luz na rua
E os sons dos fantasmas que nos cercam,
Quando nos perdemos em copulares gemidos?

Nada, meu amor, nada importa
Quando possuímos a noite.

Só decidi escrever este texto porque ontem, quando me mostrava o braço, ainda negro, de uma análise ao sangue, me confidenciou que a analista não lhe descobria a veia.

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sexta-feira, 6 de maio de 2011

21. Saudades de Genoveva


Tenho uma vaga impressão, provavelmente fundamentada, de que se não viam há muito tempo. O que me leva a dizer isto foi tê-los visto mirarem-se de alto a baixo, ambos terem apontado o indicador da mão direita um em direção do outro, terem-se interrogado mutuamente com um duplamente exclamativo tu?!!  e terem-se envolvido num amplexo que, se não fosse considerado exagero por quem eventualmente escute esta historia, eu diria maior do que o Cristo-Rei de Almada daria ao Cristo Redentor do Rio de Janeiro se um dia fosse possível encontrarem-se. Mas passe a, mais que provável, exagerada comparação pois já se deve ter percebido que seriam amigos de longa data. Quem posteriormente tivesse estado com o ouvido à escuta não teria a mínima dúvida do que se acabou de afirmar. O que vestia um pólo azul e branco com uma golinha de malha cardada, via-se que não era do mais fino algodão, mas estando os tempos difíceis para se vestirem camisas de marca, desde que se ande limpinho e asseado e não se deva nada a ninguém como ouvi muitas vezes a minha saudosa avó dizer, contava eu, o que vestia o pólo azul era o mais conversador. Entendi também que o que se indumentava com uma camisa preta e que contrastava, sem que para isso tivesse sido propositada a intenção da pessoa, com os seus sedosos cabelos grisalhos, que se diria de umas sessenta primaveras bem ou mal vividas, não sabemos, sofria do luto por Genoveva, já lá iam quase quatro anos. Talvez por isso permanecia mais reservado. E como conversa puxa conversa, quando assim nos encontramos, a saudade dos tempos passados, por muito ruins que tenham sido, são sempre muitas e trazem-nos a nostalgia de grandes recordações. E não fosse aquela saudade que lhe batia no peito desde que perdeu Genoveva, teria corroborado tudo quanto era a memória do que vestia pólo azul. Os tempos em que o leiteiro vinha de bicicleta, uma bilha de chapa zincada pendurada em cada aba traseira da mesma e que lhes enchia as garrafas deixadas na porta da casa, o saco de pano pendurado na maçaneta da porta, com os papo-secos, ainda quentes da última fornada que a filha da padeira (era a Marianita, não era?) lhe deixava todas as manhãs, o Mário a apregoar o sécul’ó-diário com a saca dos jornais a tiracolo, a enrolar o Diário de Noticias no sentido leste-oeste do jornal e depois a dar-lhe um nó cego de modo que ficasse ali uma espécie de pacote, que era atirado contra a janela, caía direito no parapeito e dava o aviso de que o mensageiro tinha chegado, o Farrusco a correr e a ladrar junto às pernas do petrolino, de quem nunca se tinha esquecido de um pontapé, felizmente defensivo e que, só por isso, não lhe tinha causado dano de maior. E a tia Domitília peixeira, com a sua canastra à cabeça apregoando a sardinha viva da costa, o carapau a meio-tostão e a chaputa fresquinha.

E assim foram continuando a relembrar enquanto se aproximavam, com o carrinho das compras, da caixa do supermercado. E se vos conto isto foi porque o ouvi e porque tenho saudades de jogar ao pião.

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terça-feira, 3 de maio de 2011

19. Pataniscas


Eles almoçavam muitas vezes juntos porque ele, o chefe, o convidava. Nunca consegui perceber muito bem porque é que ele o convidava tantas vezes mas, pelo que via e, às vezes, ouvia, fiquei com a sensação de que ele, o chefe, precisava muito dele. Mas isso é apenas uma suposição minha porque nunca soube, em concreto, se o outro, o chefe, era assim gajo que tivesse dificuldade em almoçar sozinho. De duas coisas eu tinha a certeza, porque almoçava muitas vezes no mesmo restaurante e sempre numa mesa perto da deles (cheguei até a ser convidado por ele, o chefe, para os acompanhar numa aguardente velha e numa cigarrilha, quase sempre café-creme, porque lhe conheço a caixa; delicadamente, sempre recusei). Uma, era de que me era agradável ouvi-los, quando chegavam, cumprimentarem-me pelo meu nome -  vi uma vez, segredarem ao ouvido do criado qualquer coisa que pela consequência teria sido querer saber o meu nome próprio. Eu acho cordial que as pessoas sempre que o saibam se tratem pelo nome. Boa tarde senhor Constantino, dizia ele sempre que passava enquanto o outro, o chefe, chegou mesmo a endereçar-me um boa tarde amigo Constantino, como vai o senhor – a outra, era de que o chefe nunca entrava naquele restaurante sozinho e de que ele, nos dias em que o chefe lá não almoçava, também não comparecia. Na verdade só nos conhecíamos do restaurante e era como se nos conhecêssemos de toda a vida.  Em boa verdade, eu é que era o frequentador assíduo que fiz daquele espaço a minha cantina diária, eles nem por isso, muitas vezes apenas duas vezes por semana e outras semanas nem tanto. Mas aquela mesa ao lado da minha, se é que posso chamar minha à mesa de um restaurante, tinha sempre um prisma triangular regular, de cor preta, deitado, debruado a dourado nas arestas e com a palavra reservado, em letras maiúsculas, também escrita a dourado. Era aliás o que menos eu apreciava naquele restaurante, de farta ementa e saborosa, onde pontificavam as pataniscas de bacalhau com arroz de feijão e onde se podia comer uma das melhores farinheiras de porco preto, levemente assada em aguardente de vinho verde, porque para mim, ouro sobre preto tem sempre um ar fúnebre. Isto apesar da já referida ementa e da excelente carta de vinhos. Nesse dia, tenho uma vaga ideia de que estávamos em Fevereiro, a uma pergunta que ele lhe fez, o outro, o chefe, respondeu-lhe, não meu caro, ainda não estás preparado para isso, ainda não és suficientemente filho da puta. Fiz algum esforço antes de vos relatar isto, mas não me consigo lembrar dos nomes deles.

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segunda-feira, 2 de maio de 2011

18. Temperatura


M. do C. morreu. Morreu há mais de 30 anos quando ainda não tinha 39 anos de idade. Um dia, em casa, sozinha, rebentou-se-lhe uma trompa. Daí até entrar em choque foi um ápice. O filho e um cunhado é que lhe valeram. Um rasto de sangue, o filhote a pensar que tinham matado a mãe, o pai a trabalhar, correu a chamar o tio. Não morreu instantaneamente. Ainda se lembrou de no carro ter os olhos meio abertos e ter visto o pilar da ponte sobre o Tejo.  O cunhado encostou a porta do carro na entrada das urgências do hospital. Seria impossível não ser atendida de imediato. Mas já nada havia a fazer. O médico que a assistiu limitou-se a escrever a declaração de óbito que deixou entalada entre o colchão e a grade da maca. Seguiria para autópsia. No entanto, esqueceu-se de lhe cobrir o rosto com o tradicional lençol branco e ali ficou. Um outro médico passou e viu M. do C. por ali, abandonada. Leu o relatório. Morta! Tentou sentir-lhe o pulo, a carótida. Nada (?). Ou seria quase nada? Fria estava mas a cor não era de cadáver. Seguiu-se uma longa história de muitas semanas de coma profundo, de viagens ao outro lado do mundo, de ressuscitação, de vozes que nunca mais esqueceu. Ontem a M. do C., hoje com 72 anos, contou-me a história toda enquanto comíamos uma canja de galinha. Quente.

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